Amazônia: trabalho escravo, conflitos de terra e reforma agrária
A Amazônia brasileira ocupa 49,29% do território nacional, tendo a maior variedade de espécies animais e vegetais do planeta: a sua floresta, a hiléia amazônica, é a maior floresta tropical do mundo; a bacia fluvial amazônica se constitui em torno do maior rio do mundo, o Amazonas, que tem a maior parte de sua área total no Brasil; a reserva mineral da região amazônica também é a maior do mundo. As riquezas naturais dessa região colocam-na como estratégica em todo o planeta (1). Por isso não são raras e nem infundadas as ameaças de sua internacionalização por parte de representantes do imperialismo estadunidense.
Em contraste com essa riqueza natural, a população amazônica consta nas estatísticas oficiais com as mais baixas expectativas de vida, com os municípios de menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), menor renda per capita, com graves problemas ambientais e muitos conflitos agrários que, por vezes, acabam em morte de trabalhadores.
A realização do trabalho na Amazônia se dá em um ambiente de muitos contrastes, pois convivem ilhas de modernidade ao lado de formas muito atrasadas de realização do trabalho, a tecnologia de ponta utilizada em empresas organizadas sob a égide do toyotismo convive com o extrativismo e com formas naturais de realização do trabalho. Junto de uma Companhia como a Vale do Rio Doce, por exemplo, que utiliza as mais modernas tecnologias de gestão do trabalho, bem como de equipamentos de base microeletrônica, persistem comunidades quilombolas, ribeirinhas, e indígenas, que ainda concretizam formas tecnicamente ultrapassadas de realização do trabalho.
É na Amazônia também que, ao lado da expansão da moderna agroindústria, sobrevive o trabalho escravo contemporâneo (2). A CPT (Comissão Pastoral da Terra) e a OIT (Organização Internacional do Trabalho) estimam haver cerca de 25 mil trabalhadores escravos no Brasil, e metade deles no Pará.
Também nesse estado se concentram vários conflitos em torno da posse de terras. Esta situação de trabalho escravo e de conflitos pela terra pode ser visualizada no quadro 1:
Particularmente em relação ao trabalho escravo destacamos os dados que revelam a atuação do Estado brasileiro, por meio de grupos de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego e da Delegacia Regional do Trabalho (quadro 2):
Mesmo reconhecendo a importância de tais ações de fiscalização, deve-se reconhecer também o limite das ações do Estado, que faz com que apenas 50% das denúncias se trabalho escravo sejam apuradas pelos órgãos de fiscalização.
Os conflitos em torno da posse da terra estão relacionados com uma forma de ocupação do campo na Amazônia em que prevalece o latifúndio, e são resultado também da ausência das políticas públicas do Estado no interior dessa região capazes de regular as relações de trabalho; assegurar o acesso à terra e o fomento da produção nas pequenas propriedades; e conter a força política e o braço armado do latifúndio.
A zona rural amazônica, e particularmente a paraense, sempre fora ocupada privilegiando o latifúndio. Já em meados do século retrasado o ciclo da borracha – o primeiro fluxo migratório importante para a região – tem como marcas o privilégio da grande propriedade e a constituição de sistema de aviamento.
“Desde 1844, nordestinos, principalmente do Ceará, vieram ocupar áreas da Amazônia, formando a primeira leva dos chamados “soldados” da borracha. Mais tarde, em 1877, uma outra seca no Nordeste impulsionou mais um movimento de pessoas rumo aos seringais. A época da borracha foi tido como um período “dourado” para a Amazônia e criou-se, assim, uma elite que estabeleceu um sistema de aviamento e, a seu modo, marcaria as relações sócio-econômicas na região. Este empreendimento sofreu uma queda brusca a partir de 1910 (grifo nosso)” (6).
Este é o sistema de aviamento, originado há mais de 150 anos, que se manterá e favorecerá o trabalho escravo contemporâneo que se consolida sobre as dívidas impagáveis do trabalhador.
Outro ciclo importante se deu a partir da década de 1960 com a implementação dos grandes projetos na Amazônia, sob a marca da doutrina de segurança nacional que via a integração da Amazônia ao Brasil como uma questão de segurança nacional. A partir daí desenvolveram-se projetos de abertura de estradas e a implementação de grandes projetos.
“A era dos Grandes Projetos na Amazônia esboçou uma nova face para a região. No período do Milagre Econômico Brasileiro, nos anos 1970, o governo federal implementou seu Projeto de Integração Nacional (PIN), badalando o mesmo como uma oportunidade de oferecer “terras sem homens para homens sem terra”. Criou-se, então, uma malha rodoviária e novos projetos agrícolas para assentar povos de lugares distantes. Na ocasião, o governo militar objetivava ocupar a Amazônia, com o intuito de solidificar sua soberania e escoar pessoas de outras regiões potencialmente conflituosas” (7).
Os grandes projetos tiveram pouco impacto no desenvolvimento da região, mas provocaram o acirramento dos problemas sociais e demográficos. Mais lucrou com isso as empreiteiras e parte das elites locais que conseguiram ter acesso à parte dos recursos destinados à implementação da política de integração da Amazônia. Também lucraram os grileiros que se apropriaram de grandes extensões de terras.
Tanto o ciclo da borracha quanto o dos grandes projetos revelaram um tipo de ocupação das vastas extensões das terras amazônicas em que se privilegiou o latifúndio em detrimento das pequenas propriedades e o uso predatório da força de trabalho e da natureza.
Colaboram com a permanência dos conflitos agrários a não garantia dos direitos dos trabalhadores e a pouca presença do Estado na zona rural da Amazônia. Isto pode ser evidenciado no fenômeno da reincidência de propriedades rurais que fazem uso de mão-de-obra escrava e no perfil do trabalhador escravo.
Sobre a reincidência, destaca-se haver casos de fazendas denunciadas por uso de mão-de-obra escrava em dez anos diferentes: a Fazenda Forkilha, localizada em Santa Maria das Barreiras. Entre as 117 fazendas denunciadas em 2002, 27 eram reincidentes na prática de trabalho escravo (8).
Considerando o indivíduo submetido à situação de trabalho escravo, verificou-se em pesquisa recente coordenada pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Pará (9) que 85% daqueles trabalhadores são analfabetos ou semi-analfabetos, a grande maioria provém de situações de vida de extrema pobreza, parte deles não tem qualquer documentação civil como título de eleitor, carteira de identidade ou certidão de nascimento; há ainda um grupo que não tem sobrenome, registro oficial ou lembrança de onde nasceu. Com esse perfil, tais trabalhadores ficam à margem das políticas oficiais de garantia de cidadania, não tendo sequer condição legal para pleitear direitos ou terras.
A reincidência e o perfil do trabalhador escravo revelam não apenas e ausência do Estado como garantidor das condições dignas de sobrevivência humana, como também a face mais cruel da exploração da mão-de-obra rural na Amazônia. Coloca-se, assim, como marca do trabalho no campo amazônico o uso predatório da força de trabalho, que não respeita direitos e se sustenta na ausência do Estado e na força do latifúndio.
Também caracteriza a realização do trabalho na Amazônia o uso predatório da natureza. Sobre isso Vera de Almeida e Val, pesquisadora do INPA (Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia), afirma: “a exploração dos recursos naturais (biológicos ou não) tem atingido o meio ambiente como um punhal que se crava lentamente” (10). Para ela, não são os trabalhadores individuais que, em busca de riqueza, dilapidam o patrimônio genético da Amazônia, mas empresas consolidadas, nacionais e multinacionais, que exploram madeira, minérios e agora petróleo. Estas deixam como saldo desertificação e erosão.
Essa pesquisadora faz ainda um alerta de que, no atual momento, nos deparamos com o fantasma da exploração da biodiversidade, que, como “apenas” detentora de material genético, esconde em si riquezas insondadas, que, se indevidamente exploradas, poderão se esgotar antes mesmo que saibamos seu valor (11).
Com isso, observamos que os modelos de desenvolvimento até agora adotados na região privilegiam a reprodução do capital, em detrimento do homem e da natureza; assim projetos como os da Vale do Rio Doce têm sido muito eficientes nos processos de reprodução do capital, favorecendo seus acionistas (12), em detrimento dos trabalhadores das regiões onde estão instaladas as suas unidades ou da preservação do meio ambiente. Por um novo modelo de desenvolvimento referenciado no homem
A tendência atual de expansão da agroindústria, organizada em grandes extensões de terra, revela a continuidade de uma cultura instituída de exploração da terra em que se privilegia o latifúndio em detrimento das pequenas propriedades.
Um novo modelo de desenvolvimento da Amazônia é necessário e este requer:
a) Uma inversão de valores. O trabalhador – particularmente os trabalhadores rurais e os pequenos proprietários, os indígenas, ribeirinhos e as populações tradicionais – deve se constituir no principal balisamento para os projetos de desenvolvimento regional que se propõem qualitativamente diferentes. O homem é a principal referência e em seu benefício devem ser organizados os planos de desenvolvimento econômico e social.
b) A Reforma agrária como bandeira de luta que interessa aos trabalhadores rurais e aos pequenos proprietários. Será por meio de estratégias de distribuição de terras e de assistência e de fomento à produção que será possível construir condições de trabalho em que seja valorizado o homem amazônida.
c) Um novo modelo de desenvolvimento construído de modo a articular a promoção do homem, o desenvolvimento econômico, o conhecimento científico, a sustentabilidade ambiental e a valorização das riquezas regionais. Para tanto, destacamos a iniciativa do Governo do Estado do Pará que, sob a liderança da Governadora Ana Júlia Carepa, propõe uma nova matriz de desenvolvimento apoiada no conhecimento, nos arranjos produtivos locais e na valorização das riquezas naturais existentes em nosso estado. A questão do conhecimento torna-se cada vez mais estratégica e é um ponto frágil da nossa soberania. Fossem nossos ecossistemas mais bem conhecidos e melhor assistidos científica e tecnologicamente, nosso debate seria enriquecido e seguramente teríamos “defesa” (13).
Esse modelo de desenvolvimento deve ser viabilizado como resultado de um processo de diálogo entre os diferentes setores da sociedade regional, em especial de um diálogo franco entre Estado, setores produtivos (inclusive pequenos produtores), instituições de ciência e tecnologia e organizações dos trabalhadores. O desenvolvimento, nessa perspectiva, não pode resultar de um planejamento feito de fora para dentro, como tem prevalecido historicamente, mas deve partir daquilo que interessa aos trabalhadores da Amazônia.
Socorro Gomes é Secretária Estadual de Justiça e Direitos Humanos do Estado do Pará, [email protected] e Ronaldo Lima Araujo é professor-adjunto do Centro de Educação da Universidade Federal do Pará, [email protected].
Notas
(1) As florestas da região concentram 60% de todas as formas de vida do planeta, mas calcula-se que somente 30% de todas elas são conhecidas pela ciência. Cf. www.portalamazonia.globo.com.
(2) Não há convergência sobre a possibilidade de usar a expressão “trabalho escravo”, pois a situação atual apresenta diferenças com o trabalho escravo clássico, mas, além de algumas regularidades permitirem o uso desta expressão, a OIT reconhece o seu uso no Brasil para designar uma forma de trabalho forçado, e o Governo Lula a utilizou oficialmente quando lançou o Plano Nacional pela Erradicação do trabalho Escravo, em 2003.
(3) Esse número representa 43% do total de trabalhadores rurais assassinados no Brasil.
(4) Esse número representa 45% do total de trabalhadores resgatados no Brasil.
(5) CPT. Conflitos no Campo no Brasil. Goiânia: CPT, 2007.
(6) FORLINE, Louis. As Várias Faces da Amazônia: Migrações, Deslocamentos e Mobilidade Social na Região Norte http://www.comciencia.br/reportagens/amazonia/amaz8.htm. Amazônia: interesses e conflitos.
(7) Idem.
(8) SAUER, Sérgio. Violação dos direitos humanos na Amazônia: conflito e violência na fronteira paraense. Goiânia: CPT; Rio de Janeiro: Justiça Global; Curitiba: Terra de Direitos, 2005. 170p. Disponível em: http://www.mp.pa.gov.br/caocriminal/arquivos/violacao_direitos_humanos.pdf Acesso: 13/04/07.
(9) SEJUDH. Diagnóstico dos Direitos Humanos no Estado do Pará (relatório preliminar). Belém: SEJUDH, 2007.
(10) VAL, Vera Maria Fonseca de Almeida e. A Amazônia, a biodiversidade e o novo milênio. In: www.comciencia.br. Acessado em 05/06/2007.
(11) Idem.
(12) A Vale obteve o lucro recorde de aproximadamente US$ 12,5 bilhões em 2006. cf. http://www.cvrd.com.br/cvrd/media/factsheetp.pdf.
(13) VAL, Vera Maria Fonseca de Almeida e. A Amazônia, a biodiversidade e o novo milênio. In: www.comciencia.br. Acessado em 05/06/2007.
EDIÇÃO 90, JUN/JUL, 2007, PÁGINAS 26, 27, 28, 29