FAC-SIMILE DO LIVRO DE CORDEL, SOBRE A PELEJA DE CEGO ADERALDO E ZÉ PRETINHO

      Ao tempo em que Elis Regina, que se estivesse viva faria 66 anos de idade neste mês de março do ano de 2011, apresentava o Programa “O fino da Bossa’, na TV Record de São Paulo, ela me impressionou com uns versos de cantadores nordestinos. Era um trecho de uma contenda (desafio) entre o Cego Deraldo e Zé Pretinho. Eu, que sempre adorei – e adoro- a Elis, extasiei-me diante daquelas falas tão coerentes, ao mesmo tempo em que banalizava o conteúdo da fala do oponente. A saber:

      -Cego Deraldo: “Arre com tanta conversa, desse nego capivara/Não há quem cuspa pra cima, que não lhe caia na cara/Quem a paca cara compra, pagará a paca cara…”

      -Zé Pretinho: “Cego seu mote é “facinho”, digo e vou comprovar/Quem a paca cara compra, cara a paca pagará..”

      E segue:

      -Zé Pretinho: ”Eu vou mudar de toada, pra uma que mete medo/Nunca encontrei cantador, que desmanchasse esse enredo/É um dedo é um dado é um dia, é um dia é um dado é um dedo…”

     -Cego Deraldo: ”Zé Preto, este teu enredo te serve de zombaria/Tu hoje cegas de raiva/O diabo é teu guia/É um dia é um dedo é um dado, é um dado é um dedo é um dia…”

      (Consta em várias publicações que 80.000 réis foram divididos entre os dois cantadores nessa noite. O ano era 1914!!!!!!!!!!!!!)

      QUEM ERA O CEGO ADERALDO?

      Aderaldo Ferreira de Araújo, o cego Aderaldo (alguns o tratam como Deraldo), nasceu na cidade do Crato (CE), em 24 de junho de 1878 e morreu em Fortaleza (CE) em 29 de junho de 1967; portanto aos 89 anos de idade. Consta-se que ainda recém nascido foi morar em Quixadá (CE). 

                                                             
                    ESTÁTUA DO CANTADOR “CEGO ADERALDO”, EM QUIXADÁ, CE – BRASIL

      O cego Aderaldo nunca se casou, porém criou 24 filhos adotivos, muitos deles viajavam com o cantador pelos sertões nordestinos, onde Aderaldo mostrava (e vendia) sua arte..

      Em 1914, disputou um desafio, famosíssimo, com o cantador Zé Pretinho, do Piauí (vide final deste artigo). Tal desafio os tornou consagrados, pois os versos foram registrados (e publicados na literatura de cordel), pelo cordelista Firmino Teixeira do Amaral, com o título de “A Peleja do Cego Aderaldo e Zé Pretinho”. As trovas apresentadas no intróito deste artigo fazem parte de tal publicação, histórica, do cordelista Firmino, de cujo original que se encontra no site do Ministério da Educação –www.dominiopublico.gov.br/download/texto/jn000002, onde está materializado.

      Ao tempo em que Elis Regina, que se estivesse viva faria 66 anos de idade neste mês de março do ano de 2011, apresentava o Programa “O fino da Bossa’, na TV Record de São Paulo, ela me impressionou com uns versos de cantadores nordestinos. Era um trecho de uma contenda (desafio) entre o Cego Aderaldo e Zé Pretinho. Eu, que sempre adorei – e adoro- a Elis, extasiei-me diante daquelas falas tão coerentes, ao mesmo tempo em que banalizava o conteúdo da fala do oponente.

      Analisando antiga edição da revista “O Cruzeiro”, em texto de Rachel de Queiróz, de 3 de outubro de 1959, conheci um pouco mais o cego Aderaldo, também conhecido por “Cego Aderaldo”. Vou tentar aqui sintetizar tudo que a imortal escritora falou a respeito desse “vivente”.

      Rachel de Queiróz nos conta que certa vez, por volta das três horas da tarde e sob um sol abrasador, “…tão forte que encandeia, por sobre o mato zarolho sobe par ao céu um brilho trêmulo, feito de luz devolvida que bate no chão e volta par aonde veio, como se a terra fosse um espelho”!!!

      Segundo ela, quando o conheceu, ele era um velho alto, de peito largo, chapéu desabado sobre os óculos escuros, acompanhado por um moço que o segurava pelas mãos e o guiava, como se menino fosse. Aquele homem que acabava de chegar à fazenda dos pais de Rachel era um tipo de Príncipe, talvez o último sobrevivente dos grandes cantadores: era o cego Aderaldo.

      Conforme as descrições que temos de quem o conheceu pessoalmente, ele era alto, de peito largo, chapéu desabado sobre os óculos escuros, sempre acompanhado pela mão de um moço moreno, de bigodinho fino, que dirigia os passos do cego Deraldo, como se criança ele fosse.

      Quando ele chegava numa fazenda, todos se apressavam em saudá-lo e servi-lo do melhor que houvesse na casa e queriam que ele participasse de algum modo de suas vidas; as redes eram abandonadas, os afazeres domésticos, os trabalhos nos eitos e nos engenhos, tudo para poderem se aproximar do cego cantador. Todos corriam para receber Deraldo. Aquele cantador, ali materializado, era uma espécie de príncipe; talvez o último sobrevivente dos grandes cantadores.

      Segundo relato da Rachel de Queiroz, que o conheceu pessoalmente quando o cego Deraldo já estava velho, quando ele chegava numa casa, a notícia se espalhava feito rastilho de pólvora e a própria escritora cearense comparou-o como “uma estrela de Natal” que iluminava o alpendre de sua casa, onde o cantador se sentava para conversar com os pais da escritora (que aos quinze anos escreveu “O Quinze”, alusão ao ano de 1915, naturalmente). Rachel contava-nos, que os homens largavam as enxadas nos roçados, as mulheres deixavam de pilar milho, esqueciam o pão no forno e a hora da janta. E, aos poucos e de mansinho, homens, velhos e velhas, moças e meninos, iam se esgueirando e se achegando: quando davam fé, o terreiro e o alpendre estavam cheios de gente e o Deraldo, sentado na cadeira de lona da casa da escritora, soltava sua risada mais animada e contava os “causos” que todos apreciavam, fossem eles invencionices ou não; desfiava motes de desafios e, quando se sentia à vontade, pegava no grande violão que o acompanhava e rememorava desafios e versos soltos, além de, via de regra, saudar e louvar os presentes e o dono da casa.

      Foi aí que ele comprou para sempre o coração da dona da casa, pois a enxergava apenas com os espirituais olhos de cego, disse, num remate de sextilha, que ela era “maneira como uma abelha…”

      Eu, que sou também oriundo do interior, imagino o que seja o renome a grandeza de um cantador desses. Ele é a voz de uma gente que não tem outra forma de expressão própria, gente que não sabe ler, nem escrever, mas que sente a falta de poesia e de formas de comunicação direta; com o cantador nordestino, o povo fala e se entende. Não foi por rádio nem pelo jornal que o povo nordestino ficou sabendo da morte de Lampião, da guerra na Europa, da morte do Getúlio e da “ressurreição” do Padre Cícero Romão, ou da chegada do homem na lua. Mesmo se ouvissem pelo rádio, meio mais democrático de se ficar atualizado, o trabalhador rural não acreditaria; porém se for dito pelo cantador, o evento passa a ser verdade!

      E porquê que isso acontece: o cantador é a expressão de toda uma gente que não tem outra forma de expressão própria. É o cantador que supre as necessidades do campesino quanto à poesia e comunicação e expressão. O povo lhe dá crédito porque o cantador “é um deles”; é sua testemunha e ao mesmo tempo seu poeta, sua consciência lírica e onírica, sua voz de protesto ou queixa ou até de seu bom humor. Quando o escutam, os homens ficam pensativos e as mulheres choram. O cego Aderaldo viveu e morreu pobre, como sua gente. Enquanto os campesinos tinham para repartir com ele apenas sua miséria e seus sonhos, o cantador dividia com seus iguais o lírico e o onírico.

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POSTFÁCIO

      Desde 1945, então com 67 anos, Cego Aderaldo parou de aceitar desafios. Mas também, já tinha rodado o sertão inúmeras vezes. Ele conseguiu ser reconhecido em todo lugar, cantou para muitas pessoas, simples e importantes, tivera pelejas com os maiores cantadores da época. E, na medida em que a serenidade, que só o tempo trás ao homem, começou a dificultar as disputas de peleja: ele resolveu passar a cantar apenas para entreter a alma.

      Conforme contado pela escritora Rachel de Queiroz, nos idos de 1950, portanto há 60 anos, o cego Aderaldo canta de si e dos outros, conta a infância, a mocidade e a cegueira. Perdeu a luz dos olhos aos dezoito anos de idade, quando trabalhava numa máquina que, de repente, lhe lançou no rosto uma lufada de vapor quente. (conforme pesquisa que fiz, ele trabalhava como maquinista de trem, na Estrada de Ferro de Baturité à época). Este acidente resultou na sua cegueira. Depois de cego, recusando-se a pedir esmola, como outros cegos fazem, lembrou-se de que carregava um poeta dentro do peito, arranjou uma viola e se fez cantador. E cantando continuou até sua morte, desde aqueles fatais dezoito anos até os oitenta e tantos, que viveu. Vivia ambulante, igual a Homero (das Ilíadas e Odisséia), também cego como ele, poeta e cantor. Não teve mulher (fixa), – dizia que mulher e cego não são boa combinação. Criou mais de vinte filhos alheios, transformando as velhas relações do cego com o seu guia numa paternidade adotiva que lhe vai preenchendo os vazios do coração. Depois os guias tornaram-se seus “netos”; filhos dos guias primeiros. Em sua velhice, um político lhe deu uma maquininha de cinema, que o cantador levava pelos povoados do interior, completando a exibição dos filmes com explicações e cantigas. 

      Viajava com uns burros, – mas com o tempo os burros foram morrendo e alguns amigos jornalistas se lembraram de iniciar uma subscrição para lhe comprarem um jipe. Aí, porém aconteceu uma tragédia: a pequena casa onde o Aderaldo morava em Quixadá (CE), “coberta de Jitirana, cheia de flor em botão”, pegou fogo; foi-se embora! 

                                                                   
       ESTA É A FLOR DA JITIRANA, QUE SEGUNDO ADERALDO, ENFEITAVA O TELHADO DE SUA CASA

      E o incêndio comeu também o projetor de cinema, os filmes, tudo. Desolado e sem teto, o poeta desistiu da subscrição, que já não tinha sentido. Os pouco contos de reis obtidos, deixou-os no banco onde estavam – “ficam para o meu enterro…”, dizia ele.

      Um deputado, seu admirador, doído daquela má sorte, obteve para o cantador uma casa da Fundação da Casa Popular, em Fortaleza. Mas aí apareceu um “algoz” – e denunciou o cego como proprietário em Quixadá “de uma casa e de um cinema” – aquilo que o fogo levara…

      Tudo isso ele contou e cantou, mais rido do que chorado, porque tinham a tristeza alegre. Quando partiu da casa da escritora- o jipe fora emprestado por um amigo, precisava chegar ao Quixadá antes da noite, conforme Rachel – nos deixou comovidos e tontos, como se a gente houvesse podido entrever, na sua profundidade natural, o escondido e singelo mistério do mundo. E se o corpo, o triste corpo de carne, nos continuava pesado e pregado ao chão, o coração aligeirado, contente, cantante, estava, ele sim, leve e inocente – “maneiro como uma abelha”…

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A PELEJA DO CEGO ADERALDO E ZÉ PRETINHO

Último texto

                                                  Quem a paca cara compra, paca cara pagará!
                                                          (Peleja com Zé Pretinho dos Tucuns)

                                                                                                                                                                 Cego Aderaldo
                                                                                                                                     
(Aderaldo Ferreira de Araújo)

Apreciem, meus leitores,
Uma forte discussão,
Que tive com Zé Pretinho,
Um cantador do sertão,
O qual, no tanger do verso,
Vencia qualquer questão.
Um dia, determinei
A sair do Quixadá
— Uma das belas cidades
Do estado do Ceará.
Fui até o Piauí,
Ver os cantores de lá.
Me hospedei na Pimenteira
Depois em Alagoinha;
Cantei no Campo Maior,
No Angico e na Baixinha.
De lá eu tive um convite
Para cantar na Varzinha.
Quando cheguei na Varzinha,
Foi de manhã, bem cedinho;
Então, o dono da casa
Me perguntou sem carinho:
— Cego, você não tem medo
Da fama do Zé Pretinho?
Eu lhe disse: — Não, senhor,
Mas da verdade eu não zombo!
Mande chamar esse preto,
Que eu quero dar-lhe um tombo
— Ele chegando, um de nós
Hoje há de arder o lombo!
O dono da casa disse:
— Zé Preto, pelo comum,
Dá em dez ou vinte cegos
— Quanto mais sendo só um!
Mando já ao Tucumanzeiro
Chamar o Zé do Tucum.
Chamando um dos filhos, disse
Meu filho, você vá já
Dizer ao José Pretinho
Que desculpe eu não ir lá
— E que ele, como sem falta,
Hoje à noite venha cá.
Em casa do tal Pretinho,
Foi chegando o portador
E dizendo: — Lá em casa
Tem um cego cantador
E meu pai mandou dizer-lhe
Que vá tirar-lhe o calor!
Zé Pretinho respondeu:
— Bom amigo é quem avisa!
Menino, dizei ao cego
Que vá tirando a camisa,
Mande benzer logo o lombo,
Porque vou dar-lhe uma pisa!
Tudo zombava de mim
E eu ainda não sabia
Se o tal do Zé Pretinho
Vinha para a cantoria.
As cinco horas da tarde,
Chegou a cavalaria.
O preto vinha na frente,
Todo vestido de branco,
Seu cavalo encapotado,
Com o passo muito franco.
Riscaram duma só vez,
Todos no primeiro arranco
Saudaram o dono da casa
Todos com muita alegria,
E o velhote, satisfeito,
Folgava alegre e sorria.
Vou dar o nome do povo
Que veio pra cantoria:
Vieram o capitão Duda Tonheiro,
Pedro Galvão, Augusto Antônio Feitosa,
Francisco, Manoel Simão,
Senhor José Campineiro,
Tadeu e Pedro Aragão.
O José das Cabaceiras
E o senhor Manoel Casado,
Chico Lopes, Pedro Rosa
E o Manoel Bronzeado,
Antônio Lopes de Aquino
E um tal de Pé-Furado.
Amadeu, Fábio Fernandes,
Samuel e Jeremias,
O senhor Manoel Tomás,
Gonçalo, João Ananias
E veio o vigário velho,
Cura de Três Freguesias.
Foi dona Merandolina,
Do grêmio das professoras,
Levando suas duas filhas,
Bonitas, encantadoras
— Essas duas eram da igreja
As mais exímias cantoras.
Foi também Pedro Martins,
Alfredo e José Segundo,
Senhor Francisco Palmeira,
João Sampaio e Facundo
E um grupo de rapazes
Do batalhão vagabundo.
Levaram o negro pra sala
E depois para a cozinha;
Lhe ofereceram um jantar
De doce, queijo e galinha
— Para mim, veio um café
E uma magra bolachinha.
Depois, trouxeram o negro.
Colocaram no salão,
Assentado num sofá,
Com a viola na mão,
Junto duma escarradeira,
Para não cuspir no chão.
Ele tirou a viola
De um saco novo de chita,
E cuja viola estava
Toda enfeitada de fita.
Ouvi as moças dizendo:
— Oh, que viola bonita!
Então, para eu me sentar,
Botaram um pobre caixão,
Já velho, desmantelado,
Desses que vêm com sabão.
Eu sentei-me, ele vergou
E me deu um beliscão.
Eu tirei a rabequinha
De um pobre saco de meia,
Um pouco desconfiado
Por estar em terra alheia.
Aí umas moças disseram:
— Meu Deus, que rabeca feia!
Uma disse a Zé Pretinho:
— A roupa do cego é suja!
Botem três guardas na porta,
Para que ele não fuja
Cego feio, assim de óculos,
Só parece uma coruja!
E disse o capitão Duda,
Como homem muito sensato:
— Vamos fazer uma bolsa!
Botem dinheiro no prato
— Que é o mesmo que botar
Manteiga em venta de gato!
Disse mais: — Eu quero ver
Pretinho espalhar os pés!
E para os dois contendores
Tirei setenta mil réis,
Mas vou completar oitenta
— Da minha parte, dou dez!
Me disse o capitão Duda:
— Cego você não estranha!
Este dinheiro do prato,
Eu vou lhe dizer quem ganha:
Só pertence ao vencedor
— Nada leva quem apanha!
E nisto as moças disseram:
— Já tem oitenta mil réis,
Porque o bom capitão Duda,
Da Parte dele, deu dez…
Se acostaram a Zé Pretinho,
Botaram mais três anéis.
Então disse Zé Pretinho:
— De perder não tenho medo!
Esse cego apanha logo
— Falo sem pedir segredo!
Como tenho isto por certo,
Vou pondo os anéis no dedo…
Afinemos o instrumento,
Entremos na discussão!
O meu guia disse pra mim:
— O negro parece o Cão!
Tenha cuidado com ele,
Quando entrarem na questão!
Então eu disse:
— Seu Zé, Sei que o senhor tem ciência
— Me parece que é dotado
Da Divina Providência!
Vamos saudar este povo,
Com sua justa excelência!
PRETINHO
— Sai daí, cego amarelo,
Cor de couro de toucinho!
Um cego da tua forma
Chama-se abusa-vizinho
— Aonde eu botar os pés,
Cego não bota o focinho!
CEGO
— Já vi que seu Zé Pretinho
É um homem sem ação
Como se maltrata o outro
Sem haver alteração?!…
Eu pensava que o senhor
Tinha outra educação!
P.
— Esse cego bruto, hoje,
Apanha, que fica roxo!
Cara de pão de cruzado,
Testa de carneiro mocho
— Cego, tu és o bichinho,
Que comendo vira o cocho!
C.
— Seu José, o seu cantar
Merece ricos fulgores;
Merece ganhar na saia
Rosas e trovas de amores
— Mais tarde, as moças lhe dão
Bonitas palmas de flores!
P.
— Cego, eu creio que tu és
Da raça do sapo sunga!
Cego não adora a Deus
— O deus do cego é calunga!
Aonde os homens conversam,
O cego chega e resmunga!
C.
— Zé Preto, não me aborreço
Com teu cantar tão ruim!
Um homem que canta sério
Não trabalha verso assim
— Tirando as faltas que tem,
Botando em cima de mim!
P.
— Cala-te, cego ruim!
Cego aqui não faz figura!
Cego, quando abre a boca,
É uma mentira,pura
— O cego, quanto mais mente,
Ainda mais sustenta e jura!
C.
— Esse negro foi escravo,
Por isso é tão positivo!
Quer ser, na sala de branco,
Exagerado e altivo
— Negro da canela seca
Todo ele foi cativo!
P.
— Eu te dou uma surra
De cipó de urtiga,
Te furo a barriga,
Mais tarde tu urra!
Hoje, o cego esturra,
Pedindo socorro
— Sai dizendo: — Eu morro!
Meu Deus, que fadiga!
Por uma intriga,
Eu de medo corro!
C.
— Se eu der um tapa
No negro de fama,
Ele come lama,
Dizendo que é papa!
Eu rompo-lhe o mapa,
Lhe rompo de espora;
O negro hoje chora,
Com febre e com íngua
— Eu deixo-lhe a língua
Com um palmo de fora!
P.
—No sertão, peguei
Cego malcriado
— Danei-lhe o machado,
Caiu, eu sangrei!
O couro eu tirei
Em regra de escala:
Espichei na sala,
Puxei para um beco
E, depois de seco,
Fiz mais de uma mala!
C.
—Negro, és monturo,
Molambo rasgado,
Cachimbo apagado,
Recanto de muro!
Negro sem futuro,
Perna de tição,
Boca de porão,
Beiço de gamela,
Vento de moela,
Moleque ladrão!
P.
— Vejo a coisa ruim
— O cego está danado!
Cante moderado,
Que não quero assim!
Olhe para mim,
Que sou verdadeiro,
Sou bom companheiro
— Canto sem maldade
E quero a metade,
Cego, do dinheiro!
C.
— Nem que o negro seque
A engolideira,
Peça a noite inteira
Que eu não lhe abeque
— Mas esse moleque
Hoje dá pinote!
Boca de bispote,
Vento de boeiro,
Tu queres dinheiro?
Eu te dou chicote!
P.
— Cante mais moderno,
Perfeito e bonito,
Como tenho escrito
Cá no meu caderno!
Sou seu subalterno,
Embora estranho
— Creio que apanho
E não dou um caldo…
Lhe peço, Aderaldo,
Que reparta o ganho!
C.
— Negro é raiz
Que apodreceu,
Casco de judeu!
Moleque infeliz,
Vai pra teu país,
Se não eu te surro,
Te dou até de murro,
Te tiro o regalo
— Cara de cavalo,
Cabeça de burro!
P.
— Fale de outro jeito,
Com melhor agrado
— Seja delicado,
Cante mais perfeito!
Olhe, eu não aceito
Tanto desespero!
Cantemos maneiro,
Com verso capaz
— Façamos a paz
E parto o dinheiro!
C.
— Negro careteiro,
Eu te rasgo a giba,
Cara de gariba,
Pajé feiticeiro!
Queres o dinheiro,
Barriga de angu,
Barba de guandu,
Camisa de saia,
Te deixo na praia,
Escovando urubu!
P.
— Eu vou mudar de toada,
Pra uma que mete medo
— Nunca encontrei cantador
Que desmanchasse este enredo:
É um dedo, é um dado, é um dia,
É um dia, é um dado, é um dedo!
C.
— Zé Preto, esse teu enredo
Te serve de zombaria!
Tu hoje cegas de raiva
E o Diabo será teu guia
— É um dia,
é um dedo, é um dado,
É um dado, é um dedo, é um dia!
P.
— Cego, respondeste bem,
Como quem fosse estudado!
Eu também, da minha parte,
Canto versos aprumado
— É um dado, é um dia, é um dedo,
É um dedo, é um dia, é um dado!
C.
— Vamos lá, seu Zé Pretinho,
Porque eu já perdi o medo:
Sou bravo como um leão,
Sou forte como um penedo
É um dedo, é um dado, é um dia,
É um dia, é um dado, é um dedo!
P.
— Cego, agora puxa uma
Das tuas belas toadas,
Para ver se essas moças
Dão algumas gargalhadas
— Quase todo o povo ri,
Só as moças 'tão caladas!
C.
— Amigo José Pretinho,
Eu nem sei o que será
De você depois da luta
— Você vencido já está!
Quem a paca cara compra
Paca cara pagará!
P.
— Cego, eu estou apertado,
Que só um pinto no ovo!
Estás cantando aprumado
E satisfazendo o povo
— Mas esse tema da paca,
Por favor, diga de novo!
C.
— Disse uma vez, digo dez
— No cantar não tenho pompa!
Presentemente, não acho
Quem o meu mapa me rompa
— Paca cara pagará,
Quem a paca cara compra!
P.
— Cego, teu peito é de aço
— Foi bom ferreiro que fez
— Pensei que cego não tinha
No verso tal rapidez!
Cego, se não é maçada,
Repete a paca outra vez!
C.
— Arre! Que tanta pergunta
Desse preto capivara!
Não há quem cuspa pra cima,
Que não lhe caia na cara
— Quem a paca cara compra
Pagará a paca cara!
P.
— Agora, cego, me ouça:
Cantarei a paca já
— Tema assim é um borrego
No bico de um carcará!
Quem a caca cara compra,
Caca caca cacará!
Houve um trovão de risadas,
Pelo verso do Pretinho.
Capitão Duda lhe disse:
—Arreda pra lá, negrinho!
Vai descansar o juízo,
Que o cego canta sozinho!
Ficou vaiado o pretinho.
E eu lhe disse:
— Me ouça, José: quem canta comigo
Pega devagar na louça!
Agora, o amigo entregue
O anel de cada moça!
Me desculpe, Zé Pretinho,
Se não cantei a teu gosto!
Negro não tem pé, tem gancho;
Tem cara, mas não tem rosto
— Negro na sala dos brancos
Só serve pra dar desgosto!
Quando eu fiz estes versos,
Com a minha rabequinha,
Busquei o negro na sala,
Mas já estava na cozinha
— De volta, queria entrar
Na porta da camarinha!

 Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.