Uma sociedade não é composta de indivíduos diz Marx, no Gundrisse, contra toda ideologia burguesa imbuída de humanismo. Com efeito, a investigação de Marx, considera os indivíduos na medida em que eles são trager, suportes, de determinadas relações economico-sociais. O Capital faz abstração dos indivíduos concretos e trata-os teoricamente como simples suportes de relações. Para ser mais preciso as relações de indivíduo para indivíduo é o que existe de mais abstrato, as relações sociais em uma determinada sociedade, como nos diz Marx na Miséria da Filosofia , “não são de indivíduo para indivíduo; mas de trabalhador para capitalista, de arrendatário para proprietário, etc.” . Desse modo a especificidade própria do social, sua concreticidade está no reconhecimento dos indivíduos com suportes de determinadas relações sociais. Ignorando isto os humanistas burgueses consideram como concreto o que há de mais abstrato: as relações inter-individuais.

Tratar-se-ia da noção de papel tal como a concebe a sociologia burguesa. Mas o que esta sociologia burguesa humanista encontra por detrás das máscaras não é senão o sujeito humano livre, o Homus Economicus, o sujeito da, ação moral e política, o sujeito do conhecimento, etc. Althusser observa a este respeito que

“se não submetermos a uma epoché teórica as determinações individuais concretas dos proletários e dos capitalistas, sua ‘liberdade’ ou sua personalidade, não se compreende nada da terrível epoché prática à qual a relação de produção capitalista submete os indivíduos, tratando-os apenas como suportes de funções econômicas, e nada mais!” .

Suspendamos esta “epoché” teórica e tentemos visualisar o que se esconde por trás das máscaras. Descartemos, como aconselha Marx na Introdução de 1857, o indivíduo isolado de que partem as “robinsonadas” e consideremos o indivíduo enquanto ele é, como reza a “VI Tese sobre Feuerbach”, o conjunto das relações sociais. Trata-se de romper com todo humanismo teórico de Feuerbach, e de outros, que concebem uma essência humana abstrata interior a cada indíviduo. A Idelogia Alemã assinala o acerto de contas de Marx com sua antiga consciência filosófica , a ruptura com toda ideologia humanista burguesa e a fundação do materialismo histórico. Dessa obra analisaremos dois momentos que nos serão úteis para buscar detectar que se enconde por detrás das máscaras.

A primeira passagem é aquela em que Marx, ao contrário dos ideólogos alemães, explicita seus pressupostos. O primeiro deles é a produção da vida material: trata-se de uma condição fundamental de toda história humana. O segundo pressuposto é a criação de novas necessidades. O terceiro é a reprodução. Ao explicitar o quarto pressuposto, Marx introduz o conceito fundamental para o Materialismo Histórico de Modo de Produção. Somente após ter analisado estes quatro momentos, Marx reconhece, e é isto que nos interessa mais de perto, que os homens têm consciência. Entretanto não se trata de uma consciência “pura”, do cogito cartesiano ou do sujeito transcendental kantiano ou husserliano, mas da consciência enquanto ela é “um produto social e continuará a sê-lo enquanto houver homens” . A consciência é efeito e não causa de uma realidade mais fundamental, o conjunto das relações sociais.
Detenhamo-nos neste ponto a fim de desfazer possíveis malentendidos. Alguém poderá objetar que, se definirmos a essência humana como o conjunto da relações sociais, não poderemos captar o porque não se transformam em homens, certos antropóides, cachorros, gatos, etc, mesmo vivendo em um meio social determinado: trata-se de reconhecer a realidade do fator biológico. Esta objeção, quando dirigida ao marxismo, não se sustenta, pois Marx longe de negar o fator biológico, o reconhece explicitamente como ressalta da seguinte definição de natureza humana dada no Gundrisse:

“Enquanto sou determinado, forçado pelas minhas necessidades, é apenas minha própria natureza, que é um todo de necessidades e impulsos…” .

E, em outro passo, na Ideologia Alemã, Marx nos diz:

“pode-se referir a consciência, a religião e tudo o que se quiser como distinção entre os homens e os animais; porém, esta distinção só começa a existir quando os homens iniciam a produção dos seus meios de vida, passo em frente que é consequência da sua organização corporal” .

Torna-se patente, pois, que Marx considera o fator biológico. Esta problemática das determinações biológicas e sociais na determinação do indivíduo suscita o dilema na ideologia burguesa de posições inatistas versus posições ambientalistas. A solução dialética não está em optar por um dos pares desse dilema, mas no interacionismo de Vygotski, Luria e Leontiev .

E a partir do interacionismo e das indicações dadas por Marx que se pode construir uma antropologia materialista que represente uma ruptura com a antropologia especulativa de Feuerbach, e de outros, com seu esquema de objetivação, alienação e desalienação. Tal antropologia só pode ser desenvolvida através de uma conjugação de esforços interdìsciplinares, deve incluir estudos sobre a pré-história, estudos etnográficos sobre as sociedades pré-capitalistas atuais, estudos comparativos sobre a espécie humana e outras espécies de animais, etc. Tal antropologia constituirá uma região do continente científico aberto pela fundação do materialismo histórico: o continente da história.

Relativamente ao materialismo dialético, e aqui entramos na consideração do outro momento da ideologia alemã que enfocaremos, Marx rompe com todo humanismo teórico, toda concepção que pretende fundar a história numa essência humana abstrata. Somos forçados a uma longa citação, mas que tem o mérito de não deixar dúvidas a este respeito:

“Os filósofos consideraram como ideal a que a puseram a designação de ‘Homem’, os indivíduos já não subordinados à divisão de trabalho, e compreenderam todo o processo que acabamos de expor como sendo o desenvolvimento do ‘Homem’. Substituíram os indivíduos existentes em cada época da história passada pelo ‘Homem’ e apresentaram-no como a força da história. Todo o processo foi portanto compreendido como processo de autoalienação do ‘Homem’, o que se deve essencialmente ao fato de o indivíduo médio do período ulterior ter sido sempre substituído pelo do período anterior, ao mesmo tempo que se atribula a este consciência ulterior. Graças a esta inversão, que omite as condições reais, foi possível converter toda a história num processo de desenvolvimento da consciência” .

A citação é longa mas é pertinente pois evidencia de forma incontestável a ruptura de Marx com a ideologia humanista Feuerbachiana que permeia os Manuscritos . Com efeito é o jovem Marx dos Manuscritos que compreende todo processo histórico “como auto-alienação do homem”. Baseado nos conceitos hegeliemos-Feuerbachianos de objetivação, alienação e desalienação, pretende fundar o comunismo enquanto humanismo acabado, enquanto apropriação da essência humana alienada. Tal é a tese filosófica do humanismo teórico. Devemos considerar agora os efeitos políticos de tal tese pois como nos diz Althusser:

“todo texto filosófico é ‘em última instância’ também uma intervenção política na conjuntura teórica e por um de seus efeitos, hoje o principal, também uma intervenção teórica na conjuntura política” .
Apontaremos três consequências da concepção humanista, a saber, a fetichização da democracia burguesa, a negação da tese leninista da importação e em consequência a negação do papel dirigente do Partido Comunista. Comecemos pela primeira.

Tentaremos demonstrar como um ensaio de Carlos Nelson Coutinho intitulado A Democracia como Valor Universal nega o caráter de classe da democracia burguesa e envereda pelo liberalismo justamente por fundamentarse numa essência genérica do homem. Vejamos seu ponto de partida teórico fundamental. Ele nos diz assumindo a posição de Agnes Heller:

“Explicitando a posição de Lukács, Agnes Heller coloca assim a questão do valor: ‘Que entendemos por valor? Tudo o que faz parte do ser genérico do homem e contribui, direta ou indiretamente, para a explicação desse ser genérico […]. As componentes da essência genérica do homem são, para Marx, o trabalho (a objetivação), sociabilidade, a universalidade, a consciência e a liberdade […]. Pode-se considerar ‘valor’ tudo o que, em qualquer das esferas (do ser social)e em relação à situação de cada momento, contribua para o enriquecimento daquelas componentes essenciais” .

Como vemos, temos de novo o “homem” e não o período economicamente dado, a “VI Tese sobre Feuerbach” desapareceu. Partindo desse postulado, a democracia será vista como uma objetivação da essência humana previamente definida e será valor na medida em que realizar essa essência. Vejamos uma passagem que não deixa dúvidas a esse respeito:

“As objetivações da democracia – que aparecem como respostas, em determinado nível histórico-concreto da socialização do trabalho, ao desenvolvimento correspondente dos carecimentos de socialização da participação política – tornam-se valor na medida em que contribuíram, e continuam a contribuir, para explicitar as componentes essenciais contidas no ser genérico do homem social” .
Mais ainda, a democracia não é somente um valor, mas um valor universal, na medida em que explicita a essência genérica do homem em formações sociais diferentes:

“E tornando-se valor universal [a democracia] na medida em que são capazes de promover essa explicitação em formações econômico-sociais diferentes, ou seja, tanto no capitalismo como no socialismo” .

O caráter de classe da democracia burguesa desapareceu, graças a essência genérica, e Carlos Nelson Coutinho aproxima-se do liberalismo de Bobbio, que concebe o

“[ …] direito não já como fenômeno burguês, mas como conjunto de normas técnicas que podem ser empregadas tanto por burgueses como proletários para conseguir certos fins que são comuns a uns e aos outros, enquanto homens sociáveis” .

Muitos que criticam Carlos Nelson Coutinho não percebem que a postulação da democracia como valor universal é conseqüência lógica de se conceber o homem em geral, uma essência genérica humana a habitar os diferentes indivíduos. Lenin que nunca utilizou, tanto quanto nos é dado saber, a palavra “alienação”, e dirigia a sua atenção para a análise das relações sociais, não especulando sobre o homem em geral, demonstrou a exaustão o caráter de classe da democracia burguesa. A respeito das regras jurídicas que segundo Bobbio são neutras, o que Carlos Nelson Coutinho parece endossar, ele dizia:

“Tomai as leis fundamentais dos Estados contemporâneos, tomai o seu governo, tomai as liberdades de reunião ou de imprensa, tomai ‘a igualdade dos cidadãos perante a lei’, e vereis a cada passo a hipocrisia da democracia burguesa, tão bem conhecido por qualquer operário honesto e consciente. Não há Estado, por mais democrático, que não tenha em sua constituição alguma fenda ou restrição por onde forneça à burguesia o meio de lançar a tropa contra os operários, de decretar o estado de sítio etc., ‘em caso de perturbação da ordem’ – entendei: à menor tentativa da classe explorada para sacudir seu cativeiro e obter uma situação humana” .

Consideremos agora as conseqüências para a teoria do partido da concepção essencialista do jovem Marx e da concepção radicalmente diversa do Marx maduro. Comecemos pelo primeiro. O jovem Marx postula uma natureza humana a-histórica e fundadora da história. O que dá início ao processo dialético é, como nos diz Giannotti, a “força totalizante da espécie humana entendida como um conjunto de impulsos e carecimentos genéricos” . Temos portanto como fundamento da história uma antropologia. O comunismo seria a realização dessa essência humana interior, previamente definida, seria a apropriação da essência humana alienada no capitalismo. Portanto a tarefa do partido não é introduzir de fora para dentro uma essência humana. Não se trata aqui de desnaturalizar o homem corrompido pelo capitalismo, de construir um novo homem, mas sim de realizar uma essência previamente definida. Cai por terra, assim, a tese Leninista da importação, na medida em que ao partido cabe tão somente explicitar uma essência que não tem caráter externo aos homens.

Essa concepção do jovem Marx é pré-marxista e pré-rousseauniana. Ouçamos Colletti a este respeito:
“A idéia central da democracia revolucionária é justamente esta: a idéia de transformação do homem. Trata-se de transformar o indivíduo em um ser social, de mudar-lhe a natureza, de ‘desnaturaliza-lo’, como diz Rousseau. E é o esforço de construir ‘deus na terra’, de ‘coagir’ os homens à liberdade (novamente Rousseau)… Claro, quando estiver terminada a obra, não será mais necessário um poder repressivo porque os homens da nova sociedade serão bons; não existirão mais seres anti-sociais” .
Trata-se, portanto, de desnaturalizar o homem corrompido pelo capitalismo e construir um novo homem, e não de realizar uma essência previamente definida. A esse respeito Che Guevara dizia ao jornalista Jean Daniel:

“[…] se não é para mudar o homem então a revolução não interessa”. [E acrescentava com desprezo que] “se se trata-se apenas de elevar o nível de vida, então um neocapitalismo inteligente ou um reformismo burguês teria talvez maiores possibilidades de êxito que um socialismo sem fé” .

Esta é a concepção realmente marxista-leninista que coloca a essência humana, o novo homem, como uma tarefa a ser construída pelo partido Leninista. A respeito desta naturalização do homem capitalista, Lenin, falando sobre a educação, nos diz que é mister construir “homens universalmente desenvolvidos e universalmente preparados, homens que saberão fazer tudo” , “desnaturalizar” o homem corrompido pelo capitalismo, lutar implacavelmente contra a força do costume. Esta é uma tarefa a ser levada a cabo pelo Partido, pois como nos diz Lenin:

“para fazer frente a isso, para permitir que o proletariado exerça acertada, eficaz e vitoriosamente sua função organizadora (que é sua função principal), são necessários uma centralização e uma disciplina severíssimas no partido político do proletariado. A ditadura do proletariado é uma luta tenaz, cruenta e incruenta, violenta e pacífica, militar e econômica, pedagógica e administrativa, contra as forças e tradições da antiga sociedade. A força do hábito de milhões e dezenas de milhões de homens é a força mais terrível. Sem partido férreo e temperado na luta, sem um partido que goze de confiança de tudo que exista de honrado dentro da classe, sem um partido que saiba tomar o pulso do estado de espírito das massas e influir nele é impossível levar a cabo com êxito essa luta. É mil vezes mais fácil vencer a grande burguesia centralizada que ‘vencer’ milhões e milhões de pequenos patrões, os quais, com seu trabalho invisível de corrupção, trabalho intangível, diário, obtém os mesmos resultados de que a burguesia necessita, que determinam a restauração da burguesia. Quem concorre para enfraquecer, por pouco que seja, a disciplina férrea do partido do proletariado (principalmente na época de sua ditadura) ajuda, na realidade, a burguesia contra o proletariado” .

Estas passagens de Lenin, retiradas de Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, e muitas outras que poderíamos arrolar, fundamentam o papel dirigente do Partido na sociedade socialista na medida em que deixam patente, como disse um teórico soviético, que não se constroi o comunismo sem comunistas. Lenin sempre ressaltou “o papel dirigente do Partido na atividades dos Sovietes” .
Detenhamo-nos um pouco neste ponto, pois os teóricos burgueses e os “sovietólogos” utilizam os problemas das relações entre Partido e Estado nas condições de regime socialista em suas elucubrações, acusando o socialismo de identificar Partido e Estado. Na realidade o papel dirigente do partido não significa que esse substitua os sovietes. Como nos diz Krutogulov a esse respeito, relativamente a ex-URSS:

“A direção do partido está baseada exclusivamente na convicção, na influência ideológica e no prestígio moral. O partido não tem o direito de exercer administração em relação a outras organizações dos trabalhadores e a direção do partido não tem nada a ver com a direção e a substituição de outras organizações”.

Portanto, tratava-se de que as decisões do partido eram “[ …] levadas a prática ‘através de órgãos soviéticos, no âmbito da Constituição Soviética’, que, dirigindo a atividade dos Sovietes, ele não os substituía, delimitava as funções dos órgãos partidários e estatais” .

Os teóricos burgueses ocultam o fato de que quem dirige o aparelho de estado nos países capitalistas são os partidos burgueses. Com efeito, quem dirige o aparelho de estado norte-americano são os partidos Republicano e Democrata, que possuem a mesma concepção burguesa de mundo, não constituindo-se em partidos antagónicos. Trata-se, na realidade, de um unipartidarismo disfarçado, pois, como nos diz Shakespeare, não há escolha entre maçãs podres. Aliás, a democracia burguesa não admite transição pacífica de modo de produção, mas somente de partidos burgueses que se revezam na direção do aparelho de estado, todas as revoluções deste século o comprovam.

Após está breve digressão, voltemos a considerar a nossa assertiva de que conseqüência lógica das concepções do Marx maduro é a teoria Leninista. Alguns partem de uma essência historicizada, não mais no sentido do termo “gattung” tomado do empréstimo pelo jovem Marx de Feuerbach. É o caso de um discípulo de Goldmann, Michel Löwy, como se depreende da seguinte passagem:

“Certamente seria necessário estudar a transformação do conceito, que tem em Marx, em 1844, um caráter ‘antropológico’ feuerbachiano (‘a alienação da essência humana) enquanto em O Capital ele se torna historicizado” .

Parece-nos que historicizando a essência humana é possível considerar como decorrência lógica a tese da importação. Retificando as assertivas anteriores e precisando mais nossa perspectiva: o que tentamos demonstrar mais acima é tão somente que da perspectiva do jovem Marx a tese da importação cai por terra.

KRUTOGOLOV, M. A., Palestras sobre a Democracia Soviética. Moscou, Progresso, pp. 39-40.

LOWY, M., Método e Teoria Política. Riode Janeiro, Paz e Terra, pp. 70-71.

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Doutor em Filosofia pela USP