Os Estados Unidos e o terrorismo de massa
Professor, primeiro, queria que o senhor falasse um pouco sobre o livro.
Losurdo – O livro se chama Il linguagio Dell impero, lessico della ideologia americana. Já está traduzido para diversas línguas: espanhol, português do Brasil e de Portugal, grego e outras. Creio que atenda a uma necessidade real. Nós nos encontramos diante de uma situação sem precedentes na história. Vemos que os Estados Unidos sozinhos ocupam a metade do orçamento militar mundial. Por isso, trata-se de uma superpotência militar solitária.
Contudo, ao mesmo tempo eles são também uma superpotência ideológica no sentido de ainda funcionarem como uma espécie de tribunal da inquisição em nível planetário. Pelo fato de estigmatizarem aqueles que se opõem ao império, ou que se precipitam no confronto com o império, os Estados Unidos os tacham como cúmplices do terrorismo, cúmplices do fundamentalismo, cúmplices ou culpados de antinorte-americanismo, culpados de antissemitismo, de filo-islamismo, de ódio contra o Ocidente.
Então, neste livro examinei as categorias principais com base nas quais Washington procura fazer calar todas as vozes críticas e todas as divergências. A cada uma dessas categorias examinei seja no plano histórico seja no plano conceitual para fazer ver de que maneira Washington procura impor um domínio mesmo ideológico.
O livro volta às raízes dessa configuração que temos hoje?
Losurdo – Dou um exemplo de como procedo neste livro. Os Estados Unidos dizem estar empenhados em uma guerra contra o terrorismo e, por exemplo, tacham e até culpam países como cúmplices do terrorismo. Então analiso essa categoria de terrorismo. Digo que os terrorismos podem ser individuais ou de massa. Terrorismo de massa é aquele que golpeia indiscriminadamente uma população civil. E, então, me pergunto se esta é a definição de terrorismo de massa, qual é o maior acontecimento de terrorismo de massa na história? Não há dúvida de que foi a destruição nuclear de Hiroshima e Nagasaki, porque foi rendida a população civil de duas cidades e foi rendida essa população civil para mais aterrorizar a União Soviética.
Isso já reconhecem historiadores estadunidenses, pois trata-se de um terrorismo horrível e mais de caráter transversal. Alguém poderia dizer: Está bem, mas passou tanto tempo e isso hoje já perdeu a validade. Ao contrário. No livro, examino, por exemplo, a guerra contra Camboja. Cito estudiosos estadunidenses ocidentais. O livro cita sempre estudiosos estadunidenses ocidentais. Pois, então, um dos estudiosos chama-se Charles Johnson e diz que na guerra contra o Camboja os Estados Unidos, com os bombardeamentos, mataram pelo menos 705 mil camponeses vietnamitas. Isso diz esse autor estadunidense.
Claro, esse é um terrorismo de massa porque foram golpeados a população civil e camponeses vietnamitas. Naturalmente, os EUA ainda hoje se reservam o direito de dar curso aos armamentos nucleares. Por exemplo, enquanto a China se empenha em não usar nunca mais armamento nuclear, os Estados Unidos, ao contrário, recusam-se a deixar de fazê-lo. Ou seja, a tendência ao terrorismo de massa é uma característica constante da política internacional do imperialismo estadunidense.
Dou ainda outro exemplo de terrorismo individual: quantas vezes os Estados Unidos procuraram acabar com Fidel Castro? Me reporto também a outros acontecimentos. Por exemplo, cito nesse caso Il Corriere della Sera, principal jornal da Itália. Ele refere que em 1951 os Estados Unidos tentaram assassinar o primeiro-ministro chinês Zhou Enlai atingindo o avião em que viajava. Zhou Enlai, no último momento, mudou de avião e esse da Air Indian no qual se pensava que Zhou Enlai estaria atingiu igualmente a área usada pela CIA e morreram obviamente todos os passageiros. Isso, no que se refere à categoria terrorismo, pode continuar. Por exemplo, no que se refere à categoria fundamentalismo. E os Estados Unidos tacham seus inimigos de fundamentalistas.
O Hamas é fundamentalista, o Hesbolá é fundamentalista, o IRA é naturalmente fundamentalista. Mas poucos sabem que fundamentalismo é um termo que nasce pela primeira vez nos Estados Unidos nos inícios dos anos 1900. E inicialmente não havia uma conotação negativa, era uma autodesignação orgulhosa. Esses círculos protestantes se conservavam para defender a verdade fundamental do cristianismo contra o socialismo, contra a modernidade e, por isso, se autodefiniam orgulhosamente fundamentalistas. É um paradoxo. Essa categoria que nascera como autodesignação orgulhosa bem no coração do Ocidente, bem no coração do império, hoje se dedica a tachar e criminalizar inimigos do império.
Em suma, o fundamentalismo é essa confusão de políticas religiosas — basta ler Bush Filho, que dizia que havia se tornado presidente dos EUA por inspiração divina, que sua política é uma política que tem em conta valores religiosos. Cito personalidades estadunidenses de primeiro plano que concordam que os Estados Unidos combatem contra os inimigos de Deus. Essa é uma terrível forma de fundamentalismo. E acrescento: hoje o fundamentalismo mais perigoso é o estadunidense. Mas não digo isso para atacar os Estados Unidos. Faço essas considerações que devem ser direcionadas para todos.
O fundamentalismo islâmico, criticado e contestado, nunca se dedicou a celebrar um determinado país como o país designado por deus para uma tarefa particular. Somente o imperialismo estadunidense – e o de Israel, devo dizer, concentra-se no imperialismo estadunidense – se dedica a celebrar um determinado país. Por exemplo, Bush Filho dizia que os Estados Unidos são a nação escolhida por Deus para a tarefa de cuidar do mundo.
E esses padrões não se encontram apenas em Bush Filho, mas em uma série de presidentes estadunidenses. Aqui, pois, se conclui a categoria fundamentalismo em meu livro. Pois o fundamentalismo norte-americano tem isso de particularmente perigoso que deforma o sentido religioso, como a nação escolhida por Deus. Um país e um povo determinados.
O presidente Chávez tem dito que existem dois Obama. O senhor concorda com ele? Um que é um pouco esse fundamentalismo e outro que tenta fazer as mudanças e é tomado pela máquina.
Losurdo – Não. Não acredito nessas duas personalidades. Acredito que Obama seja um único presidente que, naturalmente, compreendeu as dificuldades em que o imperialismo estadunidense se confronta, e em que se contorce, e procura controlar atentamente essa nova situação. Mas Obama não sabe a maneira de colocar em discussão o mito dos Estados Unidos como a nação escolhida por Deus. Esse é um teorema ideológico que caracteriza toda a tradição política estadunidense. De outra parte, se observarmos a política concretamente difundida por Obama vemos que ela reforçou a guerra contra o Afeganistão.
Isso é evidente, se reserva o direito de dar curso ao armamento nuclear contra o Irã porque dissimuladamente fez essa ameaça. E o presidente iraniano Ahmadinejad tem razão quando diz que havia essa ameaça. Também na América Latina, para mim, com Obama, a pressão militar do imperialismo estadunidense está aumentando e não diminuindo. E também faço um exame sobre a China. Creio que Obama a considera como adversário principal e está se instrumentando para procurar manter a hegemonia norte-americana.
Paul Samuelson disse a seguinte frase: há uma contradição entre a batalha militar e os gastos orçamentários de cada potência, que num certo momento esses gastos seriam tão altos que comprometeriam a própria sobrevivência daquela potência. Temos visto que é admitido, que é falado nisso, que há um declive acentuado do poder norte-americano. Como se combina esse declive – visível do ponto de vista econômico – com o poderio militar dos EUA e que custa tanto?
Losurdo – Creio que você já tenha colocado precisamente a questão principal. Isto é, a contradição é exatamente essa, mas, como dizer, há uma contradição real e me preocupa muitíssimo. Por um lado, os Estados Unidos indicam fortemente o impacto da crise. Isto está fora de discussão. Esse impacto da crise se faz sentir também no déficit do orçamento comercial e do orçamento central. No entanto, os Estados Unidos não estão de fato diminuindo as despesas militares.
Pelo contrário, de fato fazem de tudo para manter uma comprovadíssima superioridade tecnológica sobre os outros. Em suma, com os investimentos tecnológicos nos últimos tempos efetuados pelos Estados Unidos é como se eles quisessem adquirir uma espécie de monopólio de fato sobre o armamento nuclear. Este é o tema de um artigo da revista estadunidense Foreign Affairs, que fica próxima ao departamento de Estado.
Esse artigo dizia que com as dimensões robustas do arsenal nuclear estadunidenses estão desenvolvendo fortemente a defesa antimíssil e pode-se verificar uma situação em que de fato os Estados Unidos seriam a única potência em nível de investir sobre o plano nuclear de seus inimigos. Naturalmente, essa é a ambição dos Estados Unidos. No entanto, acredito que haja uma efetiva aspiração da parte do imperialismo norte-americano por realizar uma espécie de monopólio de fato da possibilidade de recurso ao armamento nuclear.
Inclusive, pelas últimas manifestações de Hillary e do próprio Obama, eles querem também o monopólio da tecnologia, e não apenas das armas.
Losurdo – Sim. Claro, procuram manter o monopólio da tecnologia. No entanto, aqui, ao contrário, creio que acertam menos. Sobre a tecnologia militar tem uma grande vantagem, sobre a tecnologia enquanto tal a vantagem é mais reduzida porque a China está dando enormes passos adiante. Acredito que a mudança que se desenvolveu a partir da política de abertura de Deng Xiaoping pode ser recuperada deste modo. Pode ser recuperada como um provérbio chinês que diz que às vezes existem situações em que há uma única base, mas na realidade nessa base duas pessoas têm sonhos diferentes, radicalmente diferentes.
Claro, os Estados Unidos, no momento de abertura da China, pensavam que poderiam transformá-la em uma reserva de mão-de-obra a baixo custo, e em um mercado desaguadouro para as mercadorias norte-americanas. ou pelo menos para as mercadorias tecnologicamente mais sofisticadas.
Enquanto, ao contrário, os dirigentes chineses desde o início pensaram essa política de abertura como uma tentativa de equilibrar o desenvolvimento não apenas econômico, mas também tecnológico da China, rompendo o monopólio tecnológico ocidental. Creio que, fundamentalmente, até agora a China está chegando a conseguir esse objetivo. Mais complicada a situação no que diz respeito à tecnologia militar, na qual os Estados Unidos têm uma vantagem que é mais difícil de superar.
Certa ocasião o senhor disse que a tecnologia é a mãe de todas as desigualdades. O senhor estava analisando o embargo de armas da União Europeia para a China por imposição norte-americana. O senhor acha que esta pode ser uma vertente de conflito entre China e Estados Unidos?
Losurdo – A possibilidade de conflito entre China e Estados Unidos é real. É inútil disfarçar que existe essa possibilidade e os Estados Unidos estão se preparando de modo diligente. China e Estados Unidos estão se preparando de maneira radicalmente diferente. Os Estados Unidos em consequência sacrificam o desenvolvimento econômico por causa do desenvolvimento militar. Basta dizer a propósito que apesar da crise continuam a cobrir os 50% do orçamento militar mundial.
A China, ao contrário, se prepara com mentalidade radicalmente diferente, no sentido de que equilibra constantemente o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento tecnológico civil, mas julga que esse desenvolvimento tecnológico tem também recorrências militares. Choques indiretos são sempre mais custosos para os Estados Unidos.
Comente um pouco, por favor, o desfecho da Segunda Guerra Mundial.
Losurdo – O final da Segunda Guerra Mundial produziu um resultado fundamental. Hitler não nasce do nada e acreditava retomar e radicalizar a tradição colonial. E acreditava radicalizar a tradição colonial a ponto de querer constituir na Europa oriental um império colonial de características continentais. E, por isso, Hitler, por repetidas vezes, declara querer construir na Europa oriental as Índias alemãs, assim ele se exprime. Ou, explicitamente, compara a Europa oriental ao faroeste norte-americano. Como a raça branca – dizia Hitler – se expandiu no faroeste exterminando, ou dizimando, os índios e norte-americanizando o território, também o império alemão na Europa oriental se desenvolveria reduzindo a população eslava.
Claro, em Stalingrado e depois, com a derrota final, o III Reich foi obrigado a renunciar a esse projeto. E digo que isso deu impulso a um gigantesco processo de descolonização, que se desenvolveu após a Segunda Guerra Mundial. A derrota do projeto das Índias alemãs na Europa oriental de repente aplainou o caminho para a independência das Índias alemãs propriamente. Pensem: na Ásia, as Filipinas, ao longo da Segunda Guerra Mundial, ainda era uma colônia norte-americana. A Indonésia colônia holandesa. E assim por diante.
Então, a pergunta que podemos fazer aqui é esta: se os anos 1900 foram o da luta de emancipação dos povos colonizados, o que é o século XXI? Essas lutas de emancipação dos povos colonizados acabaram neste século? Ou ainda continuam? Sustento que continuam ainda. Em alguns casos, essa luta anticolonialista manifesta-se no modo clássico porque o colonialismo se manifesta de modo clássico.
Pensem na Palestina. Claro, ali efetivamente o colonialismo se manifesta de modo clássico. Temos a expansão das colônias israelenses e os palestinos são expropriados de suas terras e forçados a imigrar. Mas, ao contrário, em outra situação a luta anticolonial se manifesta de maneira diferente. Isso tinham entendido duas grandes personalidades, entre si muito diferentes. Uma é Mao Tse tung que, às vésperas da conquista do poder, antes ainda de outubro de 1949, disse: Os EUA queriam que a China continuasse a depender da farinha norte-americana, de modo que a China continue a ser uma colônia mesmo depois de sua conquista formal da independência.
Outra grande personalidade, completamente diferente, é, para mim, Franz Fanon. Ele foi o grande teórico da revolução argelina e, em 1961, quando ele publica seu livro Os condenados da Terra, escreve: A atitude das potências coloniais dominantes pode ser descrita deste modo: é como se as potências coloniais voltassem aos povos em luta por independência com esse discurso: querem a independência? Peguem-na e depois morram de fome.
Ou seja, essas duas personalidades entre si tão diferentes compreenderam que uma revolução anticolonial não pode ser realmente vitoriosa se, após a vitória militar, não procura consolidar a independência por meio do desenvolvimento econômico. E, então, devemos dizer que em países como China, Vietnã – naturalmente, vale para Cuba, mas vale também para países que, na América Latina, estão se rebelando contra a Doutrina Monroe – devemos saber ver essa luta pelo desenvolvimento econômico como a continuação, nas novas condições, da luta anticolonialista.
Essa é uma tese que sustento fortemente. E a esquerda ocidental que olha com idoneidade, ou absolutamente com desprezo, a China, Vietnã e os países da América Latina, na realidade, demonstra um verdadeiro primitivismo que entende a luta anticolonial apenas quando se manifesta no plano militar e não a entende, ao contrário, quando se manifesta também no plano econômico.
Por exemplo, não sei se vocês conhecem o livro de Antonio Negri, Império. Há um trecho que, para mim, é iluminado: nós – ele – expressamos solidariedade ao povo palestino, mas essa simpatia acabará imediatamente no mesmo dia em que o povo palestino se constituir como Estado nacional. O que isso significa? Negri diz ao povo palestino: Eu terei simpatia em relação a ti somente até quando continue a ser vencido, humilhado e oprimido. O dia em que o povo palestino, nãoseja mais oprimido, conquistando o Estado nacional independente, não. E se compreende que se o povo chinês, o povo vietnamita, os povos da América Latina não estão na situação desesperada e trágica do povo palestino, por sorte esses povos não estão nessa situação desesperada e trágica, certa esquerda ocidental tem uma posição de desprezo, de hostilidade e de incompreensão profunda daquilo que está por vir. De fato, eles renegam a luta anticolonialista.
Pergunta – O senhor acha que a Itália vai tirar a copa do mundo do Brasil? (Risos)
Losurdo – O Brasil pelo menos no plano artístico é uma grande superpotência.