É certo que na sua própria residência, que é capaz de ser mais confortável que a minha. Mas imagino que deve ser terrível para uma mulher, para mais senhora de boa disponibilidade financeira, não poder sair de casa para ir às compras no hipermercado mais próximo. Não sei, é claro, se há algum hipermercado nas proximidades da residência de Aung San Suu Kyi, mas é praticamente certo que o haverá em tempo próximo, quando a democracia por ela desejada chegar enfim a Mianmar, pois é também para isso, para a abundante instalação de hipermercados, que a democracia serve, também para isso foi reinventada.

Nem sequer sei se a excelente senhora vive em Rangum, capital do seu país, ou pelo menos nos seus imediatos arredores. O que julgo saber, pelo que em tempos foi noticiado, é que residirá à beira de um lago, pois um cidadão norte-americano o terá atravessado a nado para visitá-la em sua casa e lá se demorar um ou dois dias. Parece uma estória de filme romântico, mas foi o que então foi divulgado com fundamento ou não. Também pode lembrar enredo de filme de espionagem, não sei.

Mas sei ou julgo saber que os norte-americanos são danadinhos para qualquer destas práticas, romantismo, espionagem e natação, pelo que me inclino a acreditar na proeza então divulgada. Virá aliás a propósito lembrar que Suu Kyi tem muitos e antigos vínculos culturais e sentimentais com o mundo anglo-saxónico: casou com um inglês de quem infelizmente enviuvou, estudou Política em Oxford, trabalhou durante largo tempo nos Estados Unidos. Compreende-se que toda essa experiência lhe tenha ensinado a democracia tal como é entendida no Ocidente Atlântico, contribuído decisivamente para a sua militância e até para a atribuição dos Sakarov e Nobel exibidos pela sua biografia.

Com inicial minúscula

Entretanto, fui particularmente sensível a uma declaração de Aung San Suu Kyi que a televisão reportou: disse ela que «democracia é a liberdade de expressão». Sábias palavras, decerto, ainda que não totalizando todas as condições para uma situação democrática. De qualquer modo, aconteceu que as palavras proferidas por Suu Kyi em Rangum ou arredores tiveram o condão de me levar a pensar no meu País, na liberdade de expressão e na democracia.

A pensar de uma certa maneira: com escassa dose de reconforto, até com uma concreta e amarga desconfiança, a de que não vivo em democracia. Porque, como bem já se terá adivinhado, não acredito que haja no meu País uma verdadeira e factual liberdade de expressão. É certo que foi extinta há anos a Comissão de Censura, ou de Exame Prévio: bem me lembro desse dia distante, por sinal estávamos na mesma rua, eu e os senhores censores, quando isso aconteceu. Na mesma rua, mas quase simbolicamente em passeios opostos.

Não há, pois, Censura com inicial maiúscula. Mas há muitas censuras com inicial minúscula que são tanto ou mais eficazes que a extinta, e sei bem delas. Sei como é difícil ser jornalista sem comungar do entendimento de democracia tido, presumivelmente, por excelentes senhoras como Aung San Suu Kyi e óptimos cavalheiros como os que a patrocinam. Sei como poderes económicos e/ou políticos podem fazer encerrar um jornal mediante o mero mas eficaz boicote na área publicitária. Sei como um partido político que é alvo quotidiano de imposturas, distorções e calúnias, é de facto impedido de se defender eficazmente nos mesmos lugares onde é agredido.

Sei como candidatos a trabalhar em certas redacções são sujeitos a uma espécie de prévia inspecção ideológica que será determinante para a sua eventual admissão. Sei isso e mais alguma coisa. E, sabendo-o enquanto lembro as palavras de Suu Kyi, quase começo a desejar que um dia destes, agora que a senhora está livre, passe por cá. Para nos ajudar a aceder à democracia com o requisito por ela própria definido.

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Fonte: jornal Avante!