O primeiro livro que li
Sem demora, pretendo também narrar quando, como e porque tive a oportunidade de acelerar o processo da minha aculturação seduzido por esse monumento sociológico e literário. Apesar de… (este apesar, sim, que vou deixar em suspense para a última parte da matéria).
Breve histórico para chegar ao ponto que interessa. Dois pontos. Com 25 anos de idade mudei-me da Itália para São Paulo, decidido a me radicar no Brasil. A primeira atividade que exerci neste país tão sofrido quão maravilhoso, populado por gente tão pobre de instrução quão rico de talentos, foi a de cenógrafo e designer (na época não se chamava assim) do Teatro Brasileiro de Comédia e da Cia. Cinematográfica Vera Cruz, dois sonhos que se desmancharam, vítimas do pioneirismo.
Enquanto isso, varava noites estudando português, decidido a dominar a língua o mais rápido possível. Favorecido pelo conhecimento que já tinha de outras neolatinas e provavelmente por uma predisposição hereditária, lembrando que meu avô paterno, por exemplo, ensinou em várias universidades européias como expert em sânscrito, uma língua morta mais antiga do que as outras línguas mortas. Assim que dois ou três meses após o meu desembarque já estava em condições de ler, de ponta a ponta, uma obra relevante que tratasse da formação da sociedade brasileira numa perspectiva histórica. Foi quando um arquiteto, meu amigo e monitor recente, me deu de presente um exemplar de Casa-Grande & Senzala (1ª edição, Maia & Schmidt, Rio de Janeiro, 1933); uma publicação que é, hoje, uma jóia para bibliófilos, apesar da péssima produção tipográfica, tanto assim que já tive que restaurá-la duas vezes. Já disse o quanto fiquei encantado com a obra, sendo que, obviamente, abriu-me as portas, mais tarde, para outras leituras de ensaios do gênero, anteriores e posteriores à pesquisa em profundidade de Gilberto Freyre. Claro que não vou me arriscar a esboçar aqui qualquer juízo crítico sobre a obra. Pois quem sou eu para concorrer com tantos intelectuais de grosso calibre que já comentaram o conteúdo da obra ou já trataram da exegese dele como um todo? Apenas concordo com todos eles quando afirmam que a obra contribuiu substancialmente, no momento histórico da sua publicação, para aliviar o preconceito racista dominante na sociedade brasileira contemporânea.
Outra informação que preciso passar para o leitor, curioso em saber como me diplomei em minha brasilidade, aqui vai, bem resumido, outro pedaço da história da minha vida. Em fins de 56 fui convidado pelo Estadão a assumir a função de secretário do Suplemento Literário (um cargo que corresponde, hoje, ao de editor executivo), o que incluía a tarefa de paginador (hoje diagramador). Concebido por Antonio Candido para ser uma publicação semanal, contemplando todas as manifestações artísticas, o SL é tido, hoje, como um pioneiro que estimulou a criação da especialidade de jornalismo cultural. Meu trabalho começou com a criação de um número-piloto que incluiu o desenho do cabeçalho de minha autoria até a compra de matrizes de uma família de tipos Bodoni, destinadas à titulagem e aos textos, próprias para o processo de composição a quente (linotipia). Quando apresentei o projeto ao dono do jornal, Júlio de Mesquita Filho, arqui-conservador, deu-se uma pausa intrigante no entourage. O patrão levou um susto, mas afinal aprovou sem retoques aquele “arejamento” inusitado na imprensa da época. A partir daí começaram meus anos de ouro (quase 5), quando passei a me relacionar com a fina flor (perdão pelo lugar-comum) da intelectualidade brasileira e com as figuras mais proeminentes das artes plásticas a quem convidava para fazer as ilustrações. Em contatos constantes com eles – cujos nomes deixo de citar para não cometer deslizes e também porque a lista daria para encher uma lauda – eu desfrutei do privilégio de poder montar uma antologia particular para meu deleite e consumo.
Já chegou o momento de dar uma satisfação acerca daquele “apesar de…” que deixei em suspense no início do texto. É o seguinte: a medida que eu avançava na leitura do texto de Casa-Grande, naquele remoto ano de 1949, comecei a desconfiar que Gilberto Freyre fosse, no íntimo, um defensor convicto de regimes políticos oligárquicos. Bastando para isso, na minha opinião, a maneira de como se referia aos senhores de engenho, admitindo seus abusos de poder – inclusive o aproveitamento sexual das negrinhas adolescentes (na realidade verdadeiros estupros) -, mas tratando-os sempre com a devida deferência, vinculando seus nomes aos títulos nobilárquicos conferidos pela ridícula aristocracia açucareira.
Não deu outra, aliás pior do que se podia imaginar. Muito bem formado e informado por duas universidades americanas, denegriu a Semana de 22 pela introdução do “modernismo” no Brasil; explicitando sem receios sua idiossincrasia por qualquer tendência política que ele julgasse esquerdista, foi um membro de peso da UDN, apoiou o golpe de 64, defendeu o AI-5 e endossou todas as bravatas do ditadorzinho português Antonio de Oliveira Salazar.
Surpreendente e lastimável, mas foi isso o que aconteceu com um intelectual dos mais importantes da história do Brasil.
A grande obra do mestre Gilberto está muito bem guardada na bagagem dos meus conhecimentos, mas a personalidade reacionária do cidadão Freyre não achou um espaço no meu coração.