Sonhos de Lítio: A Bolívia se tornará a Arábia Saudita da era do carro elétrico?
A cidade representa uma Bolívia que poderia ter sido um país que tivesse capitalizado sua extraordinária riqueza mineral para se transformar numa potência industrial. Uma Bolívia que poderia ser imaginada com facilidade em 1611, quando Potosí era uma das maiores cidades do mundo, com 180 mil habitantes – mais ou menos o tamanho de Londres na mesma época.
Embora Potosí tenha surgido como uma cidade de mineiros, com as tabernas e as casas de jogo que acompanham os homens da fronteira, em pouco tempo construiu igrejas e teatros magníficos, e mais de uma dúzia de escolas de dança. De meados do século xvi a meados do xvii, metade da prata extraída no Novo Mundo vinha de Cerro Rico. Carlos Mesa, o historiador que ocupou a presidência da Bolívia de 2003 a 2005, contou-me que, “por todo o império espanhol dizia-se ‘Isto vale uma Potosí’, quando se falava de sorte ou riqueza”. Hoje Potosí é um dos lugares mais pobres daquele que é há muito tempo um dos países mais pobres da América do Sul.
Do lado de lá da fronteira da Revolução Industrial, há outra cidade cuja promessa de grandeza jaz em ruínas: Detroit. Antes mesmo que o primeiro Oldsmobile Curved Dash emergisse da linha de montagem, em 1901, tornando-se o primeiro carro americano produzido em massa, Detroit já era um vistoso centro industrial, com suas imensas fábricas de ferro, cobre, vagões de carga, navios, cerveja e produtos farmacêuticos. Seguindo os passos do Oldsmobile, fabricantes de carros como a Ford, a Packard e a Cadillac mudaram a economia americana. Mas a glória de Detroit foi incrivelmente passageira. A cidade tem hoje metade do tamanho que tinha há cinquenta anos. Duas das “Três Grandes”, a gm e a Chrysler, foram à bancarrota no ano passado, e todas elas reduziram drasticamente o número de funcionários.
O índice de desemprego em Detroit é de 15%, a proporção de assassinatos por habitante é a quarta maior dos Estados Unidos e cerca de um terço dos seus moradores vive na pobreza. Uma quantidade estimada de 70 mil construções – entre casas, igrejas, fábricas e até arranha-céus – encontra-se vazia, muitas delas vandalizadas ou incendiadas. Como a Bolívia, Detroit espera uma segunda oportunidade. E ambas sonham com um tesouro que poderia ressuscitar sua riqueza e, de quebra, proporcionar ao mundo um ambiente mais limpo. Esse tesouro é o lítio.
O mais leve de todos os elementos sólidos, o lítio teve até agora um papel industrial apenas modesto. De cor prateada, mais maleável que o chumbo, ele vinha sendo usado sobretudo em ligas de alumínio, como base para graxa de automóveis e na produção de vidro e cerâmica. É tão instável que não se pode encontrá-lo em forma pura na natureza. O lítio flutua – ou melhor, se agita descontroladamente à flor d’água, emitindo uma nuvem de vapor de hidrogênio até se dissolver. De maneira estranha, tendo em vista sua natureza freneticamente reativa, o lítio tem um poderoso efeito tranquilizante, e há muito vem sendo usado como droga para o tratamento de transtornos de comportamento, sobretudo as manias.
Na década de 50, o governo americano criou um mercado para o lítio quando um isótopo do metal revelou-se útil para a construção de armas termonucleares. Mas a demanda por lítio, que tem propriedades corrosivas, além de tendência à combustão espontânea, manteve-se praticamente inalterada noutras frentes. Isso mudou de uma hora para outra com a proliferação dos telefones celulares e dos computadores portáteis: o lítio é ideal para fazer pilhas leves. Agora, com o surgimento dos carros elétricos, ele poderá suceder o petróleo como o principal combustível. E metade da reserva mundial encontra-se sepultada em vastas planícies de sal do sudoeste da Bolívia, a maior das quais se chama Salar de Uyuni. Os bolivianos já começam a falar da transformação do país na “Arábia Saudita do lítio”.
Mas não está claro se a Bolívia será capaz de ganhar dinheiro com o seu tesouro. Morales, que está alinhado com o socialismo populista de Hugo Chávez, o presidente da Venezuela, é dado a declarações radicais: “Ou bem o capitalismo morre ou então o planeta Terra morre.” Essa retórica tende a afugentar o investimento estrangeiro que poderia facilitar o desenvolvimento do Salar. E há também as deficiências do país em matéria de infraestrutura: a eletricidade, a água e o gás têm distribuição esparsa, e poucas das estradas são pavimentadas. Antes que a Bolívia possa ter a esperança de explorar um combustível do século xxi, ela precisa desenvolver os rudimentos de uma economia do século xx.
Chega-se ao Salar por uma estrada de terra suja e estreita, que desce os Andes e serpenteia, em zigue-zague, cânions ensolarados e planícies secas. Lhamas e vicunhas pastam, flamingos chapinham em charcos rasos. Até há pouco, geleiras cobriam o topo das montanhas, mas o aquecimento global vem provocando um considerável recuo do gelo, reduzindo o suprimento de água da Bolívia. Às portas de Uyuni, uma cidade de casas de argila erguida à beira da planície de sal, a paisagem mirrada está cheia de lixo, e sacolas de plástico colorido agitam-se nos ramos das árvores queñua.
Ao entrar na cidade, depara-se com um comitê de recepção de cães que latem sem parar. O aeroporto local está fechado há anos. Com uma população de 10 mil habitantes, Uyuni está a pouco mais de 300 quilômetros do oceano Pacífico, mas há mais de um século
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Fonte: revista Piauí