Amazônia: desafio nacional
Graduado em Física pela Universidade de São Paulo (1964) e pela Università degli Studi di Napoli (1972), Candotti realizou, entre 1966 e 1973, diversos estágios de pesquisa em Física Teórica nas Universidades de Pisa, Munique e Nápoles.
Participou da criação das revistas Ciência Hoje – que editou de 1982 a 1996 – e Ciência Hoje das Crianças. Contribuiu ainda na criação da publicação homônima argentina de Ciência Hoy. Recebeu em 1990 o Prêmio Kalinga de Divulgação Científica, concedido anualmente pela Unesco.
Candotti também foi professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) de 1974 até 1995, e desde então atua como professor da Universidade Federal do Espírito Santo.
De seu gabinete na sede da SBPC, em São Paulo, ele falou à Princípios sobre o tema da Amazônia, que estará em debate na próxima Reunião Anual da entidade a ser realizada entre 8 e 13 de julho em Belém/PA. Candotti também comentou outros assuntos de interesse dos cientistas brasileiros
Por que a SBPC adotou o tema “Amazônia – desafio nacional” como mote de sua 59ª Reunião Anual?
Ennio Candotti – Porque a Amazônia está na retórica das políticas de governo, mas não está na prática.
O grande vazio que encontramos na Amazônia é uma política de formação de recursos humanos à altura dos desafios locais. Se se perguntar sobre os desafios a qualquer reitor de uma universidade da Amazônia, ou a um industrial ou a alguém preocupado, interessado em promover o desenvolvimento da região, ele responderá que o principal desafio relaciona-se à falta de recursos humanos. O reitor da Universidade do Pará dirá que precisa de “gente, gente, gente, quanto mais qualificada melhor”. Isso significa que a Amazônia precisa não de mil técnicos, especialistas, gente formada, mas de dez mil, cinqüenta mil pessoas. Tanto para funções de reprodução docente quanto para estudo de sua complexa realidade natural e social, e também para alimentar a indústria e o sistema produtivo. Esse é o ponto central. Passados 40 anos de políticas científicas para a Amazônia, quase tudo ainda resta por fazer. Nós tínhamos ali, há 20 anos, mil doutores e hoje temos, ainda, mil doutores na Amazônia. Doutor não é tudo, mas é um indicador da gravidade da situação.
A agenda nacional para a Amazônia não estaria ainda hoje muito dominada pela pauta da conservação ambiental, excessivamente estreita e limitada quando temos em vista um projeto nacional de desenvolvimento?
Ennio Candotti – Sem dúvida. A questão da conservação é como jogar na retranca, para empatar e não para ganhar. Na Amazônia as pessoas conservam, conservam, conservam, não deixam, não deixam, não deixam, fazem um esforço imenso para evitar a depredação, mas a melhor maneira de promover a conservação é garantir o bom uso, a ocupação inteligente, o aproveitamento das riquezas, que devem ser entendidas como riquezas materiais e também como riquezas intangíveis. Por exemplo, derrubada uma árvore, o conteúdo de valor da madeira é um décimo do conteúdo de valor das essências, das folhas, da copa, daquilo que poderia ser extraído sem derrubar a árvore. Isso se sabe, se estuda, mas ainda não está ao alcance das populações de lá. Se elas chegam ao mercado com um balaio cheio de folhas não o transformam nos mesmos cinco mil reais que conseguem com uma tora de madeira. No entanto, aquele balaio bem selecionado e estudado pode valer cinqüenta mil. Por isso, a grande batalha hoje é esta: temos chances de encontrar na Amazônia fontes de conhecimento, fontes de informações a respeito do funcionamento da floresta, de como funciona uma árvore, de como funcionam as diferentes espécies, as diferentes formas de vida.
O senso comum vê a Amazônia como questão nacional ou ainda a concebe apenas como um problema de desenvolvimento regional?
Ennio Candotti – Como um mero desafio de desenvolvimento regional. Claro, todos aceitam que esse seja um desafio nacional, mas na prática a política de governo é regional. Atribuo isso à falta de recursos humanos presentes. Se tivéssemos lá 10 mil técnicos solidamente implantados nos laboratórios de pesquisa ou no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas da Amazônia, o Inpa de Manaus, a coisa seria diferente. Mas há 30 anos não se sai do lugar. Para a pesquisa na Amazônia há 20 milhões, equivalentes ao orçamento de um departamento do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Será que o espaço é mais rico que a Amazônia em informações, em dados, em sumos para o desenvolvimento? Obviamente, não. É o nosso subdesenvolvimento que faz com que isso ocorra. Um subdesenvolvimento político a que devemos combater, assim como combatemos o subdesenvolvimento econômico e social. Devemos combater o fato de não conseguirmos colocar na pauta nacional o desenvolvimento da Amazônia com base na educação, na ciência, na tecnologia.
Que papel deveria ser reservado à Amazônia no contexto da edificação de um novo modelo de desenvolvimento nacional, com inclusão social e regional?
Ennio Candotti – Hoje corremos atrás da inovação e o maior laboratório de inovações é o amazônico, pela sua riqueza em desafios, em problemas, em incógnitas, em equações, em dilemas, em diferenças, em desconhecimentos. A Amazônia possui uma imensidade de possibilidades e tudo isso ainda hoje jaz como que em uma caixa-preta.
Os debates sobre a Amazônia costumam evocar o dilema “santuário versus almoxarifado”. De que forma, fugindo desse dilema, podemos desenvolver a Amazônia mantendo a floresta? Como colocar a Amazônia, de forma sustentável, a serviço do desenvolvimento do país?
Ennio Candotti – As coisas são feitas por gente, gente competente, entusiasmada. Então, a forma de fazer isso que você diz é formando, formando, formando… Eu viajei pela Amazônia toda e vi os jovens indígenas, com os olhos brilhantes, interessadíssimos em conhecer, em transformar aquilo que sabem, que vivem no dia-a-dia, em conhecimento capaz de ser utilizado por outros, no objetivo maior da melhoria da qualidade de vida nas cidades, nas aldeias. Ninguém gosta de viver na miséria, na pobreza, com dificuldade de enfrentar as doenças e a fome. Por isso, todos querem melhorar. Isso é educação, ciência, tecnologia, conhecimento, pós-graduação. Só agora começam a se formar os primeiros jovens indígenas em pós-graduação. Podem-se contar nos dedos. E isso deveria ter ocorrido há cinqüenta anos atrás. Era um projeto de cinqüenta anos atrás. Mas patinou, patinou, patinou. Certamente por acreditar que a solução seria asfaltar o leito do rio e fazer passar por lá uma grande estrada, com um vai-e-vem de caminhões que promoveria o desenvolvimento. E aconteceu que a estrada afundou, e com ela esse projeto equivocado.
Em que medida podemos dizer que as soluções propostas para a Amazônia fracassam por não respeitarem as peculiaridades da região, por não privilegiarem a participação da própria região na elaboração de propostas e na definição de estratégias de desenvolvimento?
Ennio Candotti – As soluções fracassam porque estão com panema – o mesmo espírito que impede o sucesso de um caçador na floresta. Desse caçador diz-se que está “apanemado”, e por isso não consegue acertar e pegar uma caça. Os espíritos dos povos da Amazônia até agora não se sentiram à vontade com os caçadores. E soltaram seus panemas. E eles têm funcionado, sim. Se há uma demonstração de que panema existe é exatamente esta: há 50, 100 anos tentam ocupar aquelas terras e não conseguem. Não acertam uma no alvo.
É possível falar em um “modelo amazônico” de desenvolvimento, com alternativas econômicas e tecnologias apropriadas à região?
Ennio Candotti – Para alguns grandes nomes, grandes figuras – como Mauro Almeida, Eduardo Ribeiro de Castro –, isso é possível sim. Discutimos essa questão no encontro de Cruzeiro do Sul (AC), da Universidade da Floresta, e esse é o projeto, esse é o sonho. Mas não é trivial, porque o projeto não é apenas de interação com a floresta. Quando se aumenta a escala do laboratório, da intervenção ou do projeto de conhecimento, enfrentam-se problemas complexos, não imediatamente solúveis a partir da floresta – como as questões das telecomunicações, da energia, do transporte… Na Amazônia as pessoas se locomovem usando meios de transporte aquáticos. Para a escola se vai, em 2 horas, de canoa. E o fato de poucos usarem esse meio em relação aos que utilizam o metrô em São Paulo não quer dizer que o problema seja mais simples, ou que deva ser desconsiderado. Se nós usássemos para os transportes da Amazônia o mesmo empenho, o mesmo investimento de recursos humanos, e o mesmo interesse que usamos para desenvolver os transportes urbanos, teríamos um resultado até melhor do que no caso dos transportes urbanos. Mas, para estudar soluções como as do metrô sempre existiram milhões de estudos. Para estudar os transportes na Amazônia não há algo equivalente. Aliás, há uma lei atual que proíbe a construção de novos barcos que não sejam de metal, de ferro. Com isso destrói-se todo o conhecimento de produção e de construção de barcos de madeira.
Essa é uma típica lei que revela quão pouco a política nacional entende de metade do seu país, que é aquático e se move em relação estreita com a madeira. Como o senhor vê a proposta de formação de um bloco regional pan-amazônico, buscando criar entre os países com territórios amazônicos sinergias que contribuam para o melhor aproveitamento do potencial da região?
Ennio Candotti – Trata-se de uma boa idéia. Mas, por outro lado, eu não seria tão romântico a ponto de imaginar uma alternativa que apenas lá possa surgir. Para mim, existe um imenso laboratório natural no qual devemos trabalhar. Mas isso não significa que só se deva ter tecnologia alternativa. Não. Precisamos dos satélites. Precisamos de trimotores. Se conseguirem inventar um motor mais avançado, então melhor. A tecnologia atual de construção pode ter um grande desenvolvimento aproveitando as vicissitudes daquela região. As casas não são as mesmas casas, são flutuantes… Se ocuparmos milhares de pessoas interessadas em trabalhar naquele ambiente, teremos de desenvolver publicações, mecânica, eletroeletrônica. Portanto, como dissemos no início, não se trata apenas de uma questão verde, mas de uma questão que abrange todas as áreas. Em Manaus não se deve fazer ecologia, cuidar do meio-ambiente e abandonar a eletrônica. Não. Tem de fazer eletrônica, sim, tem de fazer extração, tem de fazer energia, tem de fazer todos os materiais, tem de estudar todo o espectro do conhecimento.
Se se fizer tudo isso, mas não um estudo da biodiversidade também…
Ennio Candotti – Sim, mas ela é apenas uma das pernas. Há a necessidade de bons matemáticos. Há a necessidade de bons físicos para fazer física de altas energias. É aparentemente abstrato, mas, depois, os alunos formados nesses laboratórios são capazes de inventar modelos e pensar… Não é porque lá existem mais árvores que temos de fazer só biotecnologia. Aliás, biotecnologia sem matemática, sem física, sem química, é pífia. Não há prova mais clara da absoluta incompetência da política nacional do que o fato de em toda a Amazônia hoje só existir um programa de pós-graduação em antropologia. Um apenas! Isso significa que se deve esquecer a existência de estudos de antropologia? Ora, mas há 120 línguas lá, segundo o Laboratório de Lingüística! E, em contraposição, contam-se nos dedos os lingüistas trabalhando na Amazônia.
Por solicitação do MCT, a SBPC desenvolveu uma série de iniciativas (consultas, seminários, debates) visando a recolher elementos para a formulação de uma agenda nacional para a Amazônia. Quais seriam, a seu ver, os pontos principais dessa agenda?
Ennio Candotti – A meu ver, formar gente, formar gente, formar gente. Mas para fazer isso devemos considerar que a Amazônia também não é uma Amazônia, mas muitas. Há grande diversidade, há uma situação de fato de fronteira em expansão, mas há também uma ocupação consolidada em muitas regiões, com peculiaridades próprias, que devem ser reconhecidas. Há, por exemplo, a área de Sinop (MT), na qual avança a soja… Em suma, não é apenas uma localidade, é toda uma região. Há conflitos, conflitos armados gravíssimos, uma presença do Estado muito deficiente nessas regiões. Não é fácil melhorar as deficiências do Estado, porque para fazer isso precisa ter gente, ter bons funcionários públicos, bons funcionários para impulsionar uma boa educação. Uma boa educação precisa de mestres. Os mestres precisam não apenas de quem os pague bem. Na Amazônia há um paradoxo simples: há a oferta de dez mil reais por mês para um médico, mas não há como encontrar um deles disposto a ir à Amazônia. Infelizmente não se pode obrigar ninguém, não se pode dizer “olha, pega dez mil reais por mês e vai lá para Paracati”. Por isso, devemos incluir nessa discussão as comunidades que lá vivem. Temos de encontrar maneiras de acelerar o processo de formação dos jovens que vivem em tribos indígenas. A cada dez pessoas da região formadas no Sul-Sudeste apenas uma volta. É um jogo complicado, e por isso há necessidade de uma chamada geral. Se não, não há conversa. Se não, os panemas ganham.
Não seria o caso de um grande programa com impacto mobilizador, que contasse com recursos garantidos e a continuidade típica das políticas de Estado?
Ennio Candotti – Para mim – se você me permite –, isso é conversa. Há exército para conseguir isso? Quem vai fazer isso? Quem está formando as pessoas para fazer isso? Quando fomos, anos atrás, ao Congresso Nacional, ver o Tião Viana e a Vanessa Graziottin, constatamos a existência de 5 bilhões de reais dos fundos setoriais contingenciados, bloqueados na Fazenda. Há cinco anos insistimos em que deveriam ser liberados para um projeto estratégico, como o Projeto Amazônia. A resposta é sempre muito tímida, há mil outras coisas na frente. Vejam os Jogos Pan-americanos – contra os quais nada tenho, porque fazem parte da nossa vida social. Mas se estivéssemos em guerra todo aquele dinheiro seria gasto para construir estádios ou para enfrentar a guerra?
É preciso entender que na Amazônia estamos em guerra! E isso não está claro no quadro político nacional. Há uma guerra na Amazônia! E Brasília claramente não reconhece essa realidade, pois se reconhecesse seriam deslocadas para lá divisões. Não seriam mandadas divisões para o Rio ou para Copacabana. Não quero desmerecer, ou subestimar, a guerra de Copacabana, a guerra urbana etc. Mas, no meu entendimento, nós não temos uma fronteira de desenvolvimento como essa, que poderia empolgar a nação e trazer muito da nossa criatividade hoje desperdiçada. Mas nunca se reconheceu a existência de uma guerra na Amazônia, e muito menos que a estamos perdendo. Esse é o grande problema do nosso quadro: as guerras estão sempre sendo perdidas, mas os generais que as perdem são “generais”, industriais, elites, sempre promovidos, ganhando uma embaixada ou alguma forma de serem prestigiados – sempre foram rebaixados para cima. Esse é, a meu ver, o grande desafio da revolução brasileira: é preciso começar por lamentar as perdas, e não colocar as perdas na conta do povo.
Tem sido fácil envolver o setor produtivo na discussão dessa agenda para a Amazônia?
Ennio Candotti – Não. A Suframa, a Confederação das Indústrias do Pará e muitos outros estão empenhados e comprometidos com isso. Mas há uma minoria pensando em prazos maiores que três anos. A maioria pensa em prazos de dois meses. Uma faixa pensa num prazo de um ano, e muitos poucos em dez anos. Precisaríamos aumentar esta última faixa dos que pensam em dez anos, dos que pensam um projeto nacional. Não há na indústria um aliado sólido. Há um aliado pronto para usar qualquer facilidade. É preciso criar facilidades para atrair empresários, mas qualquer coisa fora disso ainda não faz parte da cultura deles. Se eles tivessem de ir para ilhas prefeririam ficar na praia. Não são pessoas com têmpera para enfrentar desafios maiores, nacionais. A Suframa cresceu e dela são doze milhões de dólares de incentivos da nação toda – porque é o dinheiro de todos nós – investidos lá para que eles façam alguma coisa. É muito dinheiro ganho por eles. E de fato os avanços são importantes. Mas se fizéssemos as contas na ponta do lápis, verificaríamos que o povo brasileiro se sacrifica muito mais que os empresários que lá estão para promover o desenvolvimento. Ou seja, a renúncia fiscal de todos nós é incorporada por pequenos grupos de beneficiários. Infelizmente não há outro jeito. Não quero dizer com isso que se deva fechar a Suframa. Pelo contrário. Com essas elites do Brasil, isso que temos é o melhor possível. Está longe de ser o ideal. Devemos sempre lembrar que nosso herói maior é Tiradentes, que teve sua cabeça cortada, não Maria Antonieta, que mandou cortar cabeças.
Boa parte das indústrias bio-inovadoras é composta de pequenas empresas. Não seria o caso de uma versão específica para a Amazônia do Programa de Apoio à Pesquisa na Pequena Empresa (PAPPE) da Finep?
Ennio Candotti – Sim. Aposto que o pessoal da Finep vive imaginando modos de superar essas dificuldades. Eu os considero aliados nessa discussão, e devem estar pensando em formas de superar os problemas. Eles sempre se defrontam com um número de projetos inferior ao desejável.
Veja o retrato da nossa situação: 95% das indústrias de São Paulo não sabem o que é CNPq, e mais de 90% não sabem o que é a Fapesp. São dados de uma pesquisa da própria Fiesp que podem ser encontrados no Jornal da Ciência. Se isso vale em São Paulo imagine no restante. Do modo como estão formatados atualmente, os fundos setoriais têm jogado papel efetivo no desenvolvimento da Amazônia? O percentual obrigatório de aplicação dos fundos na região Norte é suficiente? As ações transversais (não-setoriais) dos fundos têm contemplado adequadamente a região amazônica?
Ennio Candotti – A questão não é de indução, mas de absorção. Porque, quem usa esse recurso? Não tem gente… Repito, gente! Há mais recursos do que capacidade de gastá-los. E, cuidado, também há mais capacidade de gastá-los do que recursos. As duas coisas são verdadeiras. Na Amazônia há um número grande de jovens prontos para assumir, avançar. Na faixa entre 20 e 30 anos há um rico exército, mas quem deve solicitar esses recursos operados tem sempre entre 35 e 40 anos. Então, só espero que não se perca a geração nova crescendo e que ela não seja destruída antes de chegar aos 40 anos, à maturidade, à liderança científica, tecnológica, empresarial.
O Brasil forma hoje mais de 10 mil doutores por ano, e boa parte deles não consegue emprego condizente com a sua qualificação. De que forma poderíamos atrair parte desses recursos humanos para a Amazônia? Quais os meios mais eficientes para isso?
Ennio Candotti – Primeiro: 50% desses recursos humanos são de áreas sem grande função na Amazônia – administração de empresas, direito etc. Segundo: precisamos de educadores, de mestres para ensinar matemática, português, história. E, além de haver poucas pessoas com essa formação, as dificuldades de absorção são enormes. Alguém diz “estão sem emprego”. Mas estão sem emprego em São Paulo, no Rio de Janeiro. Se alguém está disposto a ir para Rio Branco, Cruzeiro do Sul, Manaus, Belém tem emprego à vontade. Mas não se pode obrigar ninguém a ir para esses lugares porque as dificuldades para pesquisadores, professores universitários são muito grandes. É um sistema em evolução. Anos atrás não havia as facilidades de hoje. Hoje já temos importantes facilidades. Anos atrás não havia concursos por grupos. Ou seja, se um grupo de engenheiros elétricos quiser ir para Manaus provavelmente encontrará um concurso para engenheiros que queiram trabalhar numa determinada área. Há poucos anos só existia uma vaga e a pessoa tinha de ir sozinha.
A produção internacional sobre a Amazônia é crescente. Setenta por cento dos conhecimentos da Amazônia não são produzidos no país.
Ennio Candotti – São assinados, organizados aqui, mas não por brasileiros.
É cada vez mais baixa a participação de autores e especialistas brasileiros capazes de interagir com essa crescente produção internacional. A cooperação científica – inclusive na formação e fixação de pessoal – não seria uma saída para enfrentar esse problema, através, por exemplo, de mais bolsas de pós-doc para brasileiros em países sul-americanos e vice-versa?
Ennio Candotti – Sem dúvida. Uma dimensão ainda pouco explorada desse debate é que 60% da Amazônia ficam no Brasil; os outros 40% em outros países: Peru, Equador, Venezuela, Bolívia. Portanto, é muito importante o estabelecimento de um novo pacto de desenvolvimento científico-tecnológico na região. As formigas lá da Venezuela e as formigas do Brasil se entendem muito bem. Elas se comunicam mesmo sem passaporte, ou sem passar pelos canais nacionais, pela proteção das fronteiras. Para elas não há fronteiras. Mas a cooperação para a formação de gente da região, e para a região, ainda é precária. Pelo meu entendimento, se deveria – ao mesmo tempo em que se pensa em gasodutos, oleodutos, sistemas de transporte, de energia ou na construção de hidrelétricas – colocar uma grande hidrelétrica do conhecimento na região. Ou seja, gastar 10 bilhões com a formação dos índios. Gastar 10 bilhões para acelerar a formação de jovens venezuelanos, equatorianos, colombianos, peruanos, bolivianos, em centros de formação. Não é fácil montar. Não é só uma questão de dinheiro. Quem vai ensinar lá? Mas se conseguirmos criar uma empolgação e conseguir colocar essa questão no centro das atenções políticas, conseguiremos fazer milagres. Quando em 1965-70 se criou a COPPE/UFRJ; quando em 1930 se criou a Universidade de São Paulo; quando nas décadas de 1960-70 se criou a Universidade de Brasília, havia movimentos além dos investimentos. Não foi apenas um investimento de dinheiro que criou a Universidade de Brasília, mas todo um movimento, uma missão. Havia uma razão maior, um projeto de desenvolvimento por trás disso. Gostaria de ver o Chávez, o Lula, o Evo Morales brigando – ao invés de pelo etanol ou pelo gás – por 100 mil bolsas para estudantes bolivianos, equatorianos, venezuelanos e brasileiros que, em Manaus, no Oiapoque ou onde for, tivessem boas condições para aprender, se formar e até mesmo formar outras pessoas.
Que novas unidades de pesquisa poderiam ser criadas na região?
Ennio Candotti – Primeiro, não é preciso criar novas, mas ampliar o orçamento do Museu Emílio Goeldi ou do Instituto de Pesquisas da Amazônia. A soma dos dois orçamentos dá uns 20, 25 milhões. Vivem com mais uns 10 milhões de convênios – totalizando 30, 35 milhões. Enquanto isso, um único projeto, o Sivam, absorveu bilhões. E os laboratórios criados carecem de plena utilização por equipes de elevada formação.
O Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) tem jogado tudo o que poderia na utilização do potencial científico e tecnológico da região?
Ennio Candotti – Não, são milhões jogados fora. Quanta gente foi formada? Absorveu quantas pessoas? Qual a contribuição desse projeto para o desenvolvimento científico nacional?
Muita gente dizia que a comunidade científica nacional não tinha capacitação suficiente para dar conta de um projeto desse porte…
Ennio Candotti – Besteira. Se há capacidade para criar uma Unicamp por que não pode haver para um projeto como esse? Teríamos talvez demorado uns cinco anos a mais. Em vez de fazer em cinco anos teríamos feito em dez, mas em dez anos teríamos deitado raízes.
O modelo de laboratórios associados não seria mais eficaz que o de unidades/centros de pesquisa na fixação de recursos humanos, por envolver cooperação inter, e intra, regional?
Ennio Candotti – É uma hipótese importante que deveria ser aventada, mas temos tantos empecilhos burocráticos e tantas dificuldades inventadas para não avançar… O sistema burocrático brasileiro é o maior entrave. As 70 mil leis em vigor servem para qualquer coisa. Os advogados se multiplicam como formigas. Há Tribunais de Conta debruçados sobre papéis e mais papéis. A corrupção multiplica-se por mil, apesar disso tudo. O CBA (Centro de Biotecnologia da Amazônia) está parado há dez anos porque não resolve o problema da sua institucionalidade jurídica.
A legislação brasileira que disciplina o acesso ao patrimônio genético (MP 2.186-16/2001 e decretos e portarias derivadas) tem sido eficaz no combate à biopirataria?
Ennio Candotti – Biopirataria só se combate com biocorsários. É preciso ter piratas mais eficientes trabalhando para nós, para nosso projeto nacional. O resto é conversa. Esses piratas e corsários a que me refiro, obviamente, são cientistas, laboratórios de pesquisa. Temos de explorar nosso patrimônio antes que outros explorem. Não há a menor chance de criar um paredão que cerque nossas fronteiras e impeça o trânsito das formigas. Se isso for feito serão encontrados cupins corroendo o seu paredão e passando por baixo. Em uma colherinha de terra, ou em um copo d’água do rio Amazonas, podem existir informações genéticas de enorme valor. A legislação que impede a coleta e o transporte de peças de nossa fauna e flora para estudo só tem servido para bloquear o nosso próprio desenvolvimento científico e paralisar os pesquisadores honestos que, procurando ser bons cidadãos, obedecem às leis. Quem quer fazer pirataria não obedece às leis. Essa legislação só serve mesmo para inibir a formação de gente, o avanço do conhecimento e para alimentar uma burocracia que se encastelou em Brasília. Onde já se viu comandos de polícia federal e agentes fiscais do Ibama invadirem laboratórios à procura de alguns vermes cujos portadores supostamente não teriam “licença” para armazená-los e estudá-los? Essas ações dão visibilidade a esses agentes e notoriedade nos jornais ao mesmo tempo em que inibem o avanço de conhecimento. Eu recebi um parecer do Ibama que proibiu o transporte de um formigueiro, porque isso causaria estresse nas formigas!! É preciso prender um sujeito desses! É preciso criar um sanatório para agentes ambientais desvairados – uma nova especialidade da psiquiatria brasileira.
E como combater a biopirataria sem impedir o acesso dos cientistas brasileiros ao nosso patrimônio genético, isto é, sem emperrar a pesquisa sobre nossa biodiversidade?
Ennio Candotti – Todos os Institutos de Pesquisa em História Natural devem se tornar Ibamas, devem se tornar centros de controle. Todo cidadão brasileiro deve ser ele mesmo um agente preocupado com a conservação, sem ter de passar pelo Ibama. Onde já se viu? Eu formo pessoas que vão trabalhar no Ibama e tenho de pedir licença a esse pessoal para fazer aquilo que me permitiu ensinar a tais pessoas fazer o que fazem? Aqui está colocada com bastante dramaticidade a questão. Já disse e repito: o Ibama é um Doi-Codi dos ambientes naturais brasileiros. Outro dia uma pessoa do Ibama me disse: “Imagina, aquele alemão queria levar um copo d’água do rio Negro para a Alemanha”. Veja, num país em que acontece o que acontece alguém, um funcionário público, é pago para pensar uma coisa dessas…
Isso tem atrapalhado o intercâmbio de nossos cientistas com os de outros países, não?
Ennio Candotti – Claro! A água do rio Negro é importante. No entanto, se alguém quiser enfrentar o problema então que estude a água do rio Negro, mas não fique proibindo que outra pessoa o faça, ou que alguém tenha a idéia de levar um copo d’água do rio. Quem quer estudá-lo para fins de enriquecimento ilícito faz e não pergunta. Leva de outro jeito. Além disso, não é necessário nem um copo. Bastam algumas gotas.
Qual a importância de valorizarmos o conhecimento tradicional? De que forma ele pode contribuir para o avanço do conhecimento científico sobre nossa biodiversidade e para o desenvolvimento econômico e social?
Ennio Candotti – É muito importante. Ele deve ser estudado, mas quem deve estudá-lo, antes de tudo, são os próprios jovens indígenas, os jovens das famílias, dos ambientes. Na minha opinião, o esforço grande que podemos fazer é para que as comunidades tradicionais ganhem o quanto antes aquilo a que chamamos de seus intelectuais orgânicos. Intelectuais que representem os interesses, a história social dessas comunidades.
Dessa forma seria mais fácil, inclusive, garantir a essas comunidades os benefícios econômicos associados aos conhecimentos tradicionais que elas detêm.
Ennio Candotti – Claro. Aí se pode negociar, discutir. Há interesses e eles devem ser protegidos. Qual a melhor maneira de protegê-los? Fazer com que essa gente tenha pessoas que possam aproveitar, transformar seus conhecimentos em riquezas. Por isso, em torno dessas questões, há necessidade de pessoas com capacidade de discutir, avaliar, negociar. No meu entender, devemos acelerar, e muito, um projeto de vinte anos: a formação de jovens dessas comunidades para transformar seus conhecimentos em conhecimentos defensáveis, dando posses às próprias comunidades desses conhecimentos.
Há diversas substâncias de nossa fauna e flora já patenteadas no exterior – venenos de cobras, secreções de sapos, anticoncepcionais extraídos de sementes e até o cupuaçu – por agentes de países que avaliam poder ser patenteado o melhoramento de substâncias da natureza. Como o país deve reagir diante disso?
Ennio Candotti – A meu ver, deveríamos exportar pessoas como o Cláudio Fonteles – esse subprocurador da República que tem questionado as pesquisas com células-tronco (risos). Ou seja, não há jeito, temos de chegar antes. Temos de desenvolver pesquisa. Proibindo não acontece absolutamente nada.
Por que as gestões Eduardo Campos e Sérgio Resende à frente do MCT gozam de tão boa aceitação na comunidade científica brasileira?
Ennio Candotti – Porque foram mais cuidadosos na busca de conselhos. Acercaram-se de equipes mais bem posicionadas para preparar as políticas de governo. E evitaram bravatas, evitaram conflitos desnecessários. Não tinham um ranço de hostilidade com a comunidade científica – próprio a quem desconhece as dificuldades que se apresentam. Sente-se que em um mundo onde falta gente há desemprego de quadros pós-graduados. Se alguém diz “não, não vou mais investir em formação de gente, porque formo uma elite alienada que não contribui para o nosso desenvolvimento”, está por fora. Não é por aí. Precisamos juntar coisa com coisa e fazer com que nossos jovens cada vez mais se formem em áreas estratégicas e essas áreas sejam cada vez mais úteis ao desenvolvimento nacional. E essa não é uma equação que se resolve atacando por dentro a comunidade, dizendo “vocês são alienados”. Os cientistas são aquilo que são. Eles devem fazer bem o que sabem fazer. É como pedir a um bom matemático para desenhar casas populares. Para fazermos casas populares precisamos de bons matemáticos que façam bem a sua matemática. Nisso, sim, devemos ser exigentes. E arquitetos criteriosos e conscientes para desenhar as casas populares.
É correta a prioridade conferida no Governo Lula à inovação, à realização de pesquisa e desenvolvimento tecnológico experimental na própria empresa?
Ennio Candotti – Sim, isso é muito bom, mas não é exatamente uma “prioridade”. Trata-se de uma nova leitura do mundo, que resulta em um incentivo ao espírito empreendedor, a pensar, a inovar, a encontrar soluções adequadas aos problemas. Hoje já não basta explorar o usual; é preciso encontrar caminhos novos para aproveitar a enorme variedade de instrumentos oferecidos. Para mim a inovação é uma decorrência da multiplicação por mil dos instrumentos de trabalho, com a informática e as novas tecnologias. Ou seja, antes nós tínhamos a alavanca, a roda e a cunha para trabalhar. Agora temos mil outros instrumentos, que fortalecem a capacidade de pensar e raciocinar, como o computador. Temos materiais muito resistentes, entendemos muito melhor o ambiente em que estamos, mas ainda não conseguimos aplicar todas essas vantagens à evolução de nossa sociedade, a capacidade de oferecer meios de sobrevivência a todos. Demos passos imensos na produção de alimentos e os alimentos ainda são monopolizados por interesses particularistas. E aí ficam discutindo se devemos proibir ou não os transgênicos. Hoje se faz uma batalha imensa contra os transgênicos, quando se deveria fazer uma batalha contra as multinacionais que monopolizam as sementes de transgênicos. No dia em que fizermos um transgênico, como se diz, “do bem”, uma insulina artificial, por exemplo, cancelaremos essas técnicas porque são transgênicas e não naturais? Isso é meio patético. Estou absolutamente de acordo com o fato de algumas soluções transgênicas terem sido inventadas para aumentar o controle sobre as sementes, monopolizando a produção de alimentos. Combatamos isso, sem dúvida. Mas não devemos confundir isso com criar um mito de que os inimigos são os transgênicos. Os inimigos são as formas como se criou esse tipo de produto.
Como a SBPC recebeu o anúncio das recentes mudanças na estrutura do MCT e nas autarquias a ele vinculadas?
Ennio Candotti – Conheço boa parte das pessoas e, aparentemente, não há grandes mudanças. Apenas uma troca de quadros. Não vejo nenhuma revolução à vista.
Fabio Palácio de Azevedo é jornalista, mestre em comunicação e semiótica pela PUC-SP e presidente do Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ). Maria Luiza Rangel é filósofa e presidente da Associação Nacional dos Pós-graduandos (ANPG).
EDIÇÃO 90, JUN/JUL, 2007, PÁGINAS 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21