O rosnar contínuo dos veículos irrita. Atravessar a rua é arriscado ato de sobrevivência. A cidade que devia ser morada do homem virou condomínio exclusivo dos automóveis. Os pedestres esgueiram-se, acossados nas faixas sempre invadidas pelas rodas. A buzina anuncia a intolerância do embarcado contra seu semelhante que ainda caminha. No ponto de ônibus, a humilhação cotidiana dos que dependem deles para as tarefas comezinhas da vida. Ir ao trabalho, às filas da previdência ou a algum posto de saúde. Já estão treinados na desconsideração pública. Resmungam espremidos nos bojos sacolejantes. Curvam a fronte submissa. Reclamar para quem? Nem mesmo nesses tempos de política há ouvidos atentos a essas penas. Nem sequer se pode queixar ao bispo. Há muito tempo os mandatários do país, assim chamados porque desfrutam de um mandato que o povo lhes dá para governar, deixaram de lado o transporte coletivo. Precisam cuidar da pobre indústria automobilística, do transporte individual, do consumo de combustíveis que alimentam as grandes corporações que saqueiam os finitos estoques do petróleo. Precisam financiar suas guerras, a expansão de seus patrimônios. Quem paga a conta é a ralé daqui de baixo. Gente que adquire um carro antes de aprender a dar bom dia ou a pedir licença. Vai por aí avançando sinais, atropelando, matando. Com esses a lei é complacente. Seus crimes são considerados de pouca monta. Quase não valem um processo. Penas simbólicas. Algum serviço à comunidade ou o pagamento de cesta básica. Aos mortos e aleijados, os aleijões e a morte. Sem esperanças, largados, à mercê dos veículos motorizados e poluentes, viram animais saltadores e, aos arrancos, disputam com ambulantes, anunciantes de empréstimos facilitados, e toda sorte de sobreviventes, o magro espaço das calçadas. Não adianta sonhar um futuro melhor. Mesmo agora que estão chegando as eleições e os cartazes e vídeos escancaram o riso alvar dos candidatos. Cansam o palavrório vazio, os recitativos de promessas, os reclames produzidos pelas agências de publicidade. De nada vale o embrulho que fazem para vender mercadoria bolorenta, apodrecida. Muitas vezes já conhecida de esparrelas anteriores. Do rouba, mas faz. Do melhor entre os piores. Já não se exige ficha criminal limpa. Vai ter que escolher no rol sem escolha. As exceções se diluem na massa ímpia. Depois, é responsabilizado por não saber escolher. Daí merecer o suplício de suportar a súcia mandando, roendo, triturando o que é de todos por quatro anos. As exceções estrebucham na ressaca, sem muito que fazer. Cruzam os braços ou entabulam acordos de convivência. A gente aqui em baixo fica como aquele povo que carregou pedra para a torre de Babel. Sem entender nada. Perdida nos dialetos que criaram para esconder o significado das coisas. Tem que curtir a purgação. Nem a primavera que ronda os ares de setembro pode dar sossego e esperança. Nem as chuvas de verão podem lavar esses ares.
Tempos secos
O rosnar contínuo dos veículos irrita. Atravessar a rua é arriscado ato de sobrevivência. A cidade que devia ser morada do homem virou condomínio exclusivo dos automóveis. Os pedestres esgueiram-se, acossados nas faixas sempre invadidas pelas rodas. A buzina anuncia a intolerância do embarcado contra seu semelhante que ainda caminha. No ponto de ônibus, […]
POR: Aidenor Aires
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