Num tempo talvez inimaginável, em que as leis (para bem ou mal) regulassem verdadeiramente tudo, alguém deveria lembrar-se de baixar um decreto sobre a publicação de livros de poesia: “livro de poemas – não se publica mais avulso, só em conjunto e depois de o poeta ter escrito, no mínimo, dois volumes num espaço de cinco anos.” Um decreto como esse, absurdo em tese, faz sentido quando se tem em mãos Estudos para o seu corpo (Cia da Letras, 2007), de Fabrício Corsaletti.

      Trata-se da reunião, em único volume, dos livros anteriormente publicados pelo autor, Movediço (2001), O sobrevivente (2003) e de dois inéditos, História das demolições e Estudos para o seu corpo. Observá-los em perspectiva diacrônica é interessante, pois se verifica como e em que intensidade um jovem poeta amadureceu o trato com a palavra e confere, quase que a cada poema, maior densidade aos seus propósitos. Isso bastaria para Corsaletti mostrar ao mundo literário que é um talento que já não se pode ignorar. Trata-se de um autor capaz de evoluir sem perder uma inquietude muito peculiar.

      Dono de um olhar poético arquitetado de modo especial, Corsaletti nasceu em 1978 em Santo Anastácio, interior de São Paulo. Em 1997, mudou-se para São Paulo e formou-se em Letras pela USP. O reconhecimento do mainstream literário virá este ano, quando, ao lado de Cecília Gianetti e Verônica Stigger estará na primeira mesa de debates da Festa Literária de Paraty (FLIP), intitulada “Futuro do presente”. Na ocasião, a promessa é discutir “o que será e já está sendo a literatura brasileira”.

      Estudos para o seu corpo mostra uma lírica vigorosa, que equaciona contradições de toda ordem, tornando qualquer assunto poesia. Os textos revelam os assuntos sempre atravessados pela luz de um enorme coração – símbolo do corte lírico que o poeta aplica em tudo que vê. Nos temas, não há muitas variações: recuperação da memória familiar, impressões sobre a cidade grande, o amor e o corpo feminino. A grande qualidade está na presença delicada do coração provinciano que, em ritmo de artesania, vai costurando opostos, dando-lhes unicidade na contradição. Corsaletti expõe um jogo de confrontos, que salta com aparência de suavidade ao leitor, mas que encerra, na raiz, violentos choques entre contrários.

      A primeira dessas oposições profundas está na configuração do coração provinciano que fala nos poemas. É por meio de uma sensibilidade que se diria ‘interiorana’, a qual enxerga com espanto a cidade, que o olhar lírico de Corsaletti se molda. A situação limite desse dilema está armada na primeira estrofe do poema “Amor”: “Quando cheguei/ a esta cidade –/ todo lambuzado/ dos beijos de mamãe,/ fulminado/ pelo olhar/ poderoso de meu pai”. Em outros poemas, a cidade grande é algo maior do que a compreensão facultada pelo exercício lírico: “A cidade não cabe/ cheguei no limite do poema”. Um limite que é conferido também pela ocupação do poema pelo eu, que é tirânico, pois não deixa assunto algum sobressair-se a ele: “não procuro ninguém/ nesta cidade/ corpo entre ruídos/…/ meu pensamento sempre em outro lugar”. No fim das contas, é um desconfiado interiorano, tipicamente brasileiro, quem vai desvendando a cidade grande e a memória da província: “Na cidade em que nasci/ havia um bicho morto em cada sala/ mas nunca se falou a respeito/ os meninos cavávamos buracos nos quintais”.

      Outra oposição que se revolve sob a capa da mansidão vocabular de Corsaletti é a que se refere ao corpo feminino e à sublimação do sentimento amoroso. Condensada num pequeno poema sem título, essa contradição ganha tons de sorriso maroto: “Amo aquela mulher/ desde o momento/ em que a vi mijando/ descontrolada em pé/ aquela mulher era puro amor”. Diversas vezes, o que era desejo carnal sublima-se e o sublime torna-se corpo. O coração indeciso revela, assim, achados poéticos, como no poema “braços”: “seus braços são a única coisa do mundo/ sem morte”.

      Dessa contradição entre o amor ideal e o sentimento da carne surge outra, de alcance maior dentro da poesia de Corsaletti. Trata-se da oposição entre um sentimento que ferve, pois vem direto do coração que fala e o aparato lingüístico da poesia, frio em última instância, mas que é a via capaz de comunicar ao mundo o sentimento. Exemplo disso está na última estrofe do poema “Girassol”, em que o poeta escreve: “Imagino que pode/ este girassol,/ vir a ser/ amor,/ ou morrer, silencioso,/ nesta página”. A tentativa de resolver o dilema está na recuperação da dicção coloquial e íntima do nosso modernismo, que Corsaletti recupera sem pastiche, na maioria das vezes, apesar de, em alguns momentos, uma sombra imensa de Bandeira ou Drummond quase apagar a originalidade do poeta.

      Sua originalidade mais produtiva está nos poemas curtos, capazes de, em duas linhas, provocar alta tensão poética. Nesses casos, poder-se-ia falar em uma poesia do hiato, em que a sugestão e o silêncio produzem a luminosidade lírica. Bastam dois deles para evidenciar onde estão os melhores momentos de Corsaletti. “Lembrança” tem três versos e uma vida pressuposta: “as mãozinhas abertas/ do homem-bala que não/ alcançou o trapézio”. No poema “10”, a síntese do esquema do coração contraditório, violento e terno, a que Corsaletti dá voz: “a ternura/ como último desdobramento da revolta”.

      Eis o perfil de um ‘trovador inquieto’, que construiu uma voz original dentro do complicado terreno da lírica amorosa, sempre cheia de melindres e armadilhas. Se não conseguiu escapar de todas as arapucas do gênero, Corsaletti foi capaz de evoluir, adensando a pesquisa em torno dos meios literários pelos quais se pode dar a ver as várias dimensões do amor, sentimento revolto, que escapa à certeza e instaura a inquietude em cada esquina da poesia.