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    Comunicação

    Cobra

    Uma cobra abeirou-se da gamela Num dia de calor, tanto calor e eu de pijama, Para beber da minha água.  Na sombra funda de perfume estranho da grande                                                 [alfarrobeira escura Desci os degraus de cântaro na mão E tive de ficar, ficar ali à espera pois na gamela                        [à minha frente estava o […]

    POR: D.H. Lawrence

    9 min de leitura

    Uma cobra abeirou-se da gamela
    Num dia de calor, tanto calor e eu de pijama,
    Para beber da minha água.

     Na sombra funda de perfume estranho da grande
                                                    [alfarrobeira escura
    Desci os degraus de cântaro na mão
    E tive de ficar, ficar ali à espera pois na gamela
                           [à minha frente estava o réptil.

    Ele desceu por uma fenda do muro de terra na sombra
    E no bordo da gamela de pedra arrastou devagar o
                                                      [ventre fulvo e mole
    E encostou o pescoço no fundo de pedra
    E numas pingas límpidas de água escorrida da torneira
    Bebeu aos poucos por fauces lisas
    Bebeu de leve por gengivas lisas enchendo o corpo
                                                              [lento e longo
    Em silêncio.
    Alguém chegara primeiro à minha gamela de água
    E eu que vim depois fiquei à espera.

    Ergueu a cabeça depois de uns goles tal como o gado
    E fitou-me vagamente como faz o gado a beber,
    A língua saía-lhe da boca, bífida, súbita; alheou-se
                                                                   [um momento
    E inclinando-se a beber um pouco mais
    Castanho como terra, terra de oiro, saído das entranhas
                                                                [da terra ardente
    Nesse dia siciliano de Julho, com o Etna em fumos.

    As vozes da minha educação diziam
    Que tinha de ser morto esse réptil
    Pois na Sicília não há mal nas cobras todas negras
                                      [mas nas douradas há venenos.

    E aquelas vozes em mim diziam: Se fosses homem
    Pegavas num pau, partias-lhe a espinha e era o fim.

    Será preciso confessar que gostei dele
    Que era bom ele ter vindo, convidado silente beber
                                                                [da minha água
    E poder voltar em paz, apaziguado, sem mesmo
                                                            [agradecer
    Para as entranhas ardentes dessa terra?
    Era cobardia não ousar mata-lo?
    Era perfídia querer tanto falar-lhe?
    Era humildade sentir tanta lisonja?
    E era tanta a lisonja que eu sentia.

    E todavia aquelas vozes:
    Se não fosses medroso, havias de mata-lo!

    Tinha medo na verdade um grande medo.
    Ainda assim, maior era a lisonja
    Pois ele viera ao meu quintal pedir guarida
    Saindo a porta escura da terra de mistério.

    Deu-se por satisfeito,
    E levantou a cabeça no olhar ausente de quem já bebeu
    E a língua súbita saía-lhe da boca como negra noite
                                                           [bífida nos ares
    Parecia lamber o lábio
    E como um deus olhou os ares em volta, sem ver,
    E virou a cabeça devagar
    E devagar, devagar como se em triplo sonho
    Dispôs-se a desenrolar o seu lento comprimento
    E a trepar de novo pela rampa em ruína do meu muro.

    E enquanto metia a cabeça naquele buraco horrendo
    E se erguia devagar num espreguiçar de réptil que
                                                                    [se enterra,
    Uma espécie de horror, uma espécie de protesto contra
                 [o seu regresso àquele buraco negro e horrendo
    Contra aquele retorno deliberado à escuridão no arrastar
                                                                    [lento do corpo
    Apossou-se de mim ao vê-lo de costas.

    Olhei em volta, pousei o cântaro,
    Peguei num pau grosseiro
    E atirei-o à gamela num estalido.

    Acho que não acertei
    Mas o resto do corpo entrou de repente em convulsão
                                                       [brusca e decomposta
    Contorceu-se como relâmpago e sumiu-se
    No negro buraco, na fenda de bordos térreos da face
                                                                        [do muro;
    Olhei fascinado na luz do meio-dia intensa e calma.

    E arrependi-me no mesmo instante.
    Pensei que fora um gesto ignóbil, perverso, obsceno!
    Tive nojo de mim e das vozes da minha maldita
                                                      [educação humana.

    E pensei no albatroz
    E desejei que voltasse a minha cobra.

    Pois esse réptil parecia-me um rei de novo
    Rei exilado deposto sem coroa no mundo subterrâneo
    Prestes a ser de novo coroado.
    Perdi o ensejo concedido por um dos soberanos
                                                                         [da vida.
    E tenho de expiar uma atitude:
    Ser mesquinho.

     

    Gencianas Bávaras e Outros Poemas – D.H. Lawrence – versão de João Almeida Flor
    Editora Na Regra do Jogo 1983
    Coleção Inverso