“– Foi um grande erro abolir a escravatura!…”
Ideologia e literatura se tangenciam, ou ainda, ideologia e arte,, porquanto pressupõem o mesmo universo das relações inter-humanas, não custa reafirmar. Inúmeras produções artísticas retratam o negro no Brasil, e, mergulhar um pouquinho que seja nessa produção (como em toda a arte) exige escolhas e interpretações, e isso certamente já contribui para considerar mais conscientemente algumas questões da formação do povo brasileiro.
Antonio Callado, escritor e dramaturgo comprometido com a ótica do oprimido, produziu um conjunto de textos sobre esta temática, ao que chamou de “ciclo de teatro do negro“ – A revolta da cachaça, O tesouro de Chica da Silva, Uma Rede para Iemanjá e Pedro Mico – este último compõe o projeto Formação de Público da Prefeitura de São Paulo, com apresentações gratuitas, domingo, às 16 horas, no teatro João Caetano (rua Borges Lagoa, 750).
Pedro mico, personagem protagonista que dá título à peça,, malandro de morro na década de 50, é interpretado por “um negro de verdade“ (o ator Luciano Quirino), segundo disse um estudante depois do espetáculo. A expressão, “um negro de verdade“, se justifica porque nas outras duas montagens que se têm notícia, uma em 1957 e outra pelo inicio dos anos 70, os personagens negros foram interpretados por atores brancos com o rosto pintado de negro.
O enredo é mais ou menos simples: Pedro mico é analfabeto e procura amasiar-se com Aparecida, uma prostituta, tendo por critério o fato de que esta, sabendo ler, poderia ler os jornais para ele. Após ter ouvido uma estória mitificada de Zumbi dos Palmares, contada por Aparecida, Pedro, encurralado pela polícia, monta uma estratégia com a qual consegue se safar.
Um garoto de uma escola municipal do Capão Redondo me disse, dias depois de ter assistido o espetáculo: “A peça fala de coisas importantes e não é chato de assistir“. O referido “não é chato de assistir“, na fala de um garoto de periferia violenta, desassistida e bombardeada pela estética da televisão, é um indicativo de que a arte e a ideologia imbricadas constituem um complexo formativo potencialmente eficaz. Teatro é conflito, também entretenimento e prazer. O que às vezes custa a ser alcançado por um infindável discurso, pode ser alcançado numa pequena seqüência de momentos dramáticos e risíveis.
Ah! A propósito da frase do título? –- Depois dessa fala, Julião é questionado imediatamente, por outro personagem, o Conselheiro Acácio, que apela para o “princípio da liberdade“, e, mesmo concordando que “os pretos“ eram grandes cozinheiros, arremata dizendo que a liberdade é um bem maior. (Inquirições a este respeito, cartas para o Sr. Eça de Queirós – 1845/1900).