General Stanley McChrystal, o destrambelhado
Foram-se os dias em que o Washington Post derrubava presidentes (agora, o Post, além do The New York Times, prefere guerras, no Iraque, no “Af-Pak”, no Irã). Hunter S. Thompson, mestre Gonzo[1], deve estar celebrando com tiros de tequila-da-boa, naquele túmulo louco-selvagem; Rolling Stone derrubou um general, ao som de The End dos Th e Doors.
O que nos leva a Francis Ford Coppola que usou The Doors na abertura de Apocalypse Now – e à vitória dos EUA na guerra do Vietnã (mas só no cinema). McChrystal pode ser mostrado como cruza de Capitão Willard e Siô Kurtz original da obra prima de Conrad, modelo literário para o Coronel Kurtz de Marlon Brando. Ambos guerreiros-intelectuais – um à beira de cruzar o portal do coração das trevas, o outro já instalado lá dentro.
Embora saudado como herói por uma mídia caluniadora sicofântica selvagem, McChrystal, como Willard, é essencialmente um assassino treinado, cabeça de um esquadrão da morte ativo no Iraque antes do “surge”, o mesmo “surge” esculpido em pedra em Washington para pavimentar a trilha até a “vitória” dos EUA (ao mesmo tempo em que gera resultados lucrativos como The Hurt Locker, premiado com o Oscar de Melhor Filme).
Mais cedo ou mais tarde, um personagem kurtz-mcchrystaliano aparecerá em filme detona-quarteirão de Hollywood. Os EUA perderam a guerra no Vietnã; mas nas telas, ganharam. Os EUA estão perdendo a guerra no Iraque, mas estão ganhando, nas telas. E os EUA perderão a guerra no “Af-Pak” e ganharão, nas telas.
TS Eliot usou “Mistah Kurtz – he dead”, como epígrafe ao poema The Hollow Men[2]. Segundo a entrevista em Rolling Stone, o bando de irmãos [ing. band of brothers] é “seleta feita a dedo, de matadores, assassinos, espiões, gênios, patriotas, operadores políticos e maníacos de pedigree”, que se referem a eles próprios como “Equipe dos EUA South-parquesca”[3]. Bom. A ‘equipe’ parece mais uma versão Facebook dos “Homens Ocos” de Eliot:
Nossas vozes dessecadas / Quando juntos sussurramos /
São […] como […] pés de ratos sobre cacos /
Não surpreende que o presidente Barack Obama se mostrasse “desconfortável e intimidado” numa sala repleta de medalhados do Pentágono ao receber McChrystal. Obama é intelectual urbano progressista. Evidentemente e figadalmente, é homem que desconfia de McChrystal, daquele band of brothers, de fato, a maioria deles matadores e funcionários que povoam o sempre crescente complexo industrial militar. Ironia é que, ao mesmo tempo, aqueles funcionários do império também, fatalmente, desconfiam da falange de conselheiros de Obama, os quais não têm nem qualquer mínima ideia sobre “a missão”.
Mas… e qual seria “a missão” no “Af-Pak”? Para a equipe de Obama, trata-se de usar o Afeganistão à guisa de cunha para expandir a fissura já abismal que separa EUA e Irã, até que o Irã xiita e a Arábia Saudita Wahhabi sunita pulem diretamente um(a) na jugular do(a) outro(a).
Mas o complexo industrial militar quer mais, muito mais. Trata-se do novo grande jogo na Eurásia. É a “doutrina da total dominação do espectro” do Pentágono, que pressupõe a instalação de bases estratégicas no Afeganistão para vigiar e controlar os dois concorrentes estratégicos, Rússia e China, lá, junto àquelas fronteiras. Outra vez, trata-se do final dos anos 1990s; ou isolar ou esmagar ou subornar os Talibã, para que o sonho-delírio cachimbado – o Gasoduto Trans-afegão [ing. Trans-Afghan Pipeline (TAP)] – possa ser concretizado e leve o gás do Turcomenistão até os mercados ocidentais; esse gasoduto, não o gasoduto rival, anátema, gasoduto IP (Iran-Paquistão! Não!). Em duas palavras, trata-se de fazer a guerra infinita.
É fácil esquecer – como faz a mídia corporativa dos EUA – que, no frenesi noticiaresco sobre o “general desembestado”, a estratégia de contraguerrilha de McChrystal no Afeganistão, já está reduzida, conforme neologia que o próprio general cunhou, a um “Caos-istão”, e já faz tempo. Porque aplicar contraguerrilha em massa contra irmãos e primos pashtuns é receita alucinada para fracasso garantido. Washington sequer sabe quem é “o inimigo”; e os afegãos, por sua vez, só veem uma guerra de cristãos invasores contra a nação pashtun.
Essa receita foi “concebida” originalmente pelo novo comandante geral do “Af-Pak”, recem nomeado, patrão de McChrystal e comandante geral David [“Estou sempre me posicionando para as eleições de 2012”] Petraeus, herói conceitual do tal de “surge” no Iraque. O novo general é (quase) igual ao velho general. Digamos que Petraeus é versão mais engomada do Capitão Willard, sem o baixo-profundo Kurtzeano de McChrystal. O estribilho é o poderoso “Não seremos enganados outra vez!” de Peter Townshend. Ou seremos?
O evento “McChrystal cai em desgraça/McChrystal perde o emprego” é mais um dos clássicos não-eventos do Pentágono elevados à demência. O que o general entregou à Rolling Stone não passou de ejaculação de insultos genéricos, suaves, meigos, ternos, contra civis norte-americanos. O “guerreiro-intelectual” jamais deu qualquer sinal de que desejasse fazer qualquer crítica específica, detalhada, de toda a estratégia militar; afinal, a doutrina da total dominação do espectro, do Pentágono, não pode ser vendida pelo que realmente é. E até Obama já disse à imprensa que trocar um general por outro não implica mudar de estratégia. E há alguma estratégia? Há: a guerra infinita, estratégia que o Pentágono não permitirá que ‘vaze’.
Já faz muito tempo que a imensa, absurdamente cara, infinita, doentia obsessão norte-americana com guerra e guerras não mantém qualquer relação nem com a política nem com a realidade. Inscreve-se no campo da ficção – e o vai-da-valsa da troca de generais prossegue, como diria Eliot, “nesse vale oco”. Esses passos ficcionais acertam e continuarão a acertar, com mira mortal, ainda por muitos e muitos anos, “esta mandíbula em ruínas de nossos reinos perdidos”.
[1] Hunter Stockton Thompson (1937-2005). Jornalista e escritor, autor de Medo e Delírio em Las Vegas (port. Conrad, 2007, L&PM POCKET, 2010). Thompson criou um estilo, chamado “Jornalismo Gonzo”, caracterizado por não separar autor e sujeito, ficção e não-ficção (mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Hunter_S._Thompson) [NT].
[2] Em português, T. S. Eliot, “Os homens ocos”, Obra completa. Vol. I. – Poesia. Trad. Ivan Junqueira. São Paulo: Arx, 2004. p. 176-183 (“Assim expira o mundo. Não com uma explosão, mas com um gemido.”) Também em http://meandivas.blogspot.com/2007/07/hollow-men.html [NT].
[3] Referência a “South Park”, série de televisão. Mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/South_Park [NT].
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Fonte: Asia Times Online
http://www.atimes.com/atimes/South_Asia/LF25Df04.html
Tradução: Caia Fittipaldi