No Brasil são conhecidos cerca de 229 povos indígenas, que se comunicam por cerca de 180 línguas maternas. Segundo estimativas, em torno de 50 povos se mantêm isolados ou arredios à manutenção de contatos permanentes e freqüentes com membros da sociedade brasileira. Os povos indígenas ocupam 849 terras, que representam cerca de 12% do território nacional.

Sua população totaliza, de acordo com estatísticas do Censo Demográfico realizado em 2000 pelo IBGE, aproximadamente 734 mil índios, constituindo-se em quase 0,4% da população nacional (1). Desses, 350 mil estão em áreas rurais (provavelmente em terras indígenas) e 384 mil em áreas urbanas.

Este Censo Demográfico indica ainda que a população indígena encontra-se distribuída da seguinte forma nas regiões brasileiras:

Considerando informações disponibilizadas pela Funai, por organizações indígenas e por notícias obtidas diretamente de comunidades e lideranças indígenas, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) (2) registra os seguintes dados relativos à situação das terras indígenas por região:
Pelos dados revelados nestas duas tabelas percebe-se que um percentual expressivo dos espaços territoriais em que uma parcela significativa da população indígena se localiza situa-se na região amazônica, onde está a maioria das terras indígenas do país.

Esta circunstância expressa uma realidade histórica dramática no sentido de que nas unidades da federação que compõem a região centro-norte do país busca-se assegurar as condições físicas e ambientais não garantidas aos povos indígenas ocupantes das unidades da federação localizadas nas regiões sul, sudeste e nordeste.

O percentual das terras indígenas nessas regiões evidencia o resultado do confronto histórico entre os povos indígenas e os colonizadores e, mais recentemente, com as frentes de expansão dos interesses capitalistas sobre o território nacional.

Já nos estados do Nordeste, Sudeste e Sul, em média as terras indígenas não representam 1% dos territórios das unidades da federação. No centro-norte, que consiste na região amazônica (com exceção de Maranhão e Amapá), a média da proporção das terras indígenas em relação às unidades da federação é superior a 10%: RR – 42%; AM – 20%; PA – 17%; RO – 16%; MT – 14%; AC – 11%.

Devido ao interesse econômico na apropriação das riquezas naturais conformam-se expressivos conflitos de interesse sobre as terras indígenas. Interesses de fazendeiros, pecuaristas, madeireiros, garimpeiros, empresas de mineração e posseiros formam o arco central de antagonismo econômico e político sobre essas terras.

Em razão de tais interesses a história do país registra uma quantidade expressiva de conflitos pela posse da terra, que em muitos casos degeneraram – como infelizmente ainda ocorre – em conflitos armados, com vítimas fatais.

A capacidade do Estado brasileiro de administrar essas tensões e mediar os conflitos existentes na perspectiva de proporcionar condições dignas e seguras para a existência dos povos indígenas – ao passo em que consiga viabilizar condições adequadas para o aproveitamento dos recursos naturais em benefício do desenvolvimento do povo brasileiro – consiste num dos mais graves e urgentes desafios para o poder público no Brasil. A Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, fixa importantes bases institucionais de relacionamento do Estado com os povos indígenas e indica perspectivas para o equacionamento destas questões.

Ao reconhecer, no art. 231 da Constituição, aos índios sua “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” os constituintes originários projetaram os aspectos centrais da conformação desses grupos sociais, étnica e culturalmente distintos entre si e da sociedade brasileira – aos quais o direito internacional, expresso na Convenção n. 169 (6) da Organização Internacional do Trabalho (OIT), define como “povos indígenas” (7).

Com a fixação da atribuição constitucional à União para “proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, e tendo presente competir à União legislar sobre “populações indígenas” (8), foi eliminada a anterior perspectiva institucional de incorporação dos índios à chamada “comunhão nacional”.

Em razão desta determinação de respeito aos bens indígenas, os constituintes brasileiros inauguraram um novo caminho, por intermédio do qual o Estado e todos os cidadãos e as pessoas jurídicas no Brasil devem se conduzir, no sentido de respeitar e proteger os índios. O que nos permite afirmar que do disposto no caput do art. 231 da CF emerge como referência no relacionamento institucional com os povos indígenas o princípio do “respeito à diversidade étnica e cultural”.
Mantendo a mesma orientação normativa do texto constitucional anterior (1967-69) a Constituição em vigor assegura aos índios a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nas terras tradicionalmente por eles ocupadas.

Em conseqüência disso, considera nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, “os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras” tradicionalmente ocupadas pelos índios, “ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. Neste dispositivo (§ 6º do art. 231 da CF), em razão das pressões e negociações ocorridas entre as lideranças parlamentares na Constituinte (9), foi consignada a ressalva àquela nulidade, dos atos de relevante interesse da União, previstos em Lei Complementar.

Também como reflexo das disputas políticas no processo constituinte foi prevista a possibilidade nos § 1º do art. 176 e § 3º do art. 231, ambos da CF, do aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas, que só poderão ser efetivados:

1) de acordo com condições específicas previstas em lei;
2) com autorização do Congresso Nacional;
3) após as comunidades indígenas afetadas serem ouvidas; e
4) assegurada a participação das comunidades indígenas afetadas nos resultados da lavra, na forma da lei.

Além disso, em razão das mudanças constitucionais, tramitam no Congresso Nacional desde 1991 e 1992 proposições legislativas que visam a dispor sobre uma nova legislação indigenista, superando com isso o disposto na Lei n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973 – Estatuto do Índio. Em junho de 1994, a Comissão Especial constituída na Câmara dos Deputados para analisar e decidir sobre essas proposições legislativas aprovou seu relatório e um Substitutivo. Ocorre que, em razão de recurso interposto por parlamentares para que a matéria fosse apreciada pelo Plenário da Câmara dos Deputados, a questão encontra-se, desde 6 de dezembro de 1994, na Mesa da Câmara dos Deputados, aguardando a apreciação do recurso pelo Plenário da Câmara para saber se o Substitutivo da Comissão Especial será apreciado pelo Plenário ou remetido para a deliberação do Senado Federal.

Nesse Substitutivo sobre uma nova legislação indigenista estão contemplados todos os principais temas de interesse dos povos indígenas e que o texto constitucional remete à regulamentação, tais como: princípios; definições; registros; bens do patrimônio indígena: conhecimento tradicional, propriedade intelectual, direitos autorais e patenteamento; usufruto exclusivo das riquezas naturais; relação com particulares (regula o fim da tutela, atos e negócios entre índios e não-índios); responsabilidades do poder público: poder de polícia, infrações administrativas, proteção policial, competência jurisdicional em matérias cíveis e criminais; terras indígenas: demarcação e garantias; exploração mineral: pesquisa e lavra; aproveitamento de recursos hídricos; utilização dos potenciais de energia hidráulica; assistência especial: atenção à saúde; educação escolar; atividades produtivas; normas penais; crimes; disposições finais e transitórias.

Transcorridos 12 anos e seis meses, os povos e as organizações indígenas não aceitam que nenhuma matéria seja regulada de forma isolada do Estatuto dos Povos Indígenas. Como também não admitem qualquer alteração nas normas constitucionais que tratam sobre os índios. Tais posições foram externadas por centenas de lideranças indígenas no último dia 19 de abril aos Presidentes: da República, do Supremo Tribunal Federal, do Senado e da Câmara dos Deputados, no encerramento do 4° Acampamento Terra Livre – iniciativa do Fórum de entidades em defesa dos direitos indígenas (FDDI). Com isso, responderam à pretensão de setores políticos, empresariais e do governo, no sentido de aprovar uma lei que disponha sobre a exploração mineral em terras indígenas.

Essa atitude do movimento indígena explica também por que sua posição contra a construção de usinas hidrelétricas cujos reservatórios atingem terras indígenas e que implicam o aproveitamento de recursos hídricos representados por rios que passam nas terras que tradicionalmente ocupam.
Os povos e as organizações indígenas reivindicam, ainda, a oportunidade de participar da discussão sobre as normas que regularão suas vidas, atentando-se ao princípio constitucional do “respeito à diversidade étnica”.

Com tais referências políticas e com o empenho que há mais de 10 anos vem desenvolvendo no sentido de qualificar e capacitar os membros de suas comunidades para o atendimento à saúde e na apreensão de novos conhecimentos técnicos e científicos, por intermédio da educação escolar, hoje os povos indígenas e suas organizações, notadamente na região amazônica, atuam no sentido de participar de forma igualitária e respeitosa na formulação e na condução da política indigenista e das ações governamentais que lhes dizem respeito.

Lideranças experientes atuam na Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), no Conselho Indígena de Roraima (CIR), na Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), no Conselho Geral das Tribos Tikuna (CGTT), no Conselho Indígena do Vale do Javari (Civaja), na Organização dos Povos Indígenas do Acre e Sul do Amazonas (que assumiu o trabalho até então realizado pela UNI-AC), na União das Nações Indígenas de Tefé (UNI-Tefé), na Organização dos Povos Indígenas do Oiapoque (AP). Como também ocorre no nordeste, com a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME).

Essas entidades indígenas constituem-se em experiências organizativas permanentes que comunidades e povos indígenas vêm desenvolvendo no decorrer dos últimos 20 anos. Algumas organizações locais e regionais avançam no conhecimento de formas próprias de administração, inclusive na superação de problemas econômicos e financeiros em razão de convênios firmados com a União, por intermédio da Funasa ou do Ministério do Meio Ambiente.

São, na realidade respostas políticas que os povos indígenas encontram para fortalecer a afirmação de seus direitos e interesses. Interessante e estimulante é perceber a pujança do recente movimento de articulação entre professores indígenas e entre agentes de saúde indígena.

Junto com a defesa da integridade das terras que tradicionalmente ocupam, contra a invasão de fazendeiros, empresários agrícolas, madeireiros, garimpeiros, e até mesmo de colonos e posseiros – estes invariavelmente com o apoio de Prefeitos e lideranças políticas e empresariais das regiões, como ocorre em regiões em Rondônia, Mato Grosso e Roraima –, a preocupação legítima das lideranças indígenas converge no sentido de o poder público viabilizar condições para uma atenção integral e diferenciada à saúde e à educação aos povos indígenas.

Temas como o da autonomia dos povos indígenas, do respeito à integridade das terras que tradicionalmente ocupam e das riquezas naturais remetem a questões importantes no desafio relacionado à compatibilização dos interesses nacionais do povo brasileiro com os direitos e interesses dos povos indígenas.

A questão da proteção das fronteiras do Brasil com os países limítrofes, em razão do que estabelece o § 5º do art. 231 da CF, bem como a regulação soberana sobre como aproveitar as riquezas naturais, o acesso à diversidade biológica e aos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, são temas que precisam e merecem reflexão e atenção de todos, assegurando-se integral apoio e respeito aos direitos e interesses dos povos detentores de expressiva e rica diversidade étnica e cultural, que deve ser fator de orgulho e apreço por parte de todos.

Dessa forma, acredita-se ser possível avançar numa nova fase política de construção de uma outra realidade no relacionamento com os povos indígenas.

Nesse contexto, afigura-se relevante afirmar que não será negando o direito dos índios às terras que tradicionalmente ocupam em qualquer parte do país – como alguns cogitam em relação à Faixa de Fronteira – ou em razão de empreendimentos hidrelétricos ou para o aproveitamento de recursos minerais, que aspectos relacionados à questão indígena serão equacionados.

Formulações dessa natureza, que simplificam a abordagem desses problemas ao atribuir a “organizações não-governamentais” – supostamente mantidas e orientadas por interesses de países europeus, asiáticos ou pelos Estados Unidos – o poder para demarcar terras indígenas ou mesmo localizar comunidades indígenas em locais onde hajam indícios de fartas ocorrências minerais ou para aproveitamento de recursos hídricos, não contribuem para a identificação e a superação de reais conflitos envolvendo interesses soberanos do povo brasileiro e de investimentos econômicos na região amazônica, com os direitos indígenas.

Ao contrário, será com o aprofundamento de práticas políticas respeitosas e equilibradas, baseadas em correta interpretação do texto constitucional e de eficiente regulamentação de direitos, que os desafios postos para o país na atual conjuntura poderão ser eficazmente enfrentados e equacionados.

Na perspectiva de viabilizar tais condições políticas e administrativas para que os diversos interesses públicos e dos povos indígenas sejam considerados na formulação e na condução da política indigenista, após três anos de longas negociações, foi criada pelo Presidente da República, em 22 de março de 2006, a primeira Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), com a participação de: 20 representantes indígenas com direito a 10 votos; 2 representantes de entidades indigenistas; e 13 representantes governamentais.

Instalada no último dia 19 de abril pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva, esta CNPI – que funcionará como instância articuladora das ações governamentais em relação aos povos indígenas, até que seja instalado o Conselho Nacional de Política Indigenista, a ser criado por lei –, tendo tido sua primeira reunião realizada em 4 e 5 de junho último, representa uma novidade histórica na condução da política indigenista brasileira, na medida em que pela primeira vez os povos indígenas se fazem representar diretamente em órgão colegiado do poder público, específico para efeito da condução de política que lhes interessa diretamente.

A grande expectativa nos trabalhos desta CNPI consiste em que sejam superados graves problemas: no atendimento à saúde; na capacitação técnica, científica e educacional dos índios; na proteção das terras e das riquezas naturais; e nos bens materiais e imateriais dos povos indígenas. Com essa inovadora experiência espera-se também ser possível viabilizar condições para o aperfeiçoamento da administração pública no relacionamento com os povos indígenas.

Nesse contexto, complexo e conflitivo, a contribuição das forças progressistas e de esquerda no trato da questão indígena assume relevância histórica.

Paulo Machado Guimarães é advogado, Assessor Jurídico do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e da Liderança do PCdoB na Câmara dos Deputados.

Notas
(1) “Diagnóstico da situação das populações indígenas no Brasil – (Contribuição do IPEA ao Grupo de Trabalho sobre Populações Indígenas da Câmara de Política Social do Conselho de Governo)” – texto elaborado por Frederico A. Barbosa da Silva, Herton Ellery Araújo e André Luis Souza – todos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
(2) Entidade da Igreja Católica – organismo vinculado à CNBB.
(3) AC, AM, AP, MA, MT, PA, RO, RR, TO.
(4) GO e MS.
(5) A Funai trabalha com o total de 611 Terras Indígenas, conforme sua página eletrônica: www.funai.gov.br. A divergência de total de terras decorre do entendimento do Cimi e de algumas organizações indígenas em relação a um conjunto de cerca de 238 Terras Indígenas que o poder público federal ainda não adotou qualquer providência destinada à sua demarcação administrativa.
(6) Aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo no 143, de 20 de junho de 2002 e promulgada pelo Decreto n. 5.051, de 19 de abril de 2004, pelo Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva.
(7) “Artigo 1° – A presente convenção aplica-se:
a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;
b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.
2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.
3. A utilização do termo “povos” na presente Convenção não deverá ser interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional”.
(8) Inciso XIV do art. 22 da CF.
(9) Na qual os povos indígenas contaram com a hábil e destacada atuação parlamentar do então deputado federal Haroldo Lima (PCdoB/BA) que, junto com outros parlamentares, dentre os quais os Senadores Severo Gomes e Jarbas Passarinho e os deputados José Carlos Sabóia e Plínio de Arruda Sampaio, atuaram articuladamente na negociação com os parlamentares que integraram a articulação conservadora conhecida como “Centrão”.

EDIÇÃO 90, JUN/JUL, 2007, PÁGINAS 30, 31, 32, 33, 34, 35