Em Brejo das Almas, coletânea de poemas publicada em 1934, Drummond atestava com violência a dificuldade de se conceber uma nacionalidade dentro do problemático contexto histórico brasileiro do início do século 20. O poema é “Hino nacional”, mas o que ele canta é um país inexistente:

 “Precisamos adorar o Brasil.
(…)
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.
(…)
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”

      De lá para cá, mais de 70 anos se passaram e o Brasil permanece incompleto e enigmático. O ímpeto de formar a nação soberanamente esvaiu-se, substituído por outras modas críticas, ou, no mínimo, está em suspenso. Mas a pergunta drummondiana vive ainda, diante de uma sintomática escassez de tentativas de resposta. Sua vigência é o estigma de como, desde o nascimento, modernizamo-nos sem necessariamente evoluir.

      Os textos de Moderno de nascença – figurações críticas do Brasil (Boitempo, 2006) procuram (quem sabe?) responder à inquietação de Drummond. Os organizadores Benjamin Abdala Jr. e Salete de Almeida Cara, professores e pesquisadores de literatura brasileira, reúnem textos que discutem a representação do país desde Anchieta até Mário Pedrosa, passando por Machado, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Drummond e Antonio Candido. No volume, há um ou outro texto que não consegue manter o ritmo e o vigor crítico excepcionais da maioria deles. É o caso do ensaio sobre Machado de Assis, que avança pouco em relação à leitura (já consolidada por Roberto Schwarz) do mestre do Cosme Velho como o escritor que captou melhor nossa substância de cinismo e impasse. A ordenação dos textos não conseguiu escapar à série cronológica, quando seria produtivo, para a própria discussão proposta, tentar algo como uma distribuição organizada em função de temas e problemas reais do país.

      Há, todavia, vários pontos altos em Moderno de nascença. Um deles é o texto de abertura, de João Adolfo Hansen: “A poesia em tupi e a produção da alma”. O autor mostra como a poesia em tupi figura a língua dos indígenas do litoral feito uma língua “desmemoriada do Bem ou uma ´falta de ser´ que deve ser suplementada pela intervenção caridosa do padre”. A análise da poesia de Anchieta em tupi indica que, ao inseminar na língua a presença de uma alma católica através da semântica substancialista da memória da culpa, a gramática figura a condição de seu análogo sensível: o corpo do subalterno indígena. Assim, o corpo dócil, cuja figuração é a própria língua tupi, fica “ordenado” pelo protocolo jesuítico, que o subordina juridicamente como inferioridade natural.

      Igualmente instigante é o ensaio de Walnice Nogueira Galvão, “O fascínio dos confins”. O texto discute a possibilidade de se erigir um modelo ideal de desbravador que norteia a vocação do intelectual desviante, o qual, em plena belle époque, vira as costas para os salões e para as modas do início do século XX. Figura exemplar desse intelectual fascinado pelos confins é Euclides da Cunha, que é comparado a Joseph Conrad e  T. E. Lawrence. A sintonia entre eles reside no fato de que todos eram (ainda que de modo desigual) membros do imperialismo finissecular e operaram narrativas fora de seu ambiente, em quadrantes remotos. Com esse desvio da moda, conseguiram apanhar com acuidade as rupturas resultantes do contato de civilizações.

      Outro belíssimo texto é o de Luiz Roncari sobre Guimarães Rosa. Em “A tríade do amor perfeito no Grande sertão”, Roncari apresenta a raiz profundamente representativa da sociabilidade brasileira. Para ele, o romance tem um herói que prefere seguir, em vez de aspirar ao amor absoluto de uma Beatriz elevada, “o roteiro da vivência do amor perfeito no paraíso colonial/patriarcal brasileiro, o éden do Buriti-Grande, onde o colonizador encontrou uma solução bastante prática para preencher as suas carências: se não encontrava todas as virtudes reunidas numa só mulher, nada mais prático do que vivê-las em separado com pessoas diferentes, já que o problema do absoluto e da totalidade se colocava apenas aos homens”. Um dilema para o realismo nacional: como tratar desse tema da busca do amor total em uma realidade comunitária em que a totalidade não se fecha?

      Moderno de nascença se organiza em torno de autores que apreenderam, em suas obras, as fissuras do processo de formação do país. Noutra perspectiva, entretanto, dá a ver um sintoma do problema da intelegibilidade do país. O livro estanca na década de 60, que, com a emergência avassaladora da indústria cultural, institui o atemorizante latejar de uma ausência. A literatura e a crítica são atualmente capazes de representar as tensões históricas do Brasil?

       Vivemos um momento da história brasileira no qual o influxo externo é impiedoso, em termos econômicos, políticos e culturais. Saberíamos nós brasileiros lidar com isso, ou ainda há o que trabalhar para alcançar a perfeita compreensão da relação entre as sedutoras “modas estrangeiras” e a anomia do país? Na entrevista recolhida pelo livro e intitulada “Cuidado com as ideologias alienígenas”, Roberto Schwarz alerta: “O problema, portanto, não é de ser a favor ou contra o influxo externo, mas de considerá-lo – bem como a tradição nacional – em perspectiva popular”. A perspectiva popular, todavia, só se consegue a partir de uma maturação profunda do pensamento sobre a nação. Há um germe dessa perspectiva em Moderno de nascença. Eis seu ponto mais positivo, diante do perigo do esquecimento crítico da idéia de nação.

       Naquele que talvez seja o mais provocador dos textos, Paulo Eduardo Arantes afirma: “foi precisamente a imaginação nacional que nos permitiu começar a pensar – e quando ela se apagar é possível que a extinção do pensamento a siga de perto, a menos que uma nova invenção de uma e outro, ou coisa que os valha enquanto impulso liberador da reflexão”. Salvo engano, não parece estar disponível um meio que impulsione verdadeiro conhecimento da realidade da periferia do capitalismo que não passe pela reflexão sobre a nação. Sem ela, acaso existiremos?