Encontro no corredor da Universidade Católica o professor, indigenista, Mário Arruda. Fala com entusiasmo de seu trabalho. Recorda um filme sobre Chico Mendes, o mártir da causa da floresta amazônica. Tira de suas memórias uma frase do seringueiro que está no filme: “Não quero morrer pela floresta, o que quero é viver pela floresta.” A morte violenta do líder amazônico iluminou, pirilampo em noite treda, o sentido anunciado. É bem certo que não estamos aqui para morrer, mas para viver nosso dia existencial. Nascimento e morte são incidentes que apenas exaltam o caminho entre esses dois momentos. No mais, tudo é vida. Penso que deveríamos ser lembrados, não por esses dois momentos agônicos. Um entre sangue, urina, fezes, choro e angústia em busca do ar. Penso que aí entra o espírito a animar o pequeno pedaço de carne pulsante. O outro quando esmaecido o tecido corporal se esvazia no repouso de alguma forma de existência surda e calada. Quando alguém cumpre este ciclo e vai levando sua bagagem corporal, temos a sensação de que algo de nós se rompeu. O universo de nossa estima, de nosso diálogo, de nosso olhar perdeu inexoravelmente uma porção. Ficamos faltos de uma parte saudosa, ficamos desinteirados de uma porção querida. Então, surge o milagre. A falta que sentimos não nos subtrai. A falta que é plena de sentido nos completa e vamos ficando assim, com os sentimentos, as vozes, as caras, os gestos de nossos mortos. Porque eles não nos deixam, com a viagem, a sua falta. Enche-nos com o milagre que foram suas vidas. Porque para viver, vivemos. Nos últimos tempos tenho sido golpeado por sucessivos afastamentos de companheiros que caminhavam bem pertinho de minha estrada. Às vezes andávamos juntos; outras, próximos; e até em sentidos contrários, às vezes. Mas íamos no mesmo barco, em busca dos mesmos moinhos de vento, das mesmas Pasárgadas, das mesmas Ítacas. Modesto Gomes, meu amigo, companheiro da Academia Goiana de Letras, e do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. Foi saindo discretamente como vivia. Ativo, enérgico e docemente afável. Disse no seu sepultamento que seu pai, o político e poeta Floriano Gomes, da velha São João da Paraúna, ao nomear de Modesto o primogênito, não imaginava que, sob o nome despretensioso, enviava ao mundo um filho excepcional. Modesto carregava as virtudes de sua grei interiorana. O riso amigo, o gesto contido, o coração suspenso. Desempenhou tarefas e aceitou desafios de gigante e a todos foi dando cumprimento e solução originais. No magistério, no jornalismo, na magistratura, na advocacia, a mesma firmeza, a mesma ousadia. Tudo domava com palavras e encantamento. Registrou traços da história e da literatura de Goiás. Vadeou pela ficção, sempre atento e vivaz como um trocadilho desconcertante. Modesto não contemplava a morte. Viveu para viver. Depois de sua passagem os lugares por aonde andou ficaram mais belos, mais presentes, mas alegres. As letras de Goiás, as ruas de Goiânia, as instituições, os olhares e as esperanças de sua família e dos amigos. Vou deixando aqui meu adeus ao Modesto transeunte. Vou inscrevendo aqui minhas boas vindas ao Modesto eternidade.
Adeus a Modesto Gomes
Encontro no corredor da Universidade Católica o professor, indigenista, Mário Arruda. Fala com entusiasmo de seu trabalho. Recorda um filme sobre Chico Mendes, o mártir da causa da floresta amazônica. Tira de suas memórias uma frase do seringueiro que está no filme: “Não quero morrer pela floresta, o que quero é viver pela floresta.” […]
POR: Aidenor Aires
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