Marx, pensador da democracia – parte 5
2- Democracia, conceito positivo
A realização desse conceito se identifica com a emancipação do homem, emancipação necessariamente política que deve devolver todo seu papel político ao povo e que deve evitar a separação burocrática entre a vontade do Estado e a vontade do povo. A esse respeito, Marx afirma: “A emancipação política é ao mesmo tempo a desagregação da velha sociedade sobre a qual repousa o Estado, onde o povo não desempenha papel algum, quer dizer, a força do soberano. […] A questão pública como tal deve se tornar uma questão geral de todo indivíduo, e a função política deve ser uma função geral” (21). Mais adiante, ele define, ainda em Sobre a questão judaica: “A emancipação humana só pode ser realizada quando o homem reconheça e organize suas próprias forças como forças sociais e não separe mais de si a força social sob a forma de força política” (22). A democracia mostra-se como um regime onde a força política é verdadeiramente pública. Os cidadãos formam um público. Mas esse público não é mais passivo, satisfeito em consentir com o poder, pois, de um lado, ele deve contribuir com a formação de decisões políticas, mas também deve controlar a aplicação de suas decisões. Consequentemente, para Marx, a liberdade política não pode ser um estado, mas um conjunto de práticas pelas quais os cidadãos conseguem politizar os problemas, ou seja, conseguem intervir nas instituições políticas.
Uma democracia forte não é representativa, mas participativa: ela deve, pois, multiplicar os meios políticos pelos quais os cidadãos se definem como um público ativo na construção de um bem coletivo. Essa coletividade, apoiada sobre a atividade incessante dos cidadãos, forma para Marx não um Estado, mas uma comunidade. De fato, o termo Estado, para Marx, remete à institucionalização da separação entre os interesses dos governantes e a vontade do povo. A democracia, ao realizar a liberdade, deve fazer o Estado desaparecer da realidade e da linguagem política: “O dia em que seja possível realizar a liberdade, o Estado deixará de existir enquanto tal. Assim, proporíamos colocar em todas as partes a palavra comunidade em lugar da palavra Estado” (23). O termo comunidade é portador dessa ideia: se no Estado pede-se aos cidadãos para se identificarem, através de eleições, com um bem comum do qual não são a origem, na comunidade, isso é resultado de movimentos permanentes de politização iniciados pelos cidadãos. Já em a Crítica da filosofia do direito de Hegel, Marx afirma: “O Estado é um termo abstrato; só o povo é um termo concreto” (24). Esse concreto coincide com um processo ativo de transformação da situação existente. Dizer isso significa então que a igualdade e a liberdade não são bens que deveriam ser possuídos, finalidades inflexíveis que deveriam ser acatadas. Elas são a direção pela qual devem ser orientadas as mudanças a serem empreendidas na situação política.
Desse modo, o desaparecimento do Estado não pode coincidir com uma lógica totalitária e de uma concentração de poder por um partido único, já que deve corresponder à instauração de uma comunidade de cidadãos na qual o poder não corresponde a uma lógica de separação e de concentração, mas a uma lógica de sua dispersão: o poder deve se disseminar, ou seja, ele deve se tornar acessível e controlado por todos os cidadãos. Assim, duas coisas: a política ou é abstrata, separada de qualquer intervenção popular, ou depende de uma força de iniciativa dos cidadãos. E para que essa força exista é preciso multiplicar os locais de participação. É essa multiplicação que deve colocar um fim à abstração do Estado.
Além disso, Marx afirma que a democracia é a verdade da política, ela é, nos diz ele: “o enigma resolvido de todas as constituições” (25). O que significa essa afirmação? Marx nos dá a resposta: “Na democracia, cada um dos elementos adquire apenas o significado que a ele se aplica. Cada um é realmente apenas o elemento da grande démos” (26). Uma constituição apenas está em conformidade com a verdade política numa forma democrática. E a democracia significa para Marx o espaço político no qual todos os indivíduos são a grande démos. E o enigma político resolvido pela democracia é a síntese entre o particular e o universal, ou para falar em termos não hegelianos, o elo entre a vontade dos cidadãos e a vontade política. Mas atenção, isso não quer dizer – como afirma especialmente Raymond Aron em O marxismo de Marx – que na democracia marxista “cada um é um elemento do todo, portanto o todo determina cada um” (27). Nessa frase de Aron, o problemático é a consequência. De fato, se realmente, em uma democracia, cada cidadão é um membro da comunidade, isso não significa que é a comunidade que determina os cidadãos, mas o contrário: os cidadãos é que determinam a comunidade. É bem isso o que afirma o próprio Marx, já que faz da democracia o único espaço animado por uma lógica de autoconstituição criada pelos cidadãos:
“Na democracia, a própria constituição mostra-se como uma determinação, isto é, como autodeterminação do povo. […] Aqui, não é somente em si, segundo a essência, mas segundo a existência, a realidade, que a constituição é constantemente reconduzida ao seu fundamento real, o homem real, o povo real, e que é posta como sua própria obra. A constituição mostra-se tal como ela é: livre produto do homem. […] Do mesmo modo que a religião não cria o homem, mas ao contrário é o homem que cria a religião, a constituição não cria o povo, mas ao contrário é o povo que cria a constituição. […] O homem não é feito pela lei, mas é a lei que é feita pelo homem, ela é a existência do homem enquanto nas outras constituições o homem é a existência da lei. Essa é a diferença fundamental da democracia” (28).
A democracia se determina, pois, por essa diferença fundamental: ela é o único espaço político onde a atividade política é real, quer dizer, onde ela não se transforma em gestão, em administração dos homens. Aqui a política não é uma maquinaria, mas uma atividade de autoconstituição realizada pelos cidadãos. Assim, a democracia realiza essa síntese da vontade do povo em vontade política, pois há coincidência entre as duas. Na visão de Marx, a democracia realiza a inversão de todas as realidades políticas: ela é esse regime de inversão. Onde a constituição cria o povo, pois o legislador é extrínseco ao povo, a democracia é o regime da autoconstituição; onde a lei é um produto separado da vontade dos cidadãos, na democracia ele é produzido por essa vontade.
Mas para Marx essa definição de soberania do povo permanece insuficiente caso o povo não tenha poder de controle sobre a aplicação das leis. Sobre isso, Marx afirma: “Falta a primeira condição de toda liberdade, ou seja, que frente a cada cidadão, todo funcionário seja responsável por todos os seus atos que execute durante o exercício de suas funções” (29). Uma democracia encarna a realidade da política caso ela realize dois princípios: a soberania do povo e a responsabilidade política de cada cidadão possuir um poder. Essa responsabilidade vai de braços dados com a possibilidade de cada cidadão controlar a atividade política dos detentores do poder. Esse controle não é formal, mas implica que todo detentor do poder pode ser destituído a qualquer momento.
Essa definição não é para Marx uma simples utopia que a história vai esquecer, ou que vai ficar no vasto museu das ilusões perdidas. Essa definição tornou-se realidade, pois foi concretizada na história. Vejamos então o nosso terceiro momento da caracterização da democracia em Marx.
Notas
(21) La question juive, p.16.
(22) Ibidem, p.18.
(23) Critique du programme de Gotha et d´Erfurt, p.42.
(24) Critique du droit politique hégélien, p. 66.
(25) Ibidem, p.68.
(26) Ibidem, p.68.
(27) Le marxisme de Marx, Éditions de Fallois, 2002, p.129.
(28) Hegel. Critique du droit politique hégélien, p.69.
(29) Critique des programmes de Gotha et d´Erfurt, p.42.