Luiz Gonzaga Belluzzo é conhecido por sua precisão nos diagnósticos da crise do capitalismo. Na noite de quinta-feira (1), mais uma vez ele foi preciso ao comentar o assunto no auditório da sede nacional do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), na cidade de São Paulo. “É impossível compreender como o capitalismo se transforma e como ocorrem as crises sem a perspectiva da luta de classes”, disse ele logo no início de sua intervenção. Em resumo, sua tese é a de que o fim do arranjo político, econômico e social do pós-Segunda Guerra Mundial, que propiciou os chamados “trintas anos gloriosos”, é a raiz da crise atual.

Segundo ele, esse arranjo trouxe os trabalhadores para a cena política. Foram fundamentais para a construção da economia daquele período, garantindo conquistas que jamais obtiveram. Com a chegada do neoliberalismo na virada dos anos 1970 para os 1980, as conquistas organizativas dos trabalhadores começaram a ser atacadas.

Definições

A incompatibilidade da liberdade de organização com o projeto neoliberal começou a ser demonstrada quando a primeira-ministra britânica Margareth Thatcher enfrentou com mão de ferro as greves do mineiros entre 1982 e 1985. De 1979 a 1985, mais de 220 mil postos de trabalho nas minas foram eliminados pela política neoliberal, resultando na quase extinção de uma das mais importantes categorias do movimento operário inglês — responsável pela histórica tradição de luta e resistência dos trabalhadores daquele país.

Na mesma época, o governo do presidente Ronald Reagan, nos Estados Unidos, reagiu imediatamente à paralisação dos controladores de vôo, declarando a greve ilegal. Reagan deu um ultimato e estabeleceu um prazo de 48 horas para que os trabalhadores retornassem ao trabalho. Vencido o prazo e sem acordo, o presidente demitiu 11.359 trabalhadores e proibiu que qualquer um fosse readmitido no serviço público.

Segundo Belluzzo, esses dois episódios foram simbólicos. Para o regime neoliberal, era preciso debilitar a força acumulada pelos trabalhadores, sobretudo nos anos 1950 e 1960 durante a chamada “era keynesiana”, ou “era social-democrata”. Para ele, ambas as definições são imprecisas por conta da forte presença dos partidos comunistas no arranjo pós-Segunda Guerra Mundial, com destaque para a França e a Itália. Essas definições, disse Belluzzo, são enganosas porque não exprimem como a força política dos trabalhadores foi catalizada para aquele arranjo.

Conexão

Beluzzo explicou que havia uma conexão clara entre a subida da carga tributária para as camadas mais ricas e a distribuição de serviços públicos de maneira equânime. Segundo ele, os sinais de que esse sistema começava a ruir surgiram com as manifestações de 1968, quando forças importantes começaram a se mobilizar para mudanças mais profundas. Com isso, só dez anos depois os setores dominantes, em âmbito global, começaram efetivamente a desmontar o arranjo pós-Segunda Guerra Mundial.

Thatcher e Reagan iniciaram o processo político de retirada das organizações dos trabalhadores de dentro do Estado para que o capitalismo pudesse se desenvolver sem entraves. Belluzzo explicou que assim surgiu o supply side econômico (economia do lado da oferta). Os defensores desse conceito diziam que o Estado estava muito pesado, que os impostos aos mais ricos inibiam a poupança e, portanto, a capacidade de investimento, causando danos aos trabalhadores, afetados pela falta emprego decorrente da economia estagnada. A ordem era liberar as forças naturais do capitalismo para que passassem a operar novamente. E por “gotejamento” beneficiar os de baixo.

Nessa marcha batida, surgiram também a desregulamentação financeira, que deu livre curso aos fluxos de capitais. O Estado foi posto de lado e a teoria da “repressão financeira” — que incluía a separação entre os bancos comerciais e os demais intermediários financeiros, controles quantitativos do crédito, tetos para as taxas de juros e restrições ao livre movimento de capitais —, abolida. Como conseqüência, ocorreu a erosão dos esforços na busca da igualdade, que se manifestou em primeiro lugar pela brutal taxa de desemprego. Belluzzo concluiu sua explanação inicial dizendo que o aumento significativo da desigualdade e a desregulamentação financeira formam as raízes da crise atual.

Gênese

Renato Rabelo, presidente nacional do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), falou em seguida. Registrou a satisfação dos comunistas em receber o professor Belluzzzo e comentou que o PCdoB preza muito o conhecimento de intelectuais como ele. Segundo Renato Rabelo, os comunistas levam em conta a importância decisiva do pensamento avançado para a construção de uma sociedade desenvolvida, de uma nação respeitada. Não é possível, disse, chegar ao socialismo sem ter em conta a elaboração desse pensamento. Lembrou que o lendário ex-presidente Getúlio Vargas estimulou o desenvolvimento de um pensamento nacional e desenvolvimentista.

Elogiou o grande esforço que Belluzzo tem feito para diagnosticar a gênese da crise e enfatizou que para um partido como o PCdoB essa contribuição visando a compreensão do que é o capitalismo atual tem importância fundamental. Concordou com a avaliação de que a transição para o neoliberalismo foi uma grande derrota para os trabalhadores e os povos e fez a interface dessa realidade mundial com a situação brasileira.

Segundo Renato Rabelo, existem duas possibilidades visíveis para o desdobramento da crise. Uma seria a ocorrência de um novo pacto político, social e econômico por meio do desenvolvimento da luta de classes, da luta política; a outra seria uma desaceleração da economia até a níveis de uma recessão global, tendo como conseqüências a elevação do desemprego e da degradação social. Se não houver um movimento popular que enfrente a situação para buscar saídas, haverá mais perdas de conquistas sociais.

Desaceleração

Para ele, é necessário construir esse movimento com consciências novas. Seria um fator substantivo para enfrentar o cenário provável de um ciclo de desaceleração da economia no centro do capitalismo de cinco a seis anos pelo menos. Em um quadro como esse, disse, é preciso observar o fenômeno que vinha se desenvolvendo antes da manifestação aguda da crise, em 2008, de industrialização da China e inchaço financeiro nos Estados e nos países mais ricos da Europa. Segundo Renato Rabelo, essa realidade demonstra que o poder mundial está em jogo, o mundo passa por uma transição progressiva. Não é um processo acelerado, mas tende ao acirramento e realça o poder militar dos Estados Unidos como fator de manutenção da sua hegemonia.

Renato Rabelo Considerou que no caso brasileiro há uma situação paradoxal. O país pode tirar proveito da crise para alavancar um projeto nacional de desenvolvimento e fazer dela uma “janela de oportunidades”, com a perspectiva de dar um salto de qualidade na sua industrialização e no combate às injustiças sociais. Segundo ele, o Brasil não deve se contentar em ser uma grande mina, uma grande montadora ou uma grande fazenda. Um primeiro passo nessa direção seria o rompimento com o pacto tácito estabelecido com o Plano Real que deu uma grande força ao sistema financeiro.

Renato Rabelo explicou que esse pacto tácito surgiu quando a chamada “estabilidade” da economia se baseou na brutal elevação da taxa de juros. Foi uma “estabilização” que tem custado um preço elevado. Os juros estratosféricos passaram a ser uma peça importante da engrenagem monetária montada com aquele processo. A grita que tem se ouvido com a recente decisão do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) de cortar 0,5% da Selic decorre dessa constatação, segundo Renato Rabelo.

Rumo

Para ele, houve um sinal de convergência entre política fiscal e política monetária, uma oportuna articulação entre o governo e o BC. Segundo Renato Rabelo, esses dois entes precisam ter uma linha política comum. O presidente do PCdoB saudou a decisão e disse que a presidenta Dilma Rousseff pode contar com os comunistas se a inteção for a de promover o equilíbrio do custo social decorrente da austeridade fiscal com os benefícios econômicos e também sociais da redução na taxa de juros.

Na parte final de sua intervenção, fechando o debate, Renato Rabelo disse que em uma hora como essa as condições são propícias para se buscar uma saía própria, com mais soberania para o país, com mais independência e defesa dos interesses nacionais. A crise oferece oportunidades, a exemplo do que ocorreu em 1930 quando Getúlio Vargas chegou ao poder. O Brasil havia sido deixado de lado e o governo aproveitou para industrializar o país.

A grande questão, ressaltou o presidente do PCdoB, é política, a definição de um rumo que quebre o pacto conservador que concedeu poderes excessivos ao sistema financeiro. Só assim será possível avançar com um projeto soberano e independente. A solução é política, segundo ele. A crise cria uma situação nova, enfatizou. É preciso definir uma nova política macroeconômica, em consonância com a atualidade, para que o Brasil possa ter um papel importante no contexto mundial.

Interligação

O terceiro palestrante, Sérgio Barroso, diretor de estudos e pesquisa da Fundação Maurício Grabois, acrescentou uma questão relevante ao apontar as conseqüências da tendência de estagnação, ou semi-estagnação, no centro do capitalismo para os demais países. Segundo ele, é preciso considerar a possibilidade de contaminação na China e na América Latina, principalmente. Registrou alguns prognósticos de desaceleração também nesses países em decorrência da interligação da economia em âmbito mundial.

Barroso lembrou formulações de Karl Marx segundo as quais as crises do capitalismo não são permanentes, apresentando períodos que restauram momentaneamente o equilíbrio. Lembrou também que Lênin formulou a idéia de que no curso da estagnação pode ocorrer pontos de crescimento. E concluiu afirmando que o quadro mundial está cheio de interrogações, que vão sendo respondidas à medida que debates como este são realizados.

Dilermando Toni, jornalista e membro do Comitê Central do PCdoB, participou do debate também manifestando a preocupação de que a crise pode se expandir para a periferia da economia mundial. Segundo ele, há uma inversão — no tempo do neoliberalismo, a crise se manifestou com força nos países mais pobres; agora, a periferia, puxada pela China, sente menos os efeitos da crise. Segundo ele, há motivos para se temer a contaminação dos países em desenvolvimento por conta da interligação da economia mundial.