A construção do Homem no jovem Marx (parte 2)
Dos primeiros anos à tese de doutoramento
Os primeiros anos da vida de Marx transcorreram em meio às agitações políticas desencadeadas pela Revolução Francesa. Um período política e socialmente rico, no qual os abomináveis princípios franceses ganhavam o mundo — pela vida dos propagandistas revolucionários ou pelas botas dos exércitos napoleônicos. A própria província Renana, onde se encontra a Triers natal de Marx, foi anexada à França entre 1794 e 1815.
Torre Eifel, Paris, 1889.
(Em 31 de março de 1889 foi inaugura a Torre Eiffel, marco centenário da Revolução Francesa)
A derrota de Napoleão abriu uma nova época. Um fantasma desceu sobre a Europa – o fantasma da Santa Aliança, uma coligação reacionária chefiada pela Rússia tzarista. A Renânia tornou-se novamente uma província prussiana. Os sonhos dos liberais e radicais pareciam chegar ao fim. Mas, como “tudo que é sólido se desmancha no ar”, a Santa Aliança acabou por ruir aos golpes de uma nova onda revolucionária que varreu a Europa entre 1830 e 1848, tendo a França como seu epicentro.
O que hoje chamamos de Alemanha era na verdade um aglomerado de pequenos Estados independentes, entre os quais se incluía a Prússia, que desde 1815 era governada por Frederico Guilherme III. Este havia prometido, ao assumir o trono, governar sob uma constituição liberal, mas logo a seguir, inserido no espírito conservador da época, desencadeou uma violenta repressão contra o movimento democrático e liberal.
“Na Alemanha”, afirmou o socialista Wilhelm Liebnecht, “o governo foi separado do povo e colocado acima dele, como algo de superior. Era considerado um ser supremo (…) sendo o povo privado de toda a capacidade de raciocínio e de julgar de maneira independente, sendo-lhe reconhecida apenas uma obrigação, a de acreditar cegamente no governo, a de lhe obedecer cegamente”. Frederico Guilherme III restabeleceu o império de censura. Reuniões políticas foram proibidas, as universidades colocadas sob um controle rigoroso e professores liberais foram sumariamente afastados.
Ao mesmo tempo, e contraditoriamente, desenvolvia-se a filosofia. O pensamento filosófico ganhava força na Alemanha dos junkers, com Scheller, Goethe, Fichte, Kant e Hegel. Os alemães, portanto, como afirmou o poeta Heine, “realizaram no plano espiritual uma revolução semelhante àquela que Danton e Rosbepierre realizaram no plano político”. Na mesma linha afirmou Marx: “Nós, alemães vivemos a nossa história futura em pensamento, na filosofia. Somos, no plano filosófico, seus contemporâneos”.
Toda esta situação influenciaria muito o jovem Marx. Infiltravam-se nele as ideias mais avançadas do seu tempo: o revolucionarismo francês e o humanismo radical. Sem dúvida, a primeira grande influência foi exercida por seu próprio pai, Henrich Marx. Segundo Garaudy, ele era “um verdadeiro francês de século XVIII, sabendo de cor Voltaire e Rousseau (…) buscando neles o princípio da autonomia da pessoa humana”.
Os primeiros estudos de Marx foram feitos no Liceu de Triers, onde também se podia sentir as influências das ideias liberais, através de professores como Wyttnbach (diretor do Liceu) e Steiniger. Motivo para que a polícia prussiana mantivesse tal estabelecimento sob severa vigilância.
Essa influência já podia ser sentida em alguns trabalhos escolares redigidos por ele, em especial a monografia Um jovem perante a escolha de uma profissão, escrito em agosto de 1835. “A diretiva principal que nos tem de guiar na escolha de uma profissão”, escreveu Marx, “é o bem da humanidade e a nossa própria realização (…) A natureza do homem está estabelecida de tal modo que ele só pode alcançar o seu aperfeiçoamento se agir para a realização, para o bem dos seus contemporâneos”. E concluiu: “se escolhermos uma profissão em que possamos trabalhar o máximo pela humanidade (…), num sacrifício por todos, não fruiremos uma alegria pobre, limitada, egoísta, mas a nossa felicidade pertencerá a milhões”.
Podemos afirmar, pelo que conhecemos da vida de Marx, que essa convicção jamais o abandonou, mesmo nos períodos mais difíceis, transformando-se de uma aspiração juvenil numa certeza, numa concepção científica de mundo, colocada a serviço da humanidade e de seu futuro.
Devemos, no entanto, concordar com Nicolai Lápine, que afirmou que essa convicção juvenil não pode explicar, por si só, como o jovem Marx se tornou o principal teórico e dirigente do movimento operário internacional e fundador de uma nova ciência: o materialismo histórico. Mas, fossem quais fossem as restantes circunstâncias, Marx nunca se tornaria esse dirigente, homem de teoria e ação, se não tivesse sido antes de tudo um homem, no sentido completo da palavra.
Após formar-se no Liceu de Triers Marx seguiu para Universidade de Bonn e matriculou-se no curso de direito. Essa havia sido a vontade do pai, que queria ver o filho ingressar numa carreira “prática”. Mas, pouco a pouco, o jovem Marx foi arrastado pela vida agitada e boêmia dos estudantes e acabou sendo eleito presidente de uma de suas associações. Sonhava tornar-se poeta e aderiu à União dos Jovens Escritores, escrevendo versos como “Não posso nunca realizar na calma/ O que a alma aprende com vigor”, ou “Kant e Fichte vagueiam de bom grado pelo éter / Procuram aí um país distante/ Eu, contudo, procuro apenas compreender, bem / Aquilo que encontrei na rua!”.
Mas a ação enérgica do pai levou-o abandonar Bona e transferir-se para a austera Universidade de Berlim. Por então escrevia Marx: “Agora a poesia só poderia e devia ser acompanhamento; tenho de estudar a jurisprudência e sinto, sobretudo, um impulso de me debater com a filosofia”. Esse impulso só tenderia a crescer, ofuscando os demais.
Na nova universidade entrou em contato com os “jovens hegelianos” – ou “hegelianos de esquerda” – e acabou, definitivamente, desviando suas atenções da ciência prática para uma ciência “não-prática”. Abandonou o curso de direito trocando-o pelo de filosofia, o que o aproximou das ideias de Bruno Bauer. Afirmou decidido: “Tornou-me claro que sem a filosofia em nada se podia penetrar. Assim, pude de novo lançar-me nos braços dela com boa consciência”.
Bruno Bauer era o principal mentor do “Clube de doutores”, seleto grupo composto por jovens hegelianos que procuravam extrair das obras de Hegel conclusões anticlericais e liberais. Para eles a religião e o Estado prussianos eram obstáculos ao pleno desenvolvimento do Homem. Portanto, fazia-se necessário libertá-lo desses entraves, sendo que só a “consciência de si” poderia cumprir essa tarefa: a superação da religião passava pela filosofia especulativa, pela realização de uma crítica teórica radical. Uma concepção radical mas ainda marcadamente idealista do ponto de vista filosófico.
Desse clima intelectual reinante entre os jovens hegelianos, sob a direção de Bauer, nasceu a primeira obra de Marx, a sua tese de doutoramento intitulada Diferença entre as filosofias da natureza de Epicuro e Demócrito.
(Continua na parte 3)
Augusto César Buonicore, historiador e mestre em Ciência Política pela Unicamp, é secretário-geral da Fundação Maurício Grabois e membro dos conselhos editoriais das revistas Princípios e Crítica Marxista. Este ensaio – cuja versão atual foi publicada originalmente em cinco partes na revista Juventude.br (números 1 a 5) – foi escrito há mais uma década e muitas das opiniões nele contidas não correspondem mais integralmente às posições do autor. A motivação principal de sua publicação é oferecer uma visão panorâmica da formação intelectual inicial de Marx, algo de grande utilidade especialmente para as jovens gerações de comunistas, que conhecem pouco a vida e a obra do fundador do socialismo científico.