A crise e os muçulmanos
4. Ante os levantes que ocorrem na Europa, América do Norte e América Latina, podemos falar em uma classe para si orientada por um projeto histórico claramente configurado?
Não chamo genericamente “levantes” as manifestações que têm ocorrido nas metrópoles imperialistas. Mesmo descontando as de conteúdo reacionário, como a de 13 de janeiro de 2013 na França, quando centenas de milhares de católicos e neofascistas foram às ruas para condenar o casamento entre homossexuais, somente as revoltas dos jovens e imigrantes nos subúrbios em que estão confinados podem ser consideradas levantes. Essas explosões expressam justa cólera dos setores mais discriminados da população, mas são espasmódicas. Não há atalho para a revolução social. Donde a importância da rearticulação das forças anticapitalistas em partidos que retomem crítica, mas construtivamente o legado comunista.
5. Como a crise está afetando a classe trabalhadora em todo o mundo?
Uma resposta genérica seria temerária ou inócua. Já notamos que a crise não está afetando no mesmo grau nem a classe operária nem as economias do mundo todo. Sua mais deletéria consequência social é o desemprego em massa, que em certos países da Europa chega a taxas inéditas. Na Espanha praticamente um jovem em dois está desempregado.
6. Em que pesem as complexidades e singularidades das formações sociais do mundo muçulmano, não é nele, seja na África, seja no Médio Oriente, ou no Paquistão, no Egito, Síria, Iraque que se manifesta, hoje, fortemente o Imperialismo?
Não sei se compreendi bem a pergunta. Por imperialismo entendo, na trilha de Lênin, o sistema mundial de dominação do capitalismo de monopólios. O que se manifesta hoje brutalmente nas regiões mencionadas é a retomada da ofensiva neocolonial da OTAN , desencadeada no Iraque em 1991, não por acaso quando a derrocada do bloco socialista do leste europeu liberou os instintos agressivos do bloco militar imperialista. Nessas expedições coloniais, os governos socialdemocratas europeus sujaram as mãos na mesma proporção que os de direita.
Embora a suja rabiscadura dos jornalistas a soldo dos barões da imprensa insista sempre em que as chuvas de mísseis que a OTAN despeja na periferia pobre da ordem liberal-imperialista visam a “combater o terrorismo internacional” e a implantar a tal “democracy” (isto é a concepção mesquinhamente liberal da democracia, segundo o modelo “made in USA”), na verdade as intervenções em curso nos países islâmicos têm caráter neocolonial, com o objetivo principal de garantir o controle da forte produção de petróleo de muito boa qualidade do Médio Oriente e levar adiante a tentativa de aniquilar o Irã.
No artigo “A doutrina Bush e a rapina do petróleo”, publicado em 2003 na revista Debate Sindical, notamos que, em vez de cumprir até o fim o anunciado acerto de contas com os acusados de ter feito os habitantes de Nova Iorque sofrer em setembro de 2001 um ataque semelhante o criminoso de guerra, Bush filho estava concentrando seu furor genocida contra o Iraque, cujo governo sabidamente não mantinha nenhuma espécie de vínculo com os presumidos autores dos atentados de Nova Iorque. Havia certamente um componente doentio na obstinação anti iraquiana do então inquilino da Casa Branca, evidente na fixidez alvar, típica dos tresloucados, que paira em sua expressão facial. Mas não convém superestimar o aspecto psicopatológico de seu pensamento. Mesmo porque em dezembro de 1998, Clinton, seu predecessor, que não era louco, mandou bombardear Bagdá com violência sem precedentes desde 1991. Precisava distrair a opinião pública estadunidense do processo de “impeachment” que então lhe era movido por malandragens sexuais, mas, evidentemente, se usou a pele dos iraquianos para fugir da sanha dos alcoviteiros mediáticos, foi porque o aniquilamento de Saddam Hussein se inscrevia perfeitamente na lógica do belicismo imperialista.
São muitas as semelhanças entre o Iraque de 2003, a Líbia de 2011 e a Síria atual. O objetivo do estupro neocolonial permaneceu o mesmo: derrubar regimes laicos, oriundos da luta anti-imperialista das nações árabes, que mantinham, dentro dos limites das fortes pressões impostas pelo imperialismo, uma política externa independente. Ambos enfrentavam uma oposição heterogênea, composta de provocadores diretamente a soldo da Cia e de outros “serviços especiais”, de liberais de direita pro-imperialistas e de fundamentalistas islâmicos de extrema-direita. (No Iraque acrescentava-se o movimento autonomista curdo).
Muito semelhante também foi o uso da intoxicação mental. Num debate sobre a Líbia ao qual compareci, um tolo enfático de “extrema-esquerda” declarou que Khadafi “massacrou trinta mil líbios”. Perguntei-lhe de onde tinha tirado esse número. Não respondeu porque sua estultice não ia a ponto de cobrir-se de ridículo admitindo que ouvira isso na Rede Globo ou “fonte” similar. Mas enquanto os “baba-ovo” papagaiavam o que liam e ouviam na mediática do capital, os três safados da cúpula da OTAN (Camarão, Sarkozy e Berlusconi, este aliás menos aguerrido que os dois parceiros), empenhados na tentativa de recuperar, sob novos rótulos jurídicos, seus velhos impérios coloniais, continuavam intensificando os bombardeios ditos humanitários. Khadafi, dissemos mais de uma vez, tinha seguramente muitos defeitos, mas sobrava-lhe uma qualidade de que carecem os canalhas que o caluniaram: coragem.