Eu não estava bem até aquela hora, com dores. Ainda tentei chamar minha filha, mas ela não me ouviu. Até pensei: ela poderia passar um café forte ou um chá de erva-cidreira. Mas a dor não passava!. Era uma dor no peito que só vendo!. Teve hora que ela me pegava até no pescoço. Não  podia nem respirar. Olhei para o relógio pendurado na parede atrás da porta. Era duas horas da madrugada. Para os lados do quarto da filha, que era separada do marido, não se ouvia nem um pio. – Deviam de estar dormindo, pensei. Levantei-me da cama.

      Pensei em ir no quintal tomar ar fresco. Abri  a porta e fui para o quintal. Lá fora estava tão claro que eu via até a minha sombra. Parecia que um farol estava iluminando a casa, o telhado, o pequeno quintal de casa geminada de periferia. Lá longe se ouvia um galo tentando tecer uma manhã com seu canto. Era uma lua cheia. Enquanto olhava a lua, uma lágrima caiu do meu olhar, umedecendo minha mão. Meu rosto num instante ficou todo molhado. Pensei comigo mesmo: já tenho sessenta anos nas costas, mas ainda sinto saudades de alguém que já se foi há mais de cinco, para morar ao lado de Deus. Senti uma mão no ombro. Minha filha foi ver "o que o velho foi fazer lá fora numa hora dessas".

      Ela me abraçou como há muito tempo nem queria ousar. E molhou a blusa do seu pijama com as minhas lágrimas. Disse para ela que estava com depressão, com dores e com saudades  da Maria, mãe dela. Ela me disse que também tinha saudades, mas que a vida tinha de continuar. Disse para minha filha que amava ela e que amava a Maria também. Disse a ela que haveria de ser feliz. Disse para ela que achava uma pena que nunca ter tido coragem de contar para a Maria do meu amor por ela. Naqueles  tempos eu só pensava em trabalhar!. Às vezes o cansaço da lida era tanto que dormia em seguida de comer um prato de comida. Eu dormia com as galinhas!. Nos domingos estava sempre sem disposição de ir na missa, ou visitar um compadre. Falei para minha filha todas essas coisas, coisas que nunca tinha tido coragem para contar. E ela só dizia: – tá bom pai, tá bom pai!.

      E eu chorei, chorei como nunca tinha chorado na vida. Nós entramos de volta para dentro de casa. Os netos acordaram:  uns disseram que estavam com fome, outro que doía um dente. Demos de comer para uns e outros, fizemos chá de capim santo; até eu tomei um pouquinho! Minha filha me pôs na cama, tal e qual ela fazia com as crianças dela; me cobriu, me deu um beijo, e disse que me amava. Naquele resto de noite meu espírito deu reviravoltas: sonhei que estava olhando a casa de cima do telhado, depois de mais encima, mais encima, até que tudo azulou. Eu então me vi num enorme jardim, bonito, com muitos bancos e crianças para tudo que era lado. E vi a Maria num banco rindo para mim.

      E ela era como eu a conheci:  nas flor dos seus quinze anos. Ela me abraçou com força e me disse que a filha e os netos iam ficar bem. E riu-se do boné que eu estava usando na cabeça; boné que a mãe dela me deu no dia em que fui pedi-la em namoro. Retirei o boné da cabeça e o analisei. Era mesmo o meu boné de menino. Reparei também  que eu usava suspensório e estava de calça curta.   Eu também era menino.

      Fez-se noite de lua cheia. Lembrei de tempos passados e do meu desleixo com as coisas do amor.

      Disse para a Maria que eu a amava!. Ela me retribuiu, e ainda recitou uma poesia para mim.

      Só então que me dei conta: eu estava no paraíso!

 
Do livro Fragmentos

 Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.