“Só agora estou saindo da clandestinidade”, diz a viúva Drummond
Maria Esther Cristelli Drummond foi casada com o ex-dirigente comunista João Batista Franco Drummond. Eles viveram na Vila Nova, em Goiânia, de forma clandestina. Drummond foi um dos que “caíram” no episódio que ficou conhecido com “Chacina da Lapa”, no dia 16 de dezembro de 1976.
Após reunião do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) que foi realizada em uma casa na Rua Pio XI, no bairro da Lapa, na cidade de São Paulo, os militantes foram surpreendidos com tiros e com a invasão da residência.
Morreram Ângelo Arroyo e Pedro Pomar, assassinados covardemente pelos militares. Foram presos e torturados, por vários dias, lideranças como Aldo Arantes, Haroldo Lima, Elza Monnerat, Joaquim Celso de Lima e Wladimir Pomar. Drummond não resistiu às agressões sofridas, falecendo nas celas do DOI-Codi.
A versão oficial diz que Arroyo e Pomar morreram em troca de tiros com a polícia, após resistirem à prisão por atividades subversivas. Nenhuma arma jamais foi encontrada na casa onde estavam. Já para Drummond, inventaram que morreu atropelado enquanto fugia da polícia pelas ruas de São Paulo.
Quase 33 anos depois, João Batista Franco Drummond, o Evaristo, foi anistiado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, em audiência realizada durante o 12º Congresso do PCdoB. Maria Ester, que usava o nome de Sônia, volta a Goiânia pela primeira vez desde o exílio em Paris após a tragédia da Lapa, e diz que sente como se só agora estivesse saindo da clandestinidade.
Confira a entrevista:
Paulo Victor Gomes – Como está sendo, para você, retornar à Goiânia depois de mais de 35 anos? Quais as lembranças que vêem à tona a princípio?
Ester Drummond – O que me tocou foi a recepção que eu tive do Partido Comunista no aeroporto. Na época em que vivi aqui, o partido era clandestino. Tínhamos dor de cabeça só de ouvir falar no Partido Comunista, porque pensávamos que tinha vazado alguma coisa para a repressão. Não tínhamos a liberdade dos companheiros estarem no aeroporto esperando. Chegar e ser recebida por dirigentes comunistas já dá outra idéia da vida, da democracia no Brasil. Outra coisa é a idade. Você sai com 30 anos e volta com 66. Eu me lembro daquela juventude que vivia se escondendo, mas, ao mesmo tempo, estava sempre com razão, achava que ia transformar o mundo e que o sacrifício valia à pena. A gente tinha certeza de que não tinha outra coisa para fazer! Era aquilo mesmo que tínhamos que fazer. A ditadura nos obrigava a isso, sofríamos com a repressão nas coisas mais fundamentais do ser humano. Eu não tinha a menor dúvida! Quando as pessoas falam da luta política, da repressão na ditadura, eu penso que havia sim tudo isso, mas havia também uma leveza: aquela certeza de que a gente estava no caminho certo.
PV – E como foi para você a experiência de viver na clandestinidade, com duas filhas, combatendo uma ditadura militar?
ED – Tem dois lados. Um é esse que eu te falei: a gente era uma juventude muito unida que acreditava muito no que fazia, que tinha o partido, as idéias, as lutas políticas. Tinha outro lado. Apesar de que a gente não se considerar vítima, nós éramos vítimas. A gente era acuado, perseguido, escondido, nos subterrâneos. Tem esse lado que em certos momentos da vida parece muito forte. Separação de crianças, medo de acontecer alguma coisa com as nossas filhas, a quantidade de vezes que tínhamos que nos mudar. Eu vivi em Recife por quatro anos, mudei de casa umas sete vezes. Tínhamos que trocar de nome, as meninas choravam porque não queriam trocar de nome. Para a família era um drama.
Eu me casei com o João em 1966, em 1968 já existia uma repressão enorme. 1968 era uma época em que o mundo evoluía: o movimento de estudantes, as liberdades da mulher, a pílula anticoncepcional… Tinha muita coisa que nos levava a pensar que precisávamos ter um país mais livre, que dê educação para as crianças, que possibilite a luta política. Hoje em dia, por exemplo, fui acertar uns papéis lá em Belo Horizonte, porque meus papéis estão todos atrasados, cheguei numa repartição pública e pude pedir o que queria. Antes, não podíamos falar nada, éramos sempre vistos como criminosos.
O país mudou muito. O serviço público, a educação, a questão da luta política, é tudo outra coisa. Eu acho que o país não pode regredir, tem que abrir mais condições para ficar cada vez mais democrático. Tem gente que fala que naquela época a música era melhor, que tinha Chico Buarque com as músicas da revolta. É verdade. Mas nada impede de ter essas músicas hoje também. Basta a juventude começar a fazer não só por revolta. Além disso, ainda tem muita coisa pra se revoltar no Brasil. É muito bom viver num país livre, isso nós não podemos perder. Eu quero retomar uma política ativa em relação ao Brasil.
PV – Já que você tocou no assunto, como você avalia o atual momento do Brasil, depois desses quase oito anos de Governo Lula?
ED – Eu conheço pouco o Brasil. Eu assisti ao Congresso do PCdoB em novembro do ano passado, foi maravilhoso. Encontrei muita gente que eu conhecia, troquei muitas idéias. O fato do pessoal hoje ser deputado, ter cargos políticos, representação, o Partido Comunista com mais de 200 mil membros, tudo me deixou muito entusiasmada. Entusiasmo não, é uma coisa mais forte que eu não sei definir. Eu acho que a sociedade melhorou, está mais ordenada, as crianças estão mais bem cuidadas. Tem muito problema, mas melhorou muito, Eu vejo uma TV brasileira lá na França, a Record News, e só mostram crimes, enchentes. Quando você chega aqui no Brasil, você encontra um país diferente. Já falei do serviço público: antes, para fazer uma carteira de identidade você tinha que contratar um despachante ou perder um dia inteiro em filas, era mal tratado, tinha que dar dinheiro… Isso mudou muito. E o serviço público é a alma do país.
PV – Como foi se exilar num país tão distante da sua terra natal, com duas filhas para criar? Como foi a vida em Paris?
ED – Eu tinha dor de cabeça até de falar meu nome na rua. Quando o pessoal falava de mim, da minha história, eu tinha dor de cabeça. Depois, como eu estava sozinha com duas meninas, eu trabalhei demais. Eu costumo dizer que agora que eu estou começando a andar nas ruas de Paris, porque eu trabalhei 70 horas por semana durante vários anos. Só descansava um domingo e um sábado por mês, durante cinco anos. A minha filha mais velha, Rosa Maria, agora que está decidindo fazer universidade. Por outro lado, a França é um país que, embora esteja perdendo muito isso atualmente, é um país democrático. Teve a Revolução Francesa, a Comuna de Paris, e isso deixou traços que não voltam atrás. Até hoje tentam voltar atrás, mas não conseguem, porque esses acontecimentos marcaram a sociedade profundamente. Um país democrático é outra coisa. O que eu desejo para nós é a democracia real. Existe a democracia das liberdades, mas tem também a democracia de ter educação para todo mundo, ter casa, ter liberdade de discutir, eleger.
PV – Você citou sua vinda ao Brasil durante o 12º Congresso do PCdoB. Na ocasião, foi julgado o processo de anistia do seu ex-marido. O que representou para você o fato dele ter sido anistiado?
ED – Representou o seguinte: teve uma pessoa que durante a audiência me falou que eu estava saindo da clandestinidade agora. Eu concordo. Foi a primeira vez que eu falei publicamente sobre a minha história. A minha família é uma família católica, não é política. Eles escondiam a minha militância. Quando eu visitava o Brasil, a ligação que eu tinha era com eles, então, não conversávamos sobre isso. Isso me tirava da sociedade, eu só podia ser vítima. Lá no Congresso do PCdoB, eu falei da minha vida. Foi como me reassumir. Quando eu cheguei a Paris, as meninas já estavam com oito, nove anos, e não tinham grupo escolar. Quando teve a anistia, tinha dois anos que eu estava em Paris, elas tinham acabado de aprender o francês. Para eu voltar era muito difícil. O partido estava começando a se reestruturar, a família não podia me ajudar… Aí eu fui ficando lá. Eu simplesmente não pude voltar da França. Com o julgamento da anistia, foi dada alguma legitimidade, porque, inclusive, o atestado de óbito do João eu ainda não registrei, porque está falso. Lá está falando que ele morreu na rua, em acidente. Meu sogro teve que mentir para ter o corpo para enterrar. A gente não foi nem no enterro dele. Eu quero corrigir isso antes de utilizar como documento oficial. Mas isso é minha palavra contando história. Quando é reconhecido legitimamente por um governo, por um Ministro, isso dá uma legitimidade para a vida da gente.
PV – Hoje, no Brasil, se discute muito a reabertura dos arquivos da ditadura militar. Somos um dos poucos países da América Latina que ainda não reconheceu o crime que foi a ditadura. Qual a sua opinião sobre esse tema?
ED – Talvez o que eu vou te falar vai te chocar. Eu sou pela reabertura dos arquivos para se apurarem as responsabilidades pelo que aconteceu no país. Não no sentido de dizer quem é vitima, mas no sentido de reconhecer os direitos de quem foi preso, torturado e morto. Mas, eu acho que cada país tem sua cultura. O problema fundamental é que não foi dada anistia, só deixaram passar certas coisas. Mesmo essa lei vigente, é uma lei que não diz ao povo brasileiro: “olha, ele foi torturado, ele morreu na prisão”, não é isso. Nós todos sofremos na ditadura, isso tem que ser reconhecido muito mais profundamente.
Tem um comitê lá na França que luta conta a impunidade, ainda, dos nazistas, etc. Mas, eu acho que cada país deve tratar do problema a sua maneira. Eu não gosto muito de fanatismo, nem num sentido nem no outro. Mas eu acho que as pessoas não podem ficar aí impunes, tinha que falar “fulano foi torturador”, julgar cada um, isso tinha que fazer. A gente vê nessas horas que o exercito não avançou um passo. No Brasil existe uma anistia capenga.
PV – Ainda existem generais do exército que, no dia 31 de março, vão a público elogiar a “revolução de 1964”…
ED – Essa situação é complicada. Na II Guerra Mundial teve uma traição no governo francês. O (Philippe) Pétain entregou o país para a Alemanha. O (François) Mitterrand, que era uma socialista, colocou flores sobre a sepultura do Pétain. Isso, porque ele reconhecia o que o Pétain tinha feito antes daquela época. Foi o Chirac que acabou com isso: um governo de direita. É bem complicado isso, mas eu acho que tem que ter uma lei mais profunda que essa que está aí.
PV – Só para a gente finalizar, qual o motivo dessa visita ao Brasil?
Eu sempre venho ao Brasil visitar minha família. Agora, essa visita a Goiás, eu acho que só agora estou saindo da clandestinidade. Depois da anistia, estou começando a me reencontrar com a vida de antes. Num é dar um salto ao passado, é assumir o passado no presente.
Paulo Victor Gomes é dirigente estadual do PCdoB, diretor da CTB-GO, ex-presidente estadual da UJS, atualmente é assessor do vereador Fábio Tokarski.