Ouso dizer que ela deu uma cambalhota na própria vida, que tomou um rumo insuspeitado por todos. E não vejo nisso exagero algum, na medida em que, estando já na idade em que se encontra, e acostumada à rotina de uma vida segura e tranqüila, tenha optado por viver de mochila nas costas, se arranchando onde cansem as pernas ou decida a cabeça.

      O marido, aposentado da Caixa Econômica, senhor então de invejável pacatez, pescador de primeira, até hoje se pergunta onde foi que se perderam. No dia do sumiço, foi a todos os lugares convencionais: delegacia, hospitais, necrotério. Mas, quando soube que ela saíra com a roupa do corpo e uma bolsa, desdenhando todo o conforto doméstico propiciado por anos de labor e mutretas na gerência do banco, pôs a casa abaixo.

      Espumava. Seus olhos, injetados de ódio, viam, em cada objeto, o rosto da “vagabunda”. Armado de um porrete tirado não se sabe de onde, arrebentava, espatifava as louças. Nunca se ouviram de sua boca palavrões como aqueles, de escurecer o tempo.

      Passada a tormenta, sobrou um rancor grânulo, um amargor que veio a se refletir no queixo sempre tenso, no bico permanente e no cenho carregado de censura aos outros, sobretudo às mulheres.

      Agora, quando bebe, cai em prantos, chama-a carinhosamente pelo apelido, para, súbito, ser tomado daquele mesmo ódio e desatar em imprecações, ameaças, desejos de morte ao mundo.

      Obviamente, ninguém sabe onde ela anda. Sua última correspondência é de Amsterdã, tem bem uns dois anos. Já ele, não é difícil de encontrar: passa as tardes no gamão, as noites na adega e as manhãs na cama. Os filhos o visitam nas datas de praxe. Na sala da mais velha, uma foto dela, corada, sorrindo, no Congo.