A lembrança da Alemanha, Japão e Coréia do Sul colocando sob pressão a competitividade econômica norte-americana ainda é muito fresca na memória. Por outro lado, em momentos de tensões causadas por crises financeiras, é muito complicado trabalhar o papel que a integração – da economia norte-americana com países como a China – cumpre para o controle da inflação doméstica dos EUA e conseqüentemente da maior ou menor capacidade de consumo de sua população.

Democracia e consumo nos EUA

Interessante notar que o próprio conceito de democracia nos Estados Unidos de hoje, tem cada vez menos a ver com a participação popular nos assuntos do Estado (assuntos esses monopolizados pelos oligopólios das indústrias armamentistas e petrolífera). A democracia norte-americana tem relação direta com a capacidade de consumo de seu povo. Para a satisfação desta demanda interna gigantesca é que se busca desde guerras de pilhagem em nome da “democracia” até o deslocamento de cadeias produtivas inteiras para regiões de menores custos de produção, num movimento acelerado após a 2ª Guerra Mundial. A irracionalidade consumista do “superior” modo de produção capitalista é irmã gêmea da estupidez por detrás da divulgação de bodes expiatórios aos problemas dos EUA.

Outro ponto interessante: pouco se percebe que mais de 40% das exportações chinesas aos EUA são processadas por empresas norte-americanas em território chinês, afora a possibilidade de transferência de lucros da China para os EUA destas mesmas empresas. Não se coloca em questão, por exemplo, o papel central do pacote de estímulo de US$ 586 bilhões executados pelos chineses como forma de amenizar os efeitos da presente crise financeira; entre tais efeitos a própria volta ao normal do preço das commodities (o que beneficia em demasia os países periféricos) e seus efeitos sobre a economia de países como a Coréia do Sul, conforme atesta passagem abaixo colocada pelo professor Luiz G. Belluzzo ao jornal Valor Econômico (1):

“A partir do segundo trimestre de 2009, o comércio mundial começou a emergir (+ 0,5%) do mergulho profundo em que se lançou entre o 4º trimestre de 2008 (-7,8%) e o 1º trimestre de 2009 (-10,7%). Essa modesta estabilização do comércio mundial foi promovida, sobretudo, pelas importações dos países asiáticos que cresceram 7,2% no período enquanto as importações dos países desenvolvidos continuaram a se contrair.”

O caso da integração econômica, e inclusive macroeconômica (Belluzzo insiste numa genial observação: “o yuan desvalorizado é a outra face da supremacia do dólar” (2)), entre Estados Unidos e China é um desses casos em a história acaba que por demonstrar a própria incapacidade de uma ou outra nação, ou mesmo de um modo de produção com relação a outro, em levar às últimas conseqüências esta integração. Os limites do escravismo romano ficaram mais expostas no mesmo grau que aumentava a intensidade comercial com tribos germânicas; o capitalismo de tipo inglês sucumbiu diante de sua incapacidade de levar adiante formas diferenciadas de exportações de capital, insistindo em não acompanhar as tendências do capitalismo de tipo americano (demonstradas no início do século XX por Lênin em Capitalismo e Agricultura nos Estados Unidos da América) e acreditando na postergação de formas radicais de relações centro x periferia.

Já os norte-americanos perceberam que para a periferia pós-2ª Guerra Mundial o próprio desenvolvimento dela dependia de graus maiores de “coeficientes de abertura”. Abrindo parêntese, a reconstrução pós-Guerra foi um dos estopins ao que o muitos acadêmicos classificaram como Revolução Técnico-Científica, ou para nós, 3ª Revolução Industrial. Evidente que nos marcos deste avanço civilizacional a abertura planificada abria possibilidades enormes ao desenvolvimento econômico, mesmo para países como grandes constelações de recursos como a URSS, os Estados Unidos, a China e o próprio Brasil (3) Por outro lado, concomitante com a aparição de projetos nacionais autônomos nos dois lados da “cortina de ferro”, esta tendência à externalidade ganhou corpo e se transformou no próprio imperativo ao equilíbrio macroeconômico do capitalismo norte-americano; de uma democracia cada vez menos baseada na subjetividade das pequenas propriedades das 13 colônias e mais na própria capacidade de endividamento das famílias. Os Estados Unidos utilizaram ao máximo esta perspectiva de alargamento de fronteira do próprio capitalismo, valendo-se inclusive da imposição o dólar como reserva internacional em detrimento do ouro, num grande golpe contra o sistema internacional e a própria razão.

Ações unilaterais deste tipo, demonstrando onde poderia se lastrear a própria moeda de reserva internacional (em detrimento de idealismos economicistas), foi fator de proa à própria submersão de algo que pudesse estar naufragando diante da força econômica japonesa, alemã e da própria URSS. A elevação de suas taxas de juros na década de 1970 anunciou – aos mais inteligentes – os estertores do saqueio universal por detrás da “Nova Ordem Mundial” na década de 1990 e, para alguns mais eufóricos, o próprio “fim da história”.

Porém, a China como uma nova fronteira de reprodução ao capitalismo ungida como tal desde o aperto de mãos entre Nixon e Mao em 1972, colocada na proa do processo com a hendaka japonesa e independente do fracasso da intentona norte-americana em junho de 1989 em Tiananmen guardava (e guarda) muitas possibilidades ao capitalismo norte-americano e ás próprias famílias da América do Norte. Mas, a China não era a Coréia do Sul, nem o Japão, tampouco a Polônia pré-Solidarnosc, nem uma republica administrada por séquitos como Collor, Fujimori, Carlos Saul Menem nem muito menos FHC. Seus objetivos de “renascimento da nação chinesa” pelas quais levaram a derrota do próprio EUA e seu clone Chiang Kai-Shek em 1949 são contrapostos aos objetivos “divinamente” lapidados na ocupação da “Nova Cannã” em solo índio. Eis o limite estratégico desta relação e simbiose econômica. Algo mais a cargo da dialética rústica do ying e do yiang do que uma história de amor anglo-saxão de tipo shakesperiano. Não existe espaço para julgamentos de ordem moral.

Julgamentos de valor e moral são privilégios compartilhados tanto pela extrema direita republicana e democrata, quanto pelos partidários da “economia natural do socialismo” (ilustrados num fantasmagórico “socialismo do século XXI”). Sobre a extrema direita do imperialismo não teceremos grandes comentários. Os chineses per si ao trazer para o seu campo (e território) os mesmos que investem bilhões de dólares nas “democráticas” campanhas eleitorais norte-americanas já estão dando uma solução a eles; mesmo sabendo que o que não encontra solução, solucionado está.

O socialismo e o comércio internacional

Ao socialismo, muitas vezes o que resta é o de voltar à própria lógica do debate sobre a importância relativa e absoluta ora do comércio internacional, ora da ênfase na indústria pesada. Num certo momento da história, a segunda via tornou-se um imperativo. No momento em que vivemos a primeira via, a mesma almejada por Lênin se faz presente com toda sua complexidade, mas também com todas suas possibilidades. Se num momento a crise (1929) abriu amplas possibilidades a um tipo de desenvolvimento para dentro, a presente crise abre – ao socialismo (China) – uma ampla estrada de desenvolvimento, também, para fora. Desenvolvimento este que inclui o paradigma atual das possibilidades de adensamento de novas modalidades da divisão internacional do trabalho, conforme a emergência do chamado BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), de uma América Latina em ebulição e de um Irã misturando teocracia com terceiro-mundismo vão demonstrando.

O pós-crise financeira que viveremos poderá ser o próprio feixe de uma China que se abriu ao mundo em 1978. A integração comercial entre capitalismo e socialismo é um imperativo à solução de impasses próprios do capitalismo dominante. O mercado capitalista em determinado momento viria a demonstrar seu poder de sedução e suas possibilidades. E a decisão chinesa pelas reformas em 1978 foi a decisão de enfrentar todos os perigos intrínsecos a esta integração muito bem vinda aos Estados Unidos em diferentes momentos históricos desde então. A grande questão que envolve a análise dos limites desta integração que parece estar testando seus próprios limites está na própria historicidade de diferentes formas e conteúdos de comércio internacional. Os Estados Unidos, da mesma forma anárquica com que expressa a capacidade de consumo de sua população, também se expressa anarquicamente no plano do comércio internacional, conforme seus próprios déficits gêmeos demonstram. Os chineses são signatários de uma forma nova de se trabalhar o comércio intra-países: a planificação é a tônica.

O contato destas duas formas de comércio e a exposição dos limites de um deles só podem ser verificáveis em épocas de crises sistêmicas. E as crises capitalistas são crises, também, de uma forma superada de comércio internacional. Atualmente os EUA consomem 20% mais do que suas “contas permitem”. Seus déficits comerciais com a China é a senha para a manutenção de baixos índices de inflação, alargamento da capacidade de endividamento das famílias. Ao mesmo tempo, interessante, em que alimentam os próprios estoques em reserva estrangeira de seu concorrente estratégico. Os chineses passaram a ser o maior comprador de títulos norte-americanos, o que quer dizer que são os maiores financiadores externos do império. O que seria uma forma de enquadramento da China, sua admissão na OMC é muito mais um palco de acúmulo de forças político onde se “joga um jogo” de isolamento estratégico dos EUA pela via de déficits programados com a periferia.

É evidente que existem desequilíbrios gigantescos na ordem econômica mundial. Porém, os mesmos devem estar muito mais relacionados com o nível de subsidio ao consumo nos EUA, à hipertrofia do sistema financeiro internacional do que a própria banda cambial chinesa. Abrindo parêntese à reflexão: foram os bancos norte-americanos que “quebraram” e levaram o mundo de roldão e não, segundo “analistas” que freqüentam as rodas de jornais matutinos e noturnos – falados, escritos e televisados –, o “frágil” sistema financeiro chinês. Sistema financeiro este que, por seu turno, está sob as rédeas do Estado. Muito diferente de um sistema financeiro e “lobístico” cuja essência é a própria superestrutura de poder do imperialismo. Não foi o yuan chinês que quebrou a GM. Os problemas chineses são tratados com altas taxas de investimentos produtivos e não remediados com a ciranda de derivativos.

O câmbio administrado e sua superação na China

O problema da valorização do yuan não vai ser solucionado nos marcos desejados pelos 99 de cada 100 economistas anglo-saxões e/ou brasileiros. Certa ingenuidade é presente na assertiva para quem a valorização do yuan abriria margem para abertura de crescimento da demanda interna chinesa em detrimento de sua estratégia exportadora. Isso já ocorre na China independente da forma com que a China se integra à economia mundial. Também se esquece que entre março de 2005 e novembro de 2008 o yuan chinês valorizou-se em mais de 20%, o que por si já coloca em xeque a idéia do “desequilíbrio internacional” via banda cambial chinesa. Não se alude, também, ao choque inflacionário nos Estados Unidos de uma política brusca de valorização do yuan, o que acarretaria mudança de grande monta nos preços relativos. E uma desvalorização radical do dólar diante do yuan, no sentido de equiparar os custos de produção dos EUA com a China, não seria uma medida racional.

A racionalidade nesta contenda é perceber que, em se tratando de China (dados os custos sociais anexos), tudo tende e deve ser lento, gradual e seguro. O que inclui a já retomada de uma política de banda cambial (cesta de moedas) proscrita com a crise, a utilização de suas reservas cambiais para compra de ativos no exterior e o adensamento de cadeias produtivas nacionais em face da concorrência externa (o que aos poucos poderá subscrever a necessidade de um yuan imensamente desvalorizado).

Além desses fatores, o yuan não poderá ter uma valorização conforme determinadas vontades ocidentais sem antes a China não superar outros tipos de problemas. Entre tais as relacionadas entre os diferentes níveis de renda entre litoral e interior, campo e cidade; ademais a população chinesa só alcançará seu pico em 2030. Até lá, meios e maneiras para a estabilização do nível de renda e emprego para cerca de 13 milhões de pessoas que adentram o mercado de trabalho todo ano demandará soluções nada terapêuticas, pois a economia avança de desequilíbrios em desequilíbrios. O câmbio administrado estará por muito tempo na ordem quase natural dos acontecimentos em um país cujo objetivo precípuo é o de alimentar e vestir nada menos que 1,3 bilhão de habitantes.

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Notas:

(1) BELLUZZO, Luiz G.: “A China e a resistência cambial”. Valor Econômico, 07/04/2010. Sobre essa problemática cambial chinesa, o professor Belluzzo já escreveu diversos artigos muito interessantes e elucidativos.

(2) _____________: “Nos limites da Chimérica”. Carta Capital nº 573. São Paulo, SP, 25/11/2009. p. 62-63.

(3) RANGEL, I. “A Polônia e o Ciclo Longo”. S/L, S/D. Artigo especial para Encontros com a Civilização Brasileira. Trata-se de um texto praticamente desconhecido de Rangel, inclusive não está incluído em suas Obras Reunidas. Essencial para os interessados em diferenciar diferentes processos históricos e o papel do comércio internacional e seu aprofundamento à própria transição capitalismo – socialismo.

Elias Jabbour é outorando em Geografia Humana pela FFLCH-USP e pesquisador da Fundação Maurício Grabois