Capital, Estado e moeda um ensaio sobre a crise do dólar
Trataremos aqui de duas teses antagônicas sobre o tema em discussão no Brasil. Elas têm ficado em voga, em especial, na fase do debate iniciada nos anos noventa. Criticaremos as duas teses para defender que, de fato, a função de moeda internacional do dólar aparenta vir ficando cada vez mais frágil; no entanto, sua substituição – caso ela se dê – ainda não é previsível, e esse processo não pode ser definido apenas pelas forças do merca do. A função da moeda internacional é principalmente definida pela força política, militar e econômica do Estado hegemônico, e sua substituição estará sempre vinculada à quebra dessa hegemonia.
1. A divergência sobre o destino da moeda internacional
As desventuras do dólar como principal moeda internacional, que vem passando por períodos alternados de valorização e desvalorização desde o final do Acordo de Bretton Woods em 1971-73, acende o debate sobre a viabilidade de sua continuidade nesse posto.
A primeira tese: dólar se enfraquece e será substituído
Conforme defende a primeira tese, tendo os EUA se transformado em um país devedor do mundo, dependendo cada vez mais de recursos externos para financiar o seu déficit externo e também seu déficit fiscal, não têm mais condição de manter, em longo prazo, sua moeda nacional, o dólar, como principal moeda internacional. O raciocínio fundamental des¬sa tese é de que a crescente posição devedora tende necessariamente a desvalorizar o dólar (ou a manter uma incerteza permanente na flutuação de seu valor), gerando constante prejuízo aos financiadores dos EUA fazendo com que, mais cedo ou mais tarde, haja uma migração dos ativos para outra moeda, como o euro, por exemplo. Isso forçará os EUA a desvalorizarem ainda mais sua moeda até que se restabeleça a “taxa de câmbio de equilíbrio”, permitindo que a economia americana elimine o seu déficit em transações correntes (comércio exterior mais rendas), naturalmen¬te à custa de uma redução no seu PIB e também, em conseqüência, no PIB de todo o mundo.
Esse processo poderá se dar de modo paulatino, ou bruscamente, fazendo com que a inevitável re¬cessão possa ser mais ou menos traumática. Aqui, os defensores dessa tese se dividem. Uma parte – os defensores do capitalismo – considera que a racionalidade capitalista garantirá que o processo será progressivo. Desse modo, será possível que outra moeda – como o euro, por exemplo – venha a assumir, gradativa ou repentinamente, as funções do dólar, deslocando-o do centro do sistema financeiro e do comércio internacionais. Esse processo já teria se iniciado, o que seria atestado pela crescente desconfiança no dólar, sua instabilidade, e o próprio surgimento bem sucedido do euro (ver, por exemplo, o recente trabalho de Frankel e Chinn, 2008). Já para a outra parte, – críticos do capitalismo ou simplesmente antiamericanos – a perda da moe¬da internacional enfraquecerá o hegemônico, fazen¬do, por meio da economia, o que não se pode fazer pelas armas: derrotar os EUA.
A segunda tese: o dólar-flexível é sustentável e forte
Por outro lado, para a segunda tese, a posição de¬vedora dos EUA não afeta, necessariamente, a ma¬nutenção do dólar como moeda internacional. Para esta, a natureza da posição americana na economia internacional também mudou. Ao se financiar com recursos de curto prazo e sustentar, com seu déficit em transações correntes, os investimentos de longo prazo do resto do mundo, a economia americana funcionaria como um banco mundial, fornecendo liquidez para a economia globalizada, mantendo o sistema funcionando (ver F. Serrano, 2002 e também M. C. Tavares e L. E. Melin, 1997). As características do dólar como moeda internacional também mudaram. De principal moeda de denominação de contratos financeiros, ela passou a um novo tipo de moeda, denominada por M. da Conceição Tavares e L. E. Melin (1997) de “moeda financeira”.
Assim, o fato de ser o país hegemônico devedor líquido não significaria necessariamente uma ameaça à posição de sua moeda. O risco que correria os EUA – em sua função de “banco mundial” – e sua moeda seria o mesmo de qualquer banco comercial: a falta de confiança dos “correntistas” – no caso, os países credores – provocando “saques” desproporcionais a sua capacidade de “caixa”, por desequilíbrio gra¬ve entre seu déficit externo e sua capacidade de atrair os dólares excedentes no exterior. Porém, esse risco decorreria mais de erros na condução da política monetária do Federal Reserve Board – Fed do que de qualquer nível de endividamento líquido que venha a ser atingido pela economia americana e não um problema estrutural do sistema. Em resumo, desde que o sistema se mantenha em “equilíbrio” (ou em “desequilíbrio estável”) funcionando, nada impede que a situação devedora americana continue a existir sem problema, e o dólar a funcionar como moeda internacional.
Embora o valor do dólar continue a flutuar, a manipulação da política monetária – da taxa de juros – pode evitar extremos de valorização/desvalorização, garantindo o dólar no seu papel. Ainda mais porque não haveria alternativa viável de moeda internacional, já que a União Européia, por exemplo, não teria condições, com o euro, de fornecer liquidez necessária ao mundo, pois isso significaria ter de arcar com um grande déficit externo, inclusive comercial, o que ameaçaria a própria unidade recém-conquistada da União Européia. Para os defensores dessa tese, o dólar é hoje – a contrário senso – uma moeda forte na sua nova forma de “moeda financeira”.
Apesar de divergir quanto aos resultados, as duas teses têm um algo em comum: a concepção de que o problema da moeda internacional é eminentemente uma questão econômica e que o fenômeno social se desenvolve de modo linear, sem que as decisões gerem necessariamente conseqüências indesejáveis e sem que aconteçam rupturas.
Ao privilegiar o fenômeno econômico, as duas argumentações subestimam o fator da política, em especial o papel do Estado, na determinação e manutenção do dólar como moeda internacional, em especial a articulação dialética que existe entre economia e política como causalidade. A posição de M. Conceição Tavares, nesse caso, é diferenciada; para ela, a retomada da hegemonia americana e da força do dólar por meio da globalização financeira, após a crise dos anos 1970, é principalmente fruto de uma política deliberada do Estado americano (ver M. C. Tavares, 1985, e M. C. Tavares e Melin, 1997). Embora, assim, Tavares pareça cair no lado oposto, supervalorizando a capacidade de uma política de Estado, sozinha, ser capaz de determinar um fenômeno multifacetado e de abrangência mundial, como foi a globalização financeira.
Para entender essa crítica às duas teses e como os fatores econômicos e políticos agem conjuntamente na determinação e manutenção de uma dada moeda na função de moeda internacional, é necessário tratarmos brevemente de duas questões que nos parecem fundamentais para entender o problema. Primeira: a natureza da moeda no capitalismo e no sistema monetário internacional existente, e, segunda: a dinâmica do capitalismo e sua relação com o sistema interestatal e com a hegemonia americana.
2. A natureza da moeda, sua hierarquia e o atual sistema monetário
O conceito marxista de moeda (aqui na mesma acepção de dinheiro) é que esta existe como uma relação social de produção que, em qualquer sociedade onde haja troca e circulação de mercadorias, vincula os indivíduos a obrigações mútuas, liquidando-as. Essa relação social – com a crescente complexida¬de dos modos de produção – passou a mediar outras relações sociais de produção que estabeleceram regimes de exploração do trabalho. No capitalismo, a moeda passou a mediar integralmente, no nível econômico, as relações de troca e também as de exploração, na medida em que, nesse modo de produção, a mercadoria reina como forma exclusiva de produção da riqueza, inclusive da força de trabalho e de meios de produção como a terra.
À diferença de outras relações sociais de produção, a moeda precisa ser quantificável e fracionável. Para tanto, ela assume forma material e simbólica – forma que passou a ser generalizadamente confundida com a própria relação social, obscurecendo sua natureza de relação entre pessoas. Esse fetichismo faz com que o dinheiro ganhe vida própria e também substitua, no senso comum, as relações assimétricas de troca que determinam a exploração (o capital) e também o próprio “poder” na sociedade. Isso faz da moeda um fetiche de grande expressão cultural, igualmente adorado e odiado.
A moeda assumiu historicamente formas simbólicas crescentemente sofisticadas e cada vez mais imateriais. Enquanto relação de produção, ela assume funções diversificadas que foram sendo acrescidas à medida que as demais relações sociais de produção também se complexificavam.
A primeira dessas funções é a da troca, onde a moeda intermedeia, de forma imediata, a circulação das mercadorias, em que o dinheiro facilita a troca de uma mercadoria por outra (M-D-M). A segunda, é a de equivalente geral, de medida de valor, assumindo a forma abstrata de todas as mercadorias, servindo de “régua” aos agentes econômicos. É o padrão da moeda – hoje, geralmente expresso apenas em moedas estatais. A terceira, mais moderna, é a de modo de pagamento que, diferentemente da troca, medeia o intercâmbio de mercadorias em momentos diferentes do tempo (diferimento). Por fim, temos o dinheiro na sua função de reserva de valor. Assim como o meio de pagamento, ela é uma moeda que transporta sua qualidade no tempo, porém, de maneira mais genérica, sua “missão” é manter o valor na sua forma abstrata e sem prazo de vencimento. O dinheiro, nas suas diver¬sas funções, assume formas que possuem diferentes relações de confiabilidade, liquidez e praticidade.
No entanto, tais funções não expressam apenas relações econômicas. A moeda nasceu historicamente como uma expressão do Estado, que garante sua confiabilidade e padronização. Não sendo nenhuma expressão “pura” das relações econômicas, não pode ser, portanto, uma mercadoria perfeita, cujo preço seja determinado como o das laranjas e bananas. Moeda é economia e política: capital e Estado.
Historicamente, a moeda também passou a expressar uma outra relação social de produção mais complexa e sofisticada: o capital. Como relação de produção, o capital é definido, por Marx, como aquela relação cujo objetivo é acumulação constante e ininterrupta de riqueza na sua forma abstrata de va¬lor. A busca da acumulação de valor abstrato faz com que o capital sempre busque o dinheiro como forma de partida e de chegada de seu ciclo de valorização (a famosa fórmula D-M-D’).
O fato de o dinheiro assumir a natureza de intermediário do comércio (a circulação da riqueza) e a natureza de capital (a riqueza que se acumula na forma abstrata) depende tão só do objetivo do agente econômico que o utiliza: se consumidor, é moeda de troca; se capitalista, é capital. Como os objetivos do dinheiro divergem nos dois casos (circulação ou acumulação), também divergirá o significado social do dinheiro. Esse duplo caráter da moeda tem sido fonte dos maiores erros entre analistas liberais e até marxistas.
Quando do advento do capitalismo no Renasciento europeu, o também nascente Estado moderno deu um passo à frente na generalização da moeda como mediadora das relações sociais. Instituiu-se não só como emissor da moeda corrente – função de troca e padrão de medida – como passou a deter seu monopólio, originando o dinheiro estatal como o conhecemos hoje: a moeda nacional (o dólar, a libra, o euro, o real).
A incontrastável capacidade do Estado de dar su¬porte à sua moeda frente à de emitentes privados, mui¬to mais sujeitos à instabilidade e à perda de confiança, colocou a moeda estatal no cimo da hierarquia do dinheiro, o que foi funda¬mental para dar estabilidade ao dinheiro e confiabilidade para todas as demais formas de moeda de emissão privada pelos capitalistas. Também garantiu aos nascentes Estados-nações da Europa um poder que contrabalançava, até certo ponto, a capacidade do ca¬pital de emitir meios de pagamentos e de ir e vir – por meio deles – entre as diversas jurisdições nacionais.
Esses gastos representavam o custo fiscal neces¬sário para garantir o monopólio do Estado sobre o padrão monetário e a emissão de moeda confiável, condição necessária para manter os capitalistas em seu território, e até atraí-los de outros Estados. Isso, por sua vez, garantia ao Estado e a seus governantes a possibilidade de manter, no futuro, uma base de tributação estável ou em ampliação, mantendo também em seu território a produção estratégica para sua defesa e expansão: armamentos, suprimentos básicos etc. A moeda estatal, além da força militar para criar os monopólios de negócios, era parte da aliança de interesses que conformavam um ao outro, o Estado-nação e o capitalismo nascentes.
3. A moeda internacional, dinâmica do capitalismo e do sistema interestatal
Assim como nos sistemas monetários nacionais, ¬o sistema interestatal europeu ocidental criou, des¬de muito cedo, um sistema monetário internacio¬nal hierarquizado. A hierarquia foi formada inicial¬mente pelas primeiras moedas estatais e pelas letras de câmbio dos mercadores, que se organizavam em “nações” com base em cidades-estados (Veneza, Gênova, Florença etc.). O amadurecimento do sis¬tema interestatal logo também se estratificou em uma hierarquia dominada por um Estado hegemônico, a quem se associavam ou se antepunham os demais. E o lugar de principal moeda internacional, naturalmente, foi ocupado pela moeda estatal do Estado hegemônico, sustentada pelo seu próprio sistema financeiro, e pela sua capacidade política, militar e econômica.
Historicamente, as moedas internacionais se sucederam à medida que a Europa ocidental se ex¬pandia, impondo seu con¬trole econômico, político-militar ao mundo, desde o século XVI, conforme também se sucediam as potências hegemônicas: Holanda, Grã-Bretanha e EUA. No entanto, há diferenças significativas nesses processos de sucessão, que estão muito longe de constituírem ciclos homogêneos e recorrentes.
A própria moeda internacional esteve, no início, muito longe de cumprir as funções que agora cumpre o dólar (durante e depois de Bretton Woods). A libra esterlina, a primeira que, de fato, libertou-se da forma metálica, ainda esteve presa ao lastro-ouro por toda sua existência de moeda internacional (iní¬cio do século XIX até a década de 1920-30). E o dólar americano, por sua vez, foi o primeiro a não ser, desde o início, livremente conversível em ouro por agentes privados. Pelo acordo de Bretton Woods, só Estados soberanos podiam exercer a opção de converter suas reservas de dólar em ouro junto ao governo americano. O dólar foi, por sua vez, a primeira moeda internacional a assumir todas as funções de uma moeda nacional junto a agentes privados, sem ser conversível em ouro.
Funções da moeda internacional e suas garantias
As funções de uma moeda internacional são as mesmas de uma moeda estatal em sua jurisdição nacional. A primeira missão é proporcionar liquidez suficiente aos mercados interestatais, à movimentação de capitais e aos balanços de pagamento de todos os países que a utilizam, de modo a tornar possível o resgate de seus compromissos. Isso significa, na conceituação marxista aqui utilizada, que a moeda internacional deve exercer, primeiro, a condição de meio de troca e de medida de valor e – em decorrência dessas qualidades exercer também a função de reserva de valor para proteger o valor dos capitais de todo o sistema quando operam denominados nessa moeda principal.
Para tanto, é necessário que a potência hegemônica disponibilize sua moeda no sistema internacional e dê garantias de seu valor. Vejamos, esquematicamente, duas formas modernas de como uma potência pode resolver o problema da liquidez.
No primeiro processo, há transferência para o estrangeiro do dinheiro estatal do hegemônico por meio de transferências líquidas de capital (investi¬mento direto e crédito). Esse volume de dinheiro deve ser, pelo menos, igual aos seus superávits correntes (bens e serviços comerciais e rendimentos de capital auferidos no exterior – lucros, juros e royalties) com o resto do mundo (i.e., do sistema hegemonizado). Desse modo, poderá circular no sistema um saldo significativo da moeda internacional da potência hegemônica de modo permanente e crescente, for necendo a liquidez ao resto do mundo, expandindo propriedades do capital nacional do hegemônico no exterior, mas garantindo, em contrapartida, no final, a volta do dinheiro à origem.
No segundo processo, a potência hegemônica pode manter déficits comerciais constantes que se somarão aos investimentos diretos e aos créditos. Nesse caso, esse fluxo para o exterior terá que ser compensado pelo superávit de suas rendas de capitais, de modo que haja circulação e também retorno. Esse segundo caminho – menos desejável do ponto de vista do hegemônico, pelos custos que acarreta à economia interna – tende a vigorar apenas a partir do momento em que os capitais da potência hegemônica não detenham mais a primazia mercantil, por perda relativa de produtividade e queda na taxa de lucro frente ao sistema.
As garantias sobre o valor da moeda internacional são condições fundamentais de seu funciona¬mento. As garantias se dão pela existência de um sistema financeiro poderoso na potência hegemônica, encarregado dos processos de liquidez de última instância dos credores e também pelo indispensável compromisso estatal de assegurar o valor da moeda e sua estabilidade.
A construção de sistema financeiro suficientemente experiente para gerir as transações internacionais é um processo lento, geracional. A Grã-Bretanha já tinha ultrapassado a Holanda economicamente e militarmente desde a primeira metade do século XVIII, mas só na segunda metade desse século, a libra esterlina se impôs como moeda internacional juntamente com a City londrina como centro finan¬ceiro do mundo. O mesmo sucedeu ao dólar. Até 1945, apesar de a libra não ser mais conversível em ouro desde 1931, e a Grã-Bretanha não ser mais a principal potência econômica desde a I Guerra, ela ainda era a principal divisa das reservas internacionais em todo o mundo.
A garantia estatal sempre se deu pelo método da conversão da moeda estatal em ouro, segundo uma determinada taxa. A garantia da conversibilidade da libra foi reforçada em meados do século XIX, quando um grande surto de financeirização também se iniciava, pela virtual estatização do Banco da Inglaterra, quando este assumiu a posição de prestamista de última instância da City londrina. A garantia de conversão permitia que qualquer portador privado trocasse a libra por ouro. Essa conversibilidade, com alguns poucos intervalos, só foi abandonada em 1931, marcando simbolicamente o fim do período da libra como moeda internacional.
No sistema dólar-ouro do Acordo de Bretton Woods havia mais restrição à conversão em ouro. Como o Acordo previu inicialmente um ambiente de restrição à livre movimentação de capitais, apenas os Estados soberanos poderiam habilitar-se à conversão de suas próprias reservas em dólar. Essas garantias estatais foram depois modificadas – de forma sui generis – com a adoção do dólar flutuante (ou dólar-flexível) após o rompimento do Acordo de Bretton Woods em 1971-73. Examinaremos a natureza des¬sas mudanças na seção 4.
O papel do Estado hegemônico na criação da moeda internacional
O papel do Estado hegemônico na criação da mo¬eda internacional está longe de se restringir a gerar instituições e fornecer garantia de seu valor. Exemplos históricos mostram que o processo de criação da moeda internacional não se deu apenas pelas forças econômicas, tal como está descrito esquematicamente acima. No caso britânico, por exemplo, a libra foi introduzida nos circuitos comerciais do Oriente a ferro e fogo, primeiro pelo controle militar das rotas comerciais locais e internacionais (tomadas aos holandeses no século XVIII) e depois pela ocupação territorial, especialmente da Índia.
No caso da hegemonia americana, o Estado também participou decisivamente da constituição do dólar em moeda internacional. Mesmo o dinâmico capitalismo americano não foi capaz de, no pós-guerra, fazer investimentos diretos e conceder créditos em dólares em volume suficiente sequer para que os países da Europa Ocidental dispusessem de liquidez suficiente para pagar suas importações dos EUA.
Apenas quando o Estado americano instituiu o Plano Marshall, concedendo créditos maciços para a Europa Ocidental, e realizando vultosas despesas bélicas no exterior pela estratégia da Guerra Fria de contenção da União Soviética, o processo veio a se consolidar. Só a partir de 1950, impulsionado pelos créditos do Plano Marshall e também pela Guerra da Coréia, o dólar, de fato, passou a funcionar como moeda internacional. Os percalços do pós-guerra fizeram com que os países da Europa Ocidental sofressem seguidas crises de liquidez, e atrasassem a livre conversão de suas moedas nacionais até o final da década seguinte. A partir daí, o investimento direto tomou vulto na Eu¬ropa Ocidental e em menor proporção na América Latina, mas as despesas militares americanas continuarem a crescer, com a guerra do Vietnã beneficiando, em especial, o crescimento japonês e depois o coreano, o de Hong Kong e de Cingapura.
Mas, com a chegada da década de 1960, a virtuosa atuação conjunta do Estado e do capital americano começou a gerar problemas: tornou o estoque de dólar no exterior cada vez maior, não permitindo que o circuito de retorno se desse adequadamente. Fenômeno que deu início ao conhecido processo de desgaste do dólar na segunda metade da década de 1960, resultando na quebra unilateral do Acordo de Bretton Woods sobre a conversão da moeda em ouro na proporção de 35 dólares a onça-troy, em 19711 .
Segundo Robert Triffin (1972), em afamada análise de 1962, isso teria de ocorrer, dado que o volume de dólar e de ativos nele denominado no exterior passou a crescer aceleradamente, determinando um crescente estoque externo sem mais possibilidade de regresso. Esse estoque externo só poderia ser equilibrado se houvesse uma proporcional expansão da oferta de ouro (ao qual o dólar estava vinculado até então). Como isso não aconteceu, a moeda americana teria de se submeter a uma pressão contínua de desvalorização externa e de inflação interna 2.
A crítica de Serrano a Triffin (apoiado em Minsky, 1986) é de que não seria necessária a expansão da oferta de ouro para assegurar a estabilidade do valor do dólar. Bastaria que os EUA tivessem uma entrada líquida em ativos de curto prazo em suas praças financeiras, vindos do resto do mundo – como vimos no segundo processo de fornecimento de liquidez internacional (na subseção anterior) – para que o dólar se mantivesse estável.
Alternativamente, dentro da conceituação utilizada, podemos interpretar essa primeira crise do dólar como o advento de um longo processo de perda de dinamismo dos capitais internos do centro capitalista (EUA e da Europa Ocidental). De fato, a taxa média de lucro do setor manufatureiro dos EUA caiu persistentemente desde meados da década de 1960, no que foi seguida por outros países do centro capitalista (especialmente a Alemanha Ocidental), excetuando-se a do Japão (cf. Brenner, 2003, p. 55-65).
À época, a formação da taxa média de lucro internacional era retardada, na maior parte do mundo e dos setores, por obstáculos à movimentação do capi¬tal entre as fronteiras nacionais e pelas barreiras tarifárias a setores protegidos (especialmente a agricultura e às indústrias de baixa e média tecnologia). Nesse contexto, o dólar enquanto moeda – principal forma de existência do capital americano – tendia a perder valor em relação às demais moedas relevantes; não em decorrência de algum problema “quantitativo”, mas sim por sua desvalorização refletir a perda de valor do próprio capital interno dos EUA. Isto é, o dólar se desvalorizava proporcionalmente à desvalorização do conjunto de capitais internos dos EUA à época.
A posição do governo americano de protelar a conversão em ouro das reservas francesas de dólar mos¬trava debilitação do Estado americano, levando à perda de credibilidade da garantia do dólar-ouro. Nesse episódio vemos a política estatal agravando o proble¬ma subjacente às leis de acumulação do capital.
4. O novo pacto do dólar-flexível: mudança nas funções da moeda e as garantias implícitas
O novo sistema monetário, desregulamentado, nascido do rompimento dos Acordos de Bretton Woods em 1971-73 caracteriza-se por ter a sua principal moeda, o dólar americano, em regime de flutuação frente às demais moedas e também em relação ao ouro (denominado daqui por diante dólar-flexível).
Segundo Serrano, o dólar-flexível fez com que os EUA se livrassem de duas restrições externas até então existentes: o dólar poderia ser desvalorizado em relação ao ouro e os EUA poderiam ter sucessivos déficits em transações correntes. Isso porque, sem lastro-ouro, os próprios passivos assumidos pelos déficits estarão medidos não em uma medida absoluta, mas sim em dólares. Caso o dólar for se desvalorizando, o passivo – também denominado em dólares – também se reduzirá (pelo menos proporcionalmente). A única condição seria – como já vimos – que se mantivesse o financiamento desse déficit externo por ativos de curto prazo também denominados em dólar.
Além disso, como o dólar flutuante, Serrano tam¬bém afirma que a moeda internacional perdeu sua função clássica de reserva de valor. O dólar passou a ser uma moeda de referência contratual, enquanto a função de reserva de valor foi transferida para os títulos de Tesouro americano.
No nosso entender, as coisas não se passaram as¬sim, especialmente se contex¬ualizarmos histórica e institucionalmente as mudanças no sistema financeiro internacio¬nal. De fato, a restrição ao déficit em transações correntes su¬cessivas pode ter formalmente sido removida. Mas a liberdade do déficit só se tornaria eficaz a partir do momento em que houvesse livre movimentação de capitais entre as principais praças financeiras, de modo a permitir o afluxo de dólares retornando aos EUA em ativos de curto prazo. Então, a libera¬lização financeira era parte da suspensão da restrição e não apenas a flutuação do dólar.
Já a partir de 1974, as leis e regulamentações americanas começaram a liberar seus flu¬xos de entrada e saída de capitais (Cruz, 2007, p. 384-388; Brenner, 2003, p. 55 e seg.), tendo o seu sistema financeiro saído na frente dos demais na criação de novos mecanismos e tipos de ativos financeiros (conta bancária remunerada, contratos de hedge etc.)3.
Porém, apenas as mudanças institucionais não bastavam, era preciso que o mercado financeiro ofe¬recesse taxas de juros atrativas aos estoques de dólares no exterior (sendo o principal deles o eurodólar, com base na City londrina), mas com a inflação e a taxa média de lucro em queda, essa oferta não poderia existir. As taxas reais do Fed para os títulos americanos ficaram negativas e a remuneração de ativos privados próxima a zero. O investimento, respondendo à expectativa de uma taxa média de lucro cadente, continuou caindo e a economia entrou em recessão prolongada (a “estagflação”). O dólar entrou em queda livre.
A ação do capital, juntamente com a intervenção apenas institucional do Estado americano, não foi suficiente para resolver o problema da moeda inter¬nacional. Foi quando o Estado entrou com a força de seu poder tributário. O choque de juros do Fed, em outubro de 1979, teve esse significado. O Fed, elevou à estratosfera a taxa básica do título do Te¬souro, criando o atrativo que faltava para viabilizar o financiamento das contas externas e estabilizar o valor do dólar.
Daí para frente, tudo mudou. O dólar se restabeleceu como moeda internacional incontestável e os EUA recuperaram sua hegemonia combalida. Em compensação, a dívida pública, inchada pelas emissões maciças e pelas altas taxas de juros reais, para atrair dólares, foi multiplicada (ver Gráfico), com o Estado e o povo americano assumindo um enorme passivo sobre seus tributos futuros. Foi o custo pa¬ra manter a hegemonia e o privilégio de emissão da moeda internacional.
Na verdade, o choque de juros do Fed foi um instrumento para elevar – como um deus ex machina – a taxa média de lucro em declínio, estabelecendo, primeiro para os capitais internos e, em seguida, para os demais capitais do centro capitalista um piso para os lucros. A conseqüência desse piso foi a eliminação de parte considerável do excedente de capital existente à época, preparando a retomada futura do ciclo de valorização4.
Sem a garantia do fluxo de recursos da tributação (que não é renda capitalista, mas sim derivada da relação de sujeição entre Estado/cidadão) não seria possível a nenhum capitalista americano, individual ou conjuntamente, oferecer taxas atrativas que viabilizaram a reafirmação do dólar como moeda internacional (nem o mecanismo de eliminação do capital excedente). Esse argumento reforça nosso ponto de vista de que não há moeda internacional sem a conjunção de forças do capital e do Estado.
Outro fenômeno importante a destacar é a mudança na natureza da moeda internacional. Vimos que o ônus da função monetária de reserva de valor foi transferido do dólar para o Tesouro americano. Parte dessa função foi mediada pelas instituições financeiras por meio de contratos de hedge, surgidos exatamente em 1972 (cf. Cruz, 2007, páginas citadas), início da flutuação do dólar5. Isto significa que o erário americano passou a arcar de forma direta (inclusive via hedge) com os custos de assegurar o valor dos capitais, passando de garante a financiador da função reserva de valor. Desse modo, as relações capital/Estado se estreitaram. Por outro lado, o dólar também perdeu parte de sua função de medida de valor (função sempre associada à de reserva), o que o permitiu apenas continuar funcionando como moeda de referência contratual.
Por conseqüência, o dólar, enquanto moeda, de fato se enfraqueceu. Não exerce funções que até então exercia como dólar-ouro. Historicamente, pode-se afirmar que o dólar-flexível é uma figura inédita de dinheiro internacional. Porém, a força que transparece do dólar a partir dessa mudança não decorre de sua nova forma de “moeda financeira”, mas sim da emanação direta do poder do Estado americano, representado pelo FED e pelo Tesouro.
O dólar-flutuante não ficou mais forte como mo¬eda, enfraqueceu-se. Mas o poder estatal americano suplementou, com seus treasuries, a força perdida.
Também não nos parece verdadeiro que os EUA não tenham oferecido mais nenhuma garantia ao valor de seu dólar-flexível. Houve uma garantia im¬plícita ao novo arranjo quando do choque de juros do Fed , em 1979. Essa garantia era o fundamento teórico do próprio choque: o combate à inflação deveria a prioridade da autoridade monetária e não haveria mais taxas básicas reais negativas na economia americana. A garantia, sempre re-inteirada pelo Fed e pelo governo, foi quase sempre cumprida desde então, excetuando, naturalmente, as circunstâncias temporárias e extraordinárias de risco de superprodução aguda de capitais (risco sistêmico).
Essa é uma garantia importante não só porque juros positivos podem assegurar a atração de inves¬timentos de curto prazo necessários, desde então, há uma mínima estabilidade do dólar. A maior im¬portância da garantia de juros reais positivos é que estes reduzem o impacto fiscal no custo de manutenção de reservas em dólar de países superavitá¬rios do sistema capitalista. Havendo taxas de juros reais muito baixas ou negativas nos EUA, isso sig¬nifica que esse Estado deixa de assumir custo fis¬cal pela emissão da moeda internacional, e que age com leniência frente à ameaça de eclosão de crise de superprodução de capitais. Esses dois últimos problemas vêm caracterizando a crise atual, decorrente da excessiva liquidez e da quebra financeira dos “subprimes”.
5. Entre a busca de uma moeda internacional alternativa e a afirmação de um dólar auto-sustentável
Agora teremos condições de expressar uma opinião mais objetiva sobre as questões centrais das duas teses iniciais: primeiro: já se iniciou um processo de derrocada do dólar, de modo a se poder vislumbrar um substituto à sua condição, mesmo que isso signifique que os EUA venham, no futuro, a dividir sua atual hegemonia com outra potência existente ou emergente? Segundo: em caso de negação, é sus¬tentável o regime do dólar-flexível como principal moeda internacional, de modo a se assegurar – ceteris paribus – a não existência de nenhuma ameaça, mesmo a longo prazo, à sua posição?
O dólar vem se enfraquecendo e pode se vislumbrar sua substituição?
A primeira questão pode ser dividida em duas. Comecemos pela parte da questão que trata do en¬fraquecimento do dólar, no sentido de que o processo de sua substituição já teve início. Conforme nossa argumentação, a resposta para esta parte do problema deve ser positiva.
Como argumentamos, a recuperação do dólar após a crise que derrocou os Acordos de Bretton Woods teve como elemento-diretor uma política do Estado americano para viabilizar institucionalmente uma liberalização dos fluxos de capitais – o fenômeno da globalização financeira. A estratégia melhorou o funcionamento da acumulação capitalista no sistema, eliminando as distorções na formação das taxas médias de lucro, permitindo alcançar uma nova estabilidade para o dólar pelo financiamento do déficit de transações correntes por meio do retorno dos dólares em circulação no sistema internacional.
Entretanto, o prejuízo às funções de medida e de reserva de valor fez com que a força do Estado hegemônico – sua capacidade política (e militar) de cooptar e coagir – ficasse cada vez mais visível por trás do dólar. A ação do Fed, do Tesouro americano e o papel de sua dívida pública “politizou” o fenômeno monetário e financeiro.
A “politização” da economia tem duas faces. Por um lado, ela dá mais coesão, entre a ação do Estado e as necessidades do capital, reduzindo a autonomia relativa do Estado e criando-lhe restrições a sua capacidade de agir em defesa de sua própria legitimidade perante seu povo e os demais Estados do sistema6. Os agentes políticos americanos são “capturados” pela percepção de que a estabilidade do próprio Estado e de sua hegemonia apresenta-se cada vez mais com¬prometida por um processo de acumulação endogenamente enfraquecido pela superprodução ou a ameaça dela, e, também, pelo crescente desafio de antigas e novas potências emergentes no sistema. A segunda face da “politização” da economia é que as questões econômicas passaram a ser cada vez mais motivos de dissensões e contenciosos que vão confrontando cada vez mais os interesses nacionais e hegemônicos americanos vis-à-vis os dos demais Estados.
Em resumo, consideramos que o dólar está se enfraquecendo e admitimos que um processo de sua substituição já esteja a caminho. Esse processo pode ter se iniciado, pelo menos, desde que as reformas no sistema monetário e financeiro implementadas até o final dos anos 1990, para sustentá-lo, mostraram-se frágeis ou mesmo inúteis (ver Kregel, 2006). Porém, isso não significa, necessariamente, que este ja correta a segunda parte da questão: que substituição do dólar-flexível por outra moeda que já esteja no horizonte.
Como vimos, o regime do dólar-flexível é susten¬tado por três pilares: a dimensão do sistema finan¬ceiro americano, os títulos do Tesouro (treasuries), e a garantia de que estes serão sempre remunerados por taxas reais de juros positivas. Apesar do enfra¬quecimento do dólar e da desconfiança crescente, esses pilares ainda se mantêm.
A tabela 1 mostra o grande descompasso entre o mercado financeiro americano e os demais, quanto ao seu tamanho e liquidez. Embora os dados estejam defasados (são de 2000) e aí não estejam as praças financeiras do Leste asiático (Tóquio, Cingapura, Hong Kong e, agora, Xangai), a tabela guarda, no essencial, a enorme desproporção entre o poderio norte-americano e o dos demais mercados financeiros nacionais.
A tabela 2 demonstra também a dimensão do volume das garantias estatais americanas – seus treasuries – em relação aos demais principais Estados.
Como argumentamos, uma nova moeda internacional não poderá prescindir das duas forças conjugadas (capital e Estado), concretizadas em um sistema financeiro poderoso e em garantias estatais sobre o seu valor. A desproporção quanto a esses dois parâmetros fundamentais, quantificados de modo simplificado nas tabelas, mostra que nada existe de parecido aos EUA no mundo atual. A experiência histórica mostra também que constituir um sistema financeiro com capacidade de gerir a riqueza mundial é uma tarefa conjunta do capital e de um Estado nacional que pode levar uma geração ou mais, mesmo quando se parte de um patamar privilegiado.
Ainda é preciso considerar que uma nova moeda envolve um esforço de dotações tributárias e uma abertura para importações. Os custos econômicos e sociais daí decorrentes só podem ser suportados por uma nova potência emissora que tenha um grande desempenho na gestão estatal de conflitos internos e uma superioridade produtiva destacada (taxa média de lucro, taxa de exploração e monopólios tecnológicos). A combinação integral dessas duas condições parece também estar ausente em qualquer das supostas potências pretendentes à emissão da nova moeda internacional.
Desse modo, podemos afirmar que, embora o dólar tenha enfraquecido perante as situações anteriores – de Bretton Woods e também do dólar-flexível até as reformas do sistema financeiro dos anos noventa –, a possibilidade de sua substituição por outra moeda internacional ainda não está no horizonte. E pode levar uma geração inteira para que tal possibilidade venha se tornar plausível.
Deixaremos para tratar na conclusão de uma última possibilidade – talvez mais realista que a anterior –: uma derrocada do dólar se daria antes de outra moeda ocupar todas ou algumas de suas funções.
O dólar-flexível é sustentável?
Tratemos agora da questão fundamental da segunda tese: o regime do dólar-flexível é sustentável, sendo possível assegurar – se nada mais mudar – a não existência de nenhuma ameaça mesmo a longo prazo à sua posição.
Pelo que argumentamos até o momento esta tese também não pode ser aceita. Recapitulemos os seus quatro fundamentos:
(a) É possível aos EUA financiarem sucessivos déficits de transações correntes com a atração de investimentos em ativos financeiros de curto prazo, se o poder americano for autocontido e controlar o acúmulo de passivos de modo a manter a proporção adequada entre passivos/ativos exter¬nos (expressos em dólar).
(b) Não há mais garantia por parte do EUA sobre a emissão de sua moeda, seu valor e estabilidade.
(c) O dólar-flexível sofreu uma mudança em sua natureza, perdendo sua função de reserva de valor; transformou-se em um novo tipo de moeda, a “moeda financeira”.
(d) O dólar-flexível continua a ser uma moeda forte.
Os dois fundamentos finais estão interligados e já foram refutados anteriormente, não vale a pena repetir. O que há de inédito no dólar-flexível é a transferência direta de sua função de reserva de valor para títulos do Tesouro. Confunde-se claramente neste argumento fraqueza econômica do dólar com força do Estado americano.
Embora seja possível concordar com a consistência da parte principal do argumento (a), a condicionalidade de sua eficácia à autocontenção (self restraint) de um poder político (ou econômico) o torna insustentável. Não há poder autocontido. Os governantes e capitalistas descobriram isso há séculos: sem intervenção estatal os bancos sempre se expandirão acima do risco prudente, os capitais se multiplicarão até a superprodução e a crise, e os ditadores se tornarão irrefreáveis.
A tentação de expandir capitais denominados em dólares tende a ser incontrolável nos termos do regime do dólar-flexível e das finanças não regulamentadas ou regulamentadas segundo “critérios” de mercado. Mesmo a tendência recente do poder americano, seja econômico ou político, de unilateralidade e extraterritorialidade, mostra quão verdadeiro e recorrente é este fundamento social.
A refutação desse pressuposto ao primeiro fundamento da tese inviabiliza o mecanismo de “equilíbrio” permanente do balanço de pagamento por meio do ingresso de ativos de curto prazo. E a própria tese da sustentabilidade do regime do dólar-flexível se torna insubsistente.
Por fim, a afirmação de que não há mais compromisso dos EUA em sustentar o valor e a estabilidade de sua moeda sob este novo regime, pode ser correta quanto ao compromisso formal ou institucional, mas não quanto a sua essência. Como argumentamos, existiu da parte do Estado americano, desde o choque de juros, uma garantia implícita quanto à manutenção da função de reserva de valor – por meio do compromisso com a manutenção de taxas de juros positivas dos treasuries – e também com a estabilidade, esta, de forma indireta, pelo atendimento de lastro aos contratos de hedge, com intermediação privada. Aliás, o reconhecimento do papel dos treasuries como reserva de valor por parte de M. C. Tavares e Melin (1997), implica, necessariamente, a existência de algum tipo de garantia pelo seu emissor.
Em resumo, podemos agora afirmar que o regime do dólar-flexível não é auto-sustentável, episódios de desconfiança na sustentabilidade do financiamento do balanço de pagamentos dos EUA tendem a acontecer de forma recorrente, levando a crises monetárias e a ajustes mais ou menos violentos sobre a superprodução de capitais nos EUA.
Uma forma mais abrangente de entender a dinâmica entre Estado, capital e a moeda internacional
Porém – e isso é fundamental em nossa argumentação –, os defensores da tese do balanço de pagamentos auto-sustentável continuam a ter razão quando apontam que crises de desconfiança monetária não advêm diretamente da avaliação da “fragilidade” das contas externas. Em nossa opinião, essas crises advêm diretamente de episódios críticos no próprio sistema financeiro americano.
Embora a tese de sustentabilidade do balanço de pagamentos da potência hegemônica com uma mo¬eda internacional em regime de flutuação tenha coerência, seu corolário de que isso significa, também, garantia da sustentabilidade para a própria moeda flutuante não é verdadeiro. Qualquer crise monetá¬ria do dólar-flexível só poderá decorrer – mantida as condições de hegemonia – a partir de crises finan¬ceiras internas, como houve com a crise da Bolsa de Nova Iorque, de 1987, da “nova economia”, em 2000, e agora sucede com a das hipotecas “subprimes”7.
Em outras palavras, a moeda internacional só é posta em xeque – ou os agentes externos apenas percebem uma ameaça a ela, o que vem a ser a mesma coisa – quando o próprio valor do capital do país hegemônico, representado pelo valor de seus ativos financeiros, entra ou ameaça entrar em significativo declínio.
No caso de sobrevir a crise monetária, é papel do Estado hegemônico deter as perdas de seu capital fi¬nanceiro. Se a ação estatal não ocorrer (por decisão ou falta de condição política de decidir) ou vier a su¬ceder, porém sem êxito, a crise sistêmica iniciada no sistema financeiro pode gerar grave dano à moeda internacional ou mesmo vir a destruir o dólar como moeda internacional ou, pelo menos, como a princi¬pal delas. O que significará que a hegemonia de tal potência terá também chegado ao fim (embora ela possa permanecer com seu poderio político e militar inicialmente intacto – como sucedeu à Holanda e à Grã-Bretanha – porém sem mais a condição de pri¬ma interpares).
Em síntese, não é possível a uma moeda interna¬cional perder seu posto antes da derrocada ou subs¬tituição da hegemonia da potência que a emite. O que se aplica ao dólar-flexível.
6. O que esperar do futuro?
A afirmação de que o dólar-flexível não poderá perder seu atual posto de moeda internacional, an¬tes que a hegemonia do próprio EUA esteja derroca¬da pode levantar dúvidas e contraditas. Porém, ela
Notas
1 A onça-troy equivale a 31,104 g.
2 Isso é conhecido como “Dilema de Triffin”, pois haveria um conflito entre provisão de liquidez ao sistema monetário internacional e a necessidade de preservar a paridade cambial da moeda internacional com o lastro ouro do sistema.
3 Para uma análise abrangente desse processo institucional e mudanças na gestão da riqueza, especialmente, a partir da sua consolidação nos anos 1980, ver Cintra e Freitas, 1998.
4 O que de fato aconteceu a partir de 1987, com a taxa média de lucro americana tornando a se elevar consis¬tentemente até o final da década seguinte, quando sobreveio novo período de queda e eclodiu a crise da “nova economia” (cf. Brenner, 2003, Figura 8.9, p. 282).
5 Contratos de hedge são contratos de cobertura contra perdas por flutuações futuras de taxas de câmbio e cotações, que tem por lastro títulos públicos. Funciona como uma apólice de seguro, em troca a de um prêmio. A probabilidade de todos os ativos/passivos “cobertos” gerarem perdas é considerada sempre menor a unidade, o que faz com que uma unidade monetária em título público possa assegurar perdas bem maiores. Embora a experiência mostre que nem sempre a “cobertura” é segura, o seu financiamento se dá via dívida pública.
6 Essa restrição à autonomia estatal é bem ilustrada pela anedota, envolvendo um comentário de um assessor ao Presidente Clinton sobre a necessidade de se adotar, no início de seu primeiro governo, políticas conve¬nientes ao “mercado”: “It’s the economics , stupid!”.
7 Denominando de crise monetária toda e qualquer redução significativa do fluxo de investimentos em ativos financeiros nos EUA, que e traduz por uma pressão imediata de desvalorização do dólar frente às demais moeda conversíveis. decorre estritamente da rejeição da questão fundamental das duas teses analisadas e, principalmente, da rejeição também do economicismo de que ambas padecem: a moeda é uma relação social e, como tal, construção comum do capital e do Estado.
Traçamos apenas um quadro conceitual para situar melhor o observador do cenário internacional. Primeiro, negando a pos¬sibilidade elevada de haver uma moeda substitutiva ao dólar, exceto em um prazo que exceda a uma geração; e, segundo, ao contrário, rechaçando idéias pouco realistas e sem exemplo histórico de que é possível desconsiderar o advento de uma crise hegemônica dos EUA em um horizonte temporal relevante para o presente.
Por fim, gostaria de enfatizar que tanto nossa análise como as duas teses examinadas excluem de seus cenários as contingências históricas, como é de praxe. Porém, elas existem e cumprem um papel relevante na história. Defendo que a sociedade é um sistema aperiódico cujo desenvolvimento é muito sensível a pequenas diferenças iniciais, que podem gerar resultados desproporcionalmente importantes. Essa compreensão explica por que a história nunca se repete, apesar de revelar regularidades que denotam a existência de ciclos, e também por que somos incapazes de, no campo social, realizar previsões seguras.
Um cenário alternativo, já citado, pode decorrer dessa natureza aperiódica da história: aquele em que a moeda internacional e a hegemonia dos EUA venham a sofrer uma derrocada antes de haver outra potência em condição de substituí-la. Esse caso gera¬ria uma situação catastrófica no sistema mundial. Se uma transição entre duas hegemonias já contém uma parcela de catástrofe não desprezível (vide o exemplo do período das duas Grandes Guerras), um vazio hegemônico no sistema gerará possibilidades assustadoras de caos, mas, também, esperançosas de abrir brechas para superação histórica do capitalismo.
Isso talvez não seja provável, mas tampouco improvável. Por enquanto, o socialismo ou outra variante insuspeitada de superação do capitalismo continuará sendo sempre uma possibilidade entre as fraturas cíclicas da História.
Lecio Morais é economista, mestre em Ciência Política e especialista em orçamentos e planos políticos públicos. É assessor técnico da Liderança do PCdoB na Câmara dos Deputados
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EDIÇÃO 95, ABR/MAI, 2008, PÁGINAS 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31