Um rabinho de texto
Ou, melhor dizendo, um rabinho de texto e uma promessa. O rabinho refere-se ao final da minha última matéria, publicada neste espaço, no qual, não sei se foi por esquecimento ou intencionalmente, deixei de levantar a principal comprovação da tese sobre miscigenação que vinha defendendo. Suspeito que foi por manha, pois ela, pensando bem, tornou-se praticamente irrefutánel – ou pelo menos bastante embaraçosa para os detratores – hoje, dia de véspera do início da Copa do Mundo de Futebol.
Para quem não leu ou não estava bem ligado no assunto da minha crônica anterior, preciso lembrar que gastei todo o meu latim para defender a criatividade como a maior virtude dos seres miscigenados, gente ou bichos. Apelei para as minhas muitas décadas de vivência no Brasil, um país que ostenta, creio, uma maioria populacional de cidadãos miscigenados, e pelas minhas freqüentes oportunidades de avaliar o pendor deles para sobressaírem-se nas atividades profissionais que exigem justamente esse requisito. Inclusive, entre os vários argumentos que usei para defender a minha convicção de que os múltiplos cruzamentos aguçam o dom de criatividade, trazia eu o exemplo dos meus gatos de rua que sempre criei (sim, aqueles coitadinhos desprezados e abandonados que eram chamados de bastardos, mas que hoje, mais elegantemente, são chamados de SRD – Sem Raça Definida).
Eu sei que a minha tese não tem comprovação científica, mas as evidências estão aí para embalar os sentimentos humanitários e igualitários de todo cidadão. Sentimentos que são produto da convivência social e que vão além da lógica da razão e das leis biológicas; que não permitem diferenciar ninguém pelas aparências, frutos ocasionais de cruzamentos. Às vezes, penso o quanto me sentiria ridículo se por uma infeliz contingência tivesse que me valer do fato de ser um branquinho milanês, de olhos esverdeados, provavelmente descendente de celta-cisalpinos ou de bárbaros teutônicos – nomes bonitos, esses, mas que só servem para registros de historiadores ou para criar personagens literários.
Voltando agora ao rabinho de texto que eu tinha guardado no bolso do colete: alguém já se deteve em pensar na cor da pele dos heróis nacionais de 32 países que vão entrar em campo para competir no esporte mais apaixonante do mundo levando consigo, porém, queira-se ou não, uma série de interesses agregados? E, portanto, sujeitos a provocar choques de toda natureza, que vão de políticos a raciais, de ideológicos a religiosos, e assim por diante? Sendo que a esperança é que eles sejam abafados por um enorme manto de irrefutável alegria? E mais: que a equipe brasileira, amada e reverenciada pelo mundo inteiro, será a única a desfilar uma gama coesa de atletas que vão da cor de leite à cor de café, passando pelo leite com café e pelo café com leite, exibindo a magia sedutora de sua criatividade, podendo, assim, representar um papel preponderante de mensageiros de paz nesses, esperamos, santos dias de armistício universal?
Os inconformados com a tese miscigenação x criatividade, dizem que se trata somente de habilidade, como se a história do mundo não estivesse aí para provar que as habilidades sempre foram, em qualquer nível e lugar, filhas legítimas da criatividade. Mas vamos deixar os preconceituosos e os complexados para lá e vamos curtir a nossa Copa trajados de verde e amarelo. Enquanto isso, nos intervalos, eu ficarei brincando com Xica da Silva, minha gatinha preta, que aprendeu sozinha a beber água corrente abrindo a torneira e, consciente de que é canhota, acha sempre um jeito de conduzir suas estrepulias com a mão esquerda (oh!, desculpem, queria dizer patinha).
Hoje, foi a primeira vez que escrevi alguma coisa referente à Copa e será provavelmente a última, pois todos nós seremos atropelados por avalanches de palavras e imagens, fatalmente repetitivas. E eu não quero cair nem em redundâncias, nem em pieguices. Talvez, só algum tempo depois do memorável evento aflore na maquininha de pensar alguma reflexão que valha a pena ocupar mais um tiquinho do nosso tempo.
I promise.