Registro crítico ao legado de Miguel Reale
Miguel Reale é personagem ativa na conceituação de “direito brasileiro”, tanto por sua construção e por sua produção de idéias e consecuções de idéias jurídicas na vida do país, quanto por seu oposto via reprodução de idéias “universais” às quais deveria se moldar a vida brasileira.
Reale criticou Hans Kelsen e protagonizou a elaboração do “Novo” Código Civil. Nos dois grandes legados ele também teve papel contraditório. Na crítica a Kelsen há uma identidade germinal entre ambos. O Novo Código Civil, embora apresente a sistematização das novas formas de comportamento social, mantém os fundamentos teóricos da conservadora estrutura de monopolização da propriedade e da riqueza – agora em sua face financeirizada. Não por acaso ele foi sancionado nos últimos momentos do governo de Fernando Henrique Cardoso, a quem Reale apoiava.
Reale é personagem do caminho da “modernização conservadora”, como alguns autores caracterizam o processo de condução das elites? Talvez sim, pois Reale não chega ao locus do debate sobre rupturas. Mesmo a idéia de “rupturas incompletas” é demasiadamente avançada para incorporar as idéias e a ação de Reale. Assim, podemos situar sua elaboração no campo conservador – mas em diálogo com parcelas do pensamento avançado.
Reale pode ser entendido como uma expressão das elites paulistas no século XX, que fizeram a contra-revolução antinacional de 1932 (a chamada “revolução” constitucionalista). Sua trajetória política começa com a militância no integralismo, atinge o ápice na ação política durante o regime militar de 1964 e termina como sumidade na colaboração com a gestão de Fernando Henrique Cardoso. Mesmo no final da vida escreveu em defesa do intelectual Plínio Salgado. Na fase autoritária sob o Regime Militar do qual fora militante atuou como reitor da USP (Universidade de São Paulo).
Mas a grande herança de Miguel Reale é sua Filosofia do direito – cuja expressão máxima é a Teoria Tridimensional do Direito. Aqui ele fez e continua a fazer escola. Partindo de uma crítica ao normativismo kelseniano, ele abre espaço para uma determinada abordagem dialética, histórica e sociológica da norma jurídica, ampliando assim os horizontes do direito. Usamos a palavra “determinada” porque se diferencia de outras abordagens dialéticas, em especial a do campo hegeliano e marxista.
A dialética pré-hegeliana de Reale sempre teve a preocupação de evitar a idéia de contradição e a resolução do conflito por uma das partes em questão.
Assim, em todo o legado realeano há essa somatória de contradições e contrariedades a serem analisadas.
Trajetória teórica
Miguel Reale, em “Minha trajetória filosófica” – texto anexo ao livro Miguel Reale na UnB (1), que reúne conferências e debates do seminário realizado em 1981 na Universidade de Brasília –, descreve seu percurso teórico:
“Convenci-me de que, se o retorno a Kant tivera o mérito de repropor o problema da "subjetividade transcendental", não oferecia, porém, base segura para mais adequada compreensão do papel da subjetividade no mundo dos valores e da história, os quais se correlacionam essencialmente com a consciência, ou o "espírito subjetivo", mas não podem ser reduzidos a ela. (…) Pareceu-me indispensável superar a fratura aberta entre causalidade e liberdade, e, por via de conseqüência, entre epistemologia e ontologia, atendendo, nesse ponto, às reformulações feitas por E. Husserl e seus continuadores”. (UnB, 1961: p. 161)
Segundo ele descreve, do neokantismo à fenomenologia de Husserl muitos problemas e autores foram analisados (o que, obviamente, não dá para reproduzir neste espaço).
Reale, então, dá um grande salto em relação aos limites à influência de Kelsen:
“O primeiro resultado dessa nova compreensão do processo cultural deu-se nos domínios da experiência jurídica, onde desenvolvi a denominada "teoria tridimensional do direito", a qual se caracteriza pela demonstração de que a norma jurídica não se reduz a uma simples proposição lógica, não obstante o seu aspecto formal. A bem ver, toda regra de direito representa uma integração contínua de fatos sociais e valores, correlacionados segundo estruturas sempre sujeitas a supervenientes mutações históricas”. (Idem, ibidem: p. 162)
Assim, desenvolve-se uma escola de direito “tridimensionalista” que, superando o estrito enfoque da norma, incorpora o fato e os valores alargando o horizonte e as perspectivas de compreensão da ciência jurídica. Aspectos históricos e dialéticos passam a ser discutidos no estudo do direito – o que, por um ângulo progressista, tornou-se um grande avanço.
Para Reale:
“O homem, penso eu, é, em si mesmo, um ser histórico porque conhece e é capaz de conhecer, mesmo porque ele não conhece porque quer, mas sim porque não pode deixar de conhecer e de "tornar objetivo", independente dele, o produto de seu próprio conhecimento”. (Idem: p. 162)
Ainda segundo ele:
“Resultou dessa meditação a necessidade de reexaminar o problema dialético, em geral objeto de estudo apenas à luz dos enfoques hegeliano ou marxista”. (Idem: p. 161)
Porém, Reale deixa claro qual a sua apropriação desses elementos, demarcando campo com os seguidores de Hegel e Marx:
“Prefiro antes um "pluralismo de perspectivas" que nos leve a uma dialética de complementaridade. Esta se caracteriza pelo reconhecimento de que o processo histórico-cultural não se desenvolve segundo progressivas sínteses superadoras de contrários e contraditórios, mas sim através de "sínteses abertas", formadas pela co-implicação de elementos que só podem ser compreendidos em sua mútua correlação, sem que um deles seja reduzido ao outro. A "dialética dos opostos", de tipo hegeliano ou marxista, representaria, assim, uma das formas possíveis da "dialética de complementaridade", desde que não se pretenda alcançar uma absurda síntese de termos contraditórios”. (Idem: p. 164)
É normal essa diferenciação, afinal Reale se propôs a desenvolver um conhecimento voltado para a ação, mas sob a ótica dos interesses conservadores da elite paulista. Ele surge na cena como militante do integralismo e se afirma politicamente como “conspirador-revolucionário” (autodenominado por ele, Idem: p. 141) do golpe militar de 1964, período em que foi secretário de Estado paulista e reitor da USP.
Por ele mesmo
Em Miguel Reale na UnB há ainda um capítulo denominado “Miguel Reale por ele mesmo”, em que o importante filósofo do direito paulista discorre sobre sua vida, experiência e obra.
A certa altura, após rememorar suas primeiras décadas de vivência que corresponderiam a uma primeira fase de sua vida e obra, ele aborda o contexto de seus aprendizados e elaborações que desembocaram na teoria tridimensional do direito. Percurso em que Reale foi
“(…) desenvolvendo estudos que, aos poucos, iriam me levar ao superamento do neokantismo. Minha Filosofia do direito, publicada em 1953, já consubstancia essa mudança, com o delineamento de uma teoria histórico-axiológica da cultura, fundada nos pressupostos de uma posição epistemológica que denominei ontognoseologia: eram caminhos paralelos, através dos quais dava um sentido dialético e mais pronunciadamente axiológico às idéias de Husserl, Hartmann e Scheler”. (Idem: pp. 137-8)
Para Reale, a elaboração filosófica deve ter significado prático para o advogado ou o juiz. Isso também se aplica à teoria tridimensional:
“A filosofia do direito, para ser válida, precisa conter uma mensagem, algo de significativo para o homem que labuta no Foro, trabalha nas consultorias ou participa dos planos da administração pública ou privada. Está no âmago da teoria tridimensional do direito essa constante preocupação pelas aspirações sociais, pelos fatos e valores que devem se integrar na unidade harmônica da norma jurídica”. (Idem: p. 139)
A partir dessas duas citações, observamos os pressupostos racionais e possíveis aplicações do processo de gestação da teoria tridimensional. Adiante, o grande mestre de recentes gerações inteiras de operadores jurídicos apresenta momentos de desenvolvimento e suas teorizações, em que parte de determinados referenciais, mas a eles acrescentando elementos próprios:
“Como lembrei, houve uma fase de meu pensamento, a segunda em que passei, de certo modo, de Kant a Husserl. Mas não recebi as diretrizes fenomenológicas sem as submeter a uma revisão crítica, acorde com o que já adquirira através do "historicismo axiológico". Por tais motivos, não me conformei com o sentido estático da filosofia fenomenológica. Procurei dialetizá-la e, posteriormente, com grande surpresa e alegria, ao ler a obra póstuma de Husserl, A crise da ciência européia e a filosofia fenomenológica, eu verifiquei que ele, na última fase da sua vida, também tinha chegado a uma posição paralela, reconhecendo a certa carência de historicidade de sua obra. Foi a melhor resposta a certos críticos que haviam declarado incompatível com a fenomenologia husserliana qualquer reflexão de tipo histórico ou dialético”. (Idem: p. 140)
Ele continua:
“Da mesma forma, dissenti de outros mestres da fenomenologia, Max Scheler e Nicolai Hartmann, no que se refere à sua concepção de valores, por ambos considerados espécies de objetos ideais. Uma de minhas possíveis contribuições à axiologia consiste, ao contrário, na consideração dos valores como objetos autônomos, distintos dos objetos ideais, por não serem expressões do ser (sein) mas sim do dever ser (sollen) (…)”. (Idem)
Na seqüência ele registra que em sua trajetória:
“Essa colocação do problema iria conduzir-me a uma terceira fase, correspondente, no plano jurídico, a meu livro O direito como experiência, de 1968, e, no plano da filosofia geral, àquela que talvez seja a minha obra maior, Experiência e cultura, de 1977. Na primeira desenvolvo a teoria dos modelos jurídicos, e, na segunda, procuro sistematizar meus pensamentos, visando a fundar uma teoria geral da experiência. Projeção imediata desse livro é o que publiquei em 1980, sob o titulo de O homem e seus horizontes”. (Idem)
Assim, em poucas linhas, procuramos expor algumas idéias sobre a obra de Reale, tendo por referência o que ele disse e escreveu diante de seu próprio público, no seminário de 1981 na UnB. Claro, de lá para cá diversos elementos enriqueceram sua obra, mas consideramos o aqui exposto como uma boa referência inicial.
Nosso objetivo foi preparar terreno para adentrarmos especificamente à teoria tridimensional do direito, seu detalhamento e repercussões. Nesse percurso tentaremos ressaltar nossa concordância com aspectos dessa teoria, notadamente a superação do kelsenianismo. Mas também seria necessário desenvolver uma síntese própria com duplo enfoque – um, com base numa tentativa de desenvolvimento dentro de seus próprios parâmetros e, outro, procurando criticá-la dentro de parâmetros dialéticos marxistas.
Teoria tridimensional do direito
Em “Fundação da teoria tridimensional do direito”, prefácio à terceira edição de Fundamentos do direito (2) de 1998 – obra escrita originalmente em 1940 para o concurso à docência na USP –, Miguel Reale registra a gênese, descreve as fases de desenvolvimento posterior de sua teoria e as obras de referência correlatas.
“Em minha tese de concurso já estavam fixados, penso eu, os alicerces do que viria a ser o tridimensionalismo (…)”. (Reale, 1998: p. vii)
Reale contextualiza o debate original de suas elaborações:
“De início, o meu problema mais preocupante era o de superar a dominante contraposição vigente entre "ser" e "dever ser", ou no caso particular do direito, o divórcio entre a realidade jurídica e o mundo dos valores e dos fins. Explica-se, assim, o fato de ainda não usar o termo "tridimensionalidade", falando em "bidimensionalidade do direito", tanto em Fundamentos do direito como em Teoria do direito e do Estado, obra publicada no mesmo ano [1940] (…)”. (Idem, ibidem: p. viii)
Ele afirma que em tais obras o tridimensionalismo já estava claramente conceituado. Para Reale:
“O que importa, porém, não são as palavras, mas os conceitos ou as idéias, tal como resulta dos seguintes tópicos extraídos da edição originária de Fundamentos do direito:
"O direito é uma ordem de fatos integrada em uma ordem de valores".
"O direito não é puro fato, nem pura norma, mas é o fato social na forma que lhe dá uma norma racionalmente promulgada por uma autoridade competente segundo uma ordem de valores".
"(…) é na própria ordem jurídica positiva, que podemos encontrar a integração (note-se) fato-valor-norma, à qual corresponde esta outra: eficácia social, validade ética, validade tecnico-jurídica"”. (Idem: p. ix)
Reale comenta um elemento importante para o entendimento de sua concepção de valor, parecendo justificar o motivo de diversos intérpretes o definirem como seguidor do culturalismo:
“(…) já situo a questão no âmbito do culturalismo jurídico, referindo-me à pessoa humana como "valor fonte" de todos os valores, salientando, por isso, a existência de "constantes axiológicas" (hoje, digo "invariantes") de origem histórica, mas que valem "como se" (als ob) fossem inatas”. (Idem: p. ix)
Seria esse o estágio de elaboração inicial da teoria tridimensional por Reale. A seguir ele descreve um importante passo adiante na sua consolidação, cujo marco na década de 1950 é a obra Filosofia do direito:
“O que faltava para se constituir definitivamente uma teoria, ou seja, um sistema de idéias mestras de valor teórico e prático, era a compreensão dialética de fato, valor e norma como elementos ou fatores complementares, bem como o entendimento do valor como um "ens a se", e não como espécie de entes ou "objetos ideais", conforme tese então dominante, seguida até mesmo de Max Scheler e Nicolai Hartmann. A meu ver, ao contrário, o valor é uma expressão autônoma do "dever ser" (sollen) tal como sustentado desde a 1ª edição de minha Filosofia do direito, que é de 1953, com a qual o tridimensionalismo adquire mais consistência”. (Idem: p. x)
Na seqüência, no mesmo prefácio de 1998, o eminente pensador paulista nomeia o momento e obras que servem de referência para entendermos o estágio superior de desenvolvimento de suas idéias e da sua teoria tridimensional:
“Por fim, a terceira fase no desenvolvimento da teoria tridimensional começou em 1968, com meus livros básicos, O direito como experiência e Teoria tridimensional do direito, nos quais dou mais concretitude a meu pensamento, estabelecendo uma correlação essencial entre fontes e modelos do direito, titulo de um de meus mais recentes trabalhos (1994)”. (Idem: p. x)
Ele, então, aponta os saltos que caracterizam sua compreensão de dialética como dialética de complementaridade, basilares à formatação definitiva de sua teoria:
“Verifica-se, à luz do exposto, que as modificações introduzidas na teoria tridimensional do direito, tal como fora configurada na 1ª edição do presente livro [Fundamentos do direito], resultaram de novas colocações de ordem geral, no tocante ao conceito do valor como objeto do "dever ser" (sollen) e não do "ser" (sein) e, quase que concomitantemente, a adoção da dialética de complementaridade como a mais adequada a explicar a correlação integrante existente entre fato, valor e norma. Daí a conseqüente visão do direito como experiência, em função e em razão de suas fontes e modelos”. (Idem: p. x)
Seriam então esses os momentos descritos por Reale para resumir a trajetória da teoria tridimensional conforme sua própria visão. Trabalharemos a seguir os elementos internos desta teoria (fato, valor e norma), procurando elementos de confluência e divergência com esse autor – com destaque ao conceito de valor.
Reale versus Kelsen?
A obra de Miguel Reale apresenta aspectos continuadores e, concomitantemente, críticos à de Hans Kelsen. Podemos falar, assim, de um desenvolvimento crítico para expressar a relação entre ambos.
É crítico no sentido de que Reale procura realmente criticar a concepção originária (o neokantismo) e a vertente como escola jurídica (a Escola de Marburgo e a obra da Stammler) de Kelsen, como fica claro em sua primeira grande referência aqui já trabalhada: o livro Fundamentos do direito. Nele, Reale caracteriza o surgimento do pensamento de Kelsen:
“(…) a sua doutrina, em suma, brota do seio da ciência jurídica positiva, no momento em que esta, atingindo o ponto extremo da generalidade conceitual e da abstração sistemática, exige uma revisão de pressupostos metódicos”. (Reale, 1998: p. 151)
Adiante Reale define:
“Kelsen é kantista, mas kantista especialmente quanto ao método, pois se algo distingue ele e a seus companheiros da Escola de Viena é a preocupação da pureza metodológica como condição primeira de uma verdadeira e autônoma ciência do direito”. (Idem, ibidem: p. 152)
E diz:
“(…) Kelsen declara que o direito, entendido como direito positivo, pertence todo ao domínio do dever ser como produto normativo. O direito exprime, assim, um dever ser que vale por si, não envolvendo nenhuma forma concreta de comportamento, nenhuma orientação prática de conduta. É em suma, lógica, mas não eticamente finalista”. (Idem, ibidem: pp. 153-4)
Então Reale busca reforço à sua crítica, citando Recansés Siches:
“A teoria jurídica de Kelsen toma como paradigma a doutrina geral do direito a Crítica da razão pura de Kant; e o método jurídico forma uma parelha homóloga com o método transcendental. Assim como para Kant o sujeito (a forma do conhecimento) produz ou determina o objeto, para Kelsen o conhecimento normativo produz ou determina o direito ou o Estado. Destarte Estado e direito aparecem como produtos da construção jurídica, como resultado do método jurídico”. (Idem, ibidem: p. 162)
Mas, concomitantemente à crítica, a elaboração realeana é também desenvolvimento em relação a Hans Kelsen, uma vez que Reale se situa no mesmo parâmetro liberal-burguês de Kelsen – havendo, portanto, uma continuidade. Embora com diferenciações, Kelsen e Reale compartilham um núcleo comum na concepção de Estado (o Estado burguês) e o direito como forma jurídica (o direito sob o sistema capitalista). Compartilham uma visão comum de sociedade, sob o prisma de classe e de Estado (mesmo com algumas contrariedades), e do direito situado em estados cujo desenvolvimento se deu de forma tardia, mantendo as estruturas conservadoras da riqueza e da propriedade (caso do Império Austro-Húngaro e Alemanha, ambiente de Kelsen, e do Brasil, de Reale). Assim, sob esse aspecto não há ruptura no paradigma de conhecimento – (concebendo-se paradigma e ruptura na obra de Kuhn, Estrutura das revoluções científicas) (3) – entre as elaborações do filósofo paulista e a sua matriz germânica. Ou seja, não há contradição ou revolução no sentido dialético entre as elaborações teóricas de ambos.
Ainda em Fundamentos do direito, Reale aponta elementos comuns com Kelsen, mesmo na noção de ciência do direito, demarcando com as interpretações mais abrangentes do direito:
“(…) queremos pôr em relevo o fundo de verdade que se contém na doutrina de Kelsen, que deve ser escoimada de seus exageros, mas não deve ser perdida de vista ante toda ameaça de redução da ciência do direito a um capítulo da sociologia”. (Idem, ibidem: p. 135)
E mesmo na concepção de norma jurídica há intersecção, uma vez que, enquanto essência e conteúdo da norma, ambos se fundem na compreensão dela como elemento da forma jurídica – a norma como elemento-chave do direito sob o capitalismo, que deve ser garantida pelo Estado (com este sendo eternamente capitalista, portanto a-histórico). A essência e o conteúdo da norma jurídica de ambos envolvem a universalização dos valores de troca. Sua diferenciação se dá no lidar com sua aparência fenomênica.
Mas dentro desse parâmetro de desenvolvimento e seus limites, Miguel Reale vai muito além do formalismo jurídico kelseniano ao desenvolver a teoria tridimensional do direito e ao apresentar diferenciações e acréscimos significativos nas concepções de fato, valor e norma, bem como na relação entre esses elementos.
Em Lições preliminares de direito (4), de 1973, Reale afirma:
“Nas últimas quatro décadas o problema da tridimensionalidade do direito tem sido objeto de estudos sistemáticos, até culminar numa teoria, à que penso ter dado uma feição nova, sobretudo pela demonstração de que:
a) onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica etc); um valor, que confere determinada significação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor;
b) tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não existem separados um dos outros, mas coexistem numa unidade concreta;
c) mais ainda, esses elementos ou fatores não só se exigem reciprocamente, mas atuam como elos de um processo (o direito é uma realidade histórico-cultural) de tal modo que a vida do direito resulta da interação dinâmica e dialética dos três elementos que a integram”. (Reale, 1996: p. 65)
Nessa relação entre fato, valor e norma Reale conclui pela dialética de complementaridade, caracteriza pelas sínteses abertas – diferenciando-a da dialética hegeliana e marxista que, segundo ele, teria o defeito de acentuar a resolução por um dos lados dos opostos contraditórios. Nessa questão, a dialética de Reale pouco se diferencia das concepções de Kant, optando pelas antinomias no lugar de contradições.
Podemos afirmar assim que tanto Kelsen como Reale pertencem à vertente kantiana – criticada por Hegel e Marx – e que entre eles há uma continuidade matizada pelas diferenças de contextos concretos que os envolveu.
Para finalizar, consideramos a teoria tridimensional de Reale como um referencial a ser criticado, mas também a ser desenvolvido pelas novas gerações de estudiosos do direito. E para este fim, a dialética hegeliano-marxista, ao contrário do que afirmou o ilustre teórico paulista, tem papel fundamental, porque pode ajudar a evidenciar os limites metodológicos, histórico-concretos e também de classe do legado de Miguel Reale.
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Edvar Luiz Bonotto é doutor em direito (filosofia do direito e do Estado) pela PUC-SP.
Notas
(1) UnB. Miguel Reale na UnB: conferências e comentários de um seminário realizado de 9 a 12 de junho de 1981. Brasília: Editora UnB, 1981.
(2) REALE, Miguel. “Fundamentos do direito” (3ª ed). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
(3) KUHN, T. S. Estrutura das revoluções científicas, 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.
(4) REALE, M. Lições preliminares de direito, 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
EDIÇÃO 86, AGO/SET, 2006, PÁGINAS 72, 73, 74, 75, 76, 77