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Esquerdismo, doença senil dos sectários

9 de agosto de 2023
Altamiro Borges

Reproduzimos artigo de Altamiro Borges publicado na revista Princípios n. 81

Na grave crise política instalada no Brasil há cinco meses, os campos estão cada vez mais delimitados e a polarização se exacerba. Num pólo, as forças democráticas e populares que apóiam o governo Lula e que, mesmo criticando seus equívocos e contradições, enxergam nesta experiência sui generis a chance de o país superar o cancro do neoliberalismo. No outro lado, o bloco liberal-conservador que, derrotado na sucessão em 2002, agora investe sujo para retornar ao governo e para impor uma vingança maligna às forças populares que ousaram apeá-lo do poder. Ele almeja, de forma hipócrita e golpista, ver-se “livre desta raça pelos próximos 30 anos”, segundo a confissão fascistóide e racista do banqueiro Jorge Bornhausen, presidente do PFL.

No meio desse fogo cruzado, dois partidos procuram se firmar como “a autêntica” oposição de esquerda — o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), organizado em 1992, e o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que obteve seu registro legal em setembro último. Apesar da tímida diferença com a oposição liberal-conservadora, na prática, ambas organizações concentram sua artilharia contra o governo Lula e fazem de tudo para fustiga-lo em cada batalha. Elas gastam bem mais energias, recursos e verves nesta oposição inflexível do que na crítica às manobras sorrateiras da direita. Não é para menos que a mídia burguesa, sob o controle de nove famílias, tem dado generosos espaços para estes agrupamentos!

A recente eleição para a presidência da Câmara Federal evidenciou gritantes contradições dessa “tática”. Enquanto o bloco liberal-conservador se unificou em torno do candidato do PFL e o prefeito de São Paulo e presidenciável tucano, José Serra, chegou a liberar dois secretários para votar , o PSOL orientou seus deputados a se absterem; já o PSTU repetiu o slogan “Fora Todos”. A apertada vitória do deputado Aldo Rebelo (PCdoB/SP), que conteve a sanha direitista pelo impeachment do presidente, talvez até tenha sido motivo de tristeza para alguns que padecem há tempos do esquerdismo, a doença senil dos sectários! Partidários do quanto pior, melhor, eles lamentaram o adiamento da “revolução”… ou da próxima eleição.

Enquanto o bloco PSDB-PFL lidera a oposição de direita ao governo Lula, pregando o seu “sangramento” ou “morte prematura”, PSTU e PSOL encabeçam uma agressiva campanha “de esquerda” com o mesmo intento. Eles até já se uniram em atos de rua com este objetivo, sempre com o alarde da mídia. A oposição é intransigente, sem perdão. Para o PSTU, agora é a hora de “pôr para fora este governo, este Congresso, o PT e a oposição burguesa. Fora Todos! Uma alternativa real para este país só virá com um novo tipo de governo e regime, com uma revolução socialista” . Já o PSOL propões um mecanismo institucional para derrotar o governo Lula. Defende a “convocação de um plebiscito nacional para que o povo decida pela antecipação ou não das eleições de 2006. A posição do PSOL é pelas antecipações das eleições” .

Posição principista

Em linhas gerais, PSTU e PSOL têm avaliações similares sobre a natureza do governo Lula e a correlação de forças no Brasil e no mundo. Entretanto, divergem sobre a tática, a estratégia e a forma de organização partidária. Tanto que os dois partidos desenvolvem verdadeira guerra fratricida na disputa pela liderança da chamada “oposição de esquerda”. Nesta refrega, sobram discursos radicalizados. Mas, como já ensinou Vladimir Ilitch Lênin, “a fraseologia revolucionária é a repetição de palavras de ordem sem relação com as circunstâncias objetivas, ao sabor dos últimos acontecimentos… Palavras de ordem excelentes, que arrastam e embriagam, mas desprovidas de base sólida, tal é a essência da fraseologia revolucionária”

No caso do PSTU, a oposição frontal ao presidente Lula se manifestou antes mesmo de este tomar posse. Já em novembro de 2002, num libelo principista, Mariúcha Fontana, editora do jornal deste partido, anteviu: “O governo Lula, por suas alianças e programa, será um governo burguês de submissão ao imperialismo”. Ela também não poupou o PT, que ainda abrigava os futuros idealizadores do PSOL. “Antes de chegar ao governo central, o PT já era um obstáculo para uma ruptura das massas com a recolonização imperialista, a exploração e a institucionalidade burguesa. Hoje, no governo central, o partido sofreu uma mudança de qualidade: passou a ser o agente direto da aplicação do projeto burguês e imperialista no país” .

Desde o início, o PSTU apostou todas as suas fichas no rápido desgaste do governo Lula, na súbita ascensão do movimento de massas e, lógico, no seu crescimento. Chegou a teorizar que, da mesma forma como os metalúrgicos do ABC paulista foram responsáveis pela retomada da onda grevista e pela criação do PT e da CUT, o funcionalismo público seria a vanguarda de um novo ascenso revolucionário que, como efeito, desaguaria no PSTU. A partir deste “otimismo voluntarista”, ele fez de tudo para demarcar campos no interior das esquerdas, visando principalmente estimular fraturas no PT. Nem mesmo o MST, reconhecido por sua capacidade de mobilização social, foi poupado das ácidas críticas . O ápice desta demarcação hostil se deu com a criação da Conlutas, numa ação tresloucada de divisão do sindicalismo brasileiro .

A tática de “forjar um partido revolucionário de massas alternativo ao PT”, porém, não deu os resultados almejados. Os primeiros dissidentes petistas, que se rebelaram no triste processo de votação da regressiva reforma da Previdência, optaram por criar um partido próprio, num encontro realizado em junho de 2004, e decidiram excluir o PSTU, tachando-o de “seita sectária” adepta de uma organização “fossilizada, rígida e cristalizada” . Para piorar, algumas lideranças do funcionalismo aderiram ao novo partido e o PSTU ainda perdeu vários quadros, inclusive de sua direção. O projeto de eleger a senadora Heloísa Helena em 2006 parecia mais exeqüível e sedutor! As diferenças táticas e organizativas se tornaram abissais.

Diante do fiasco da iniciativa e dos estragos na sua base, o PSTU voltou as baterias contra o PSOL. De possíveis aliados, os dissidentes petistas viraram inimigos figadais. Eduardo Almeida, um dos ideólogos da organização, não se cansa de rotular o novo partido de reformista, “sem opção programática de ruptura anticapitalista”, e eleitoreiro, “a serviço da candidatura de Heloísa Helena” . José Maria de Almeida, presidente do PSTU, também critica a cópia do modelo petista de organização com base nas tendências. “A única liberdade é a dos dirigentes, parlamentares e figurões para fazer o que bem entendem, enquanto a base é chamada para fazer campanha eleitoral a cada dois anos” .

Pretensões eleitorais

Diferentemente do PSTU, que é uma organização ultracentralizada, o PSOL é quase um partido frentista. No seu interior convivem , nem sempre harmoniosamente, umas dez correntes. Na sua executiva nacional provisória — composta por 15 integrantes —, ao menos oito deles já tiveram ligação com a mesma matriz do PSTU — a Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT), criada em 1982 pelo trotskista argentino Nahuel Moreno. Com dupla militância, atuam no Movimento de Esquerda Socialista (MÊS), da deputada Luciana Genro, na Corrente Socialista dos Trabalhadores (CST), do deputado Babá, no Movimento Terra, Trabalho de Liberdade (MTL) e no Socialismo e Liberdade (SOL) — o mais recente agrupamento a deixar o PSTU.

Repetindo a controversa experiência do PT, do partido de tendências, o PSOL reúne desde intelectuais adeptos da luta processual pela hegemonia na sociedade, como os gramscianos Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, até seitas trotskistas ultraesquerdistas. “Dentro do partido temos setores que se declaram reformistas e outros que se declaram revolucionários”, explicou Luciana Genro ao Correio da Cidadania. Já no encerramento do prazo eleitoral para trocas de partidos, em 30 de setembro, o PSOL ainda recebeu cinco deputados federais e outras vertentes frustradas com o Processo de Eleições Diretas (PED) do PT.

Para evitar traumas, sua executiva nacional decidiu flexibilizar o estatuto, inventando uma tal de “filiação democrática” que permite aos novos integrantes não seguirem automaticamente as decisões partidárias. “O PSOL deixou claro que programa, estatuto e manifesto são provisórios, para ficar mais flexíveis para o ingresso de pessoas que queiram discutir a nova agremiação. É uma filiação generosa que nos ofereceram, sem que isto implique desde já um compromisso definitivo, porque nem eles têm cristalizadas as suas posições”, revelou Plínio de Arruda Sampaio, que ficou em quarto lugar na eleição petista e, logo depois, deixou o partido Tal decisão gerou mal-estar nos filiados que votaram na sua chapa e duras críticas.

Para o teólogo Leonardo Boff, os que saem do partido “agravam a dispersão das forças de esquerda que ficam enfraquecidas como alternativa às forças conservadoras”. Já o sociólogo Emir Sader acusou-os de “tomarem uma decisão eleitoralista, submetendo a sua decisão de saída do PT ao calendário eleitoral, para poder inscrever-se em outra sigla e eventualmente conseguir se reeleger” . E o deputado Raul Pont, candidato ao segundo turno do PED, lamentou a precipitação. “Em vários debates, Plínio disse que apoiaria a candidatura da esquerda no segundo turno. As outras candidaturas desse campo firmaram o mesmo compromisso, caso ele fosse para a disputa. Ao retirar seu nome, ele enfraquece a unidade.”

Em decorrência destes e de outros arranjos, o PSOL tem uma estrutura organizativa bastante frouxa, um programa genérico e uma estratégia difusa. O que garante o amálgama ao novo partido parece ser o projeto eleitoral de 2006, com o açodado lançamento da senadora Heloísa Helena para a Presidência da República. Essa “estranha combinação de ultra-esquerdismo e eleitoralismo” , ainda aposta na adesão de vários petistas desiludidos com o PT e o governo Lula. Enquanto algumas correntes internas mais esquerdistas já sonham em “aproveitar a crise para lutar pela ruptura democrática e anticapitalista” , outras bem mais pragmáticas ficam excitadas com os índices de popularidade de sua presidenciável no Ibope. Apesar das divergências latentes, todas vivem um clímax temporário! Arapuca da direita

O problema é que a burguesia também está atenta e as ilusões de classe costumam ser desastrosas. Por enquanto, o PSOL e mesmo o desidratado PSTU podem servir aos objetivos das elites de satanizar o PT e desgastar o governo. Enquanto o primeiro prega a convocação de um referendo revogatório do mandato do presidente Lula o segundo esbraveja “Fora Todos”, tudo bem; está dentro do script golpista da elite. Nesta hora, como fulmina Emir Sader, a direita eleva “os dissidentes do PT a novos queridinhos da mídia, cedendo-lhes o espaço que negam ao MST, para o ataque ao neoliberalismo e ao capitalismo, contra o imperialismo e suas guerras, bancos e especuladores. E essas pessoas se deixam manipular pela mídia”.

Os que padecem do esquerdismo senil e os antipetistas desiludidos parecem não perceber que a estratégia da direita não se limita a trucidar o PT e a desgastar o governo Lula; ela deseja mesmo é aniquilar toda a esquerda política e social brasileira. Na hora certa, ela tentará colocar no seu devido cantinho os setores que hoje esbanjam a “fraseologia revolucionária” e que investem na construção da chamada “oposição de esquerda”, sem levar em conta a brutal ofensiva do bloco liberal-conservador, a natureza contraditória do governo Lula e a adversa correlação de forças.

Neste rumo, vale sugerir aos companheiros a leitura do editorial de agosto da revista Primeira Leitura, o mais influente e hidrófobo panfleto dos tucanos: “[Heloísa Helena] é o Jair Bolsonaro da esquerda. Só que ele é tratado como débil mental ideológico; ela como pensadora alternativa… Boa parte do que HH diz junta ignorância de causa com bobagem. Com mais rigor do jornalismo, teria uma reputação à altura do desempenho: não é menos folclórica do que o Dr. Enéas… [Mas] quero que ela saia candidata e leve os votos da esquerda — ou sei lá que gente é essa” . O artigo grosseiro deveria, ao menos, servir de alerta para os desiludidos, os inocentes e os sectários.

Notas

Kennedy Alencar. “Intervenção do governo definiu a vitória”. Folha de S.Paulo, 29/09/05
Eduardo Almeida. “Por um governo socialista dos trabalhadores”. Jornal Opinião Socialista, 15/09/05.
“Resolução Política da Executiva Nacional do P-SOL”, 18/08/05.
Vladimir Lênin. Esquerdismo, doença infantil do comunismo. Estampa, Portugal, 1971.
Mariúcha Fontana. “Governo Lula e os desafios da esquerda revolucionária”. Revista Marxismo Vivo, novembro de 2002.
Altamiro Borges. “O governo Lula e a ‘tática’ do PSTU”. Portal Vermelho, 1º/07/03.
Altamiro Borges. “Trotsky, o PSTU e a cisão da CUT”. Revista Espaço Acadêmico, maio de 2005.
Ruy Polly. “O velho sectarismo e o novo partido”; Guilherme Vargues, “Porque um novo partido de esquerda socialista e democrática”; André Ferrari, “Construir um partido de esquerda de massas”; Pedro Fuentes, “Uma respuesta necesaria a ‘um vendaval oportunista recorre el mundo’”.
Eduardo Almeida. “O novo partido velho”, “Sobre reformistas e revolucionários” e “O novo partido, cada vez mais parecido com o PT”. Jornal Opinião Socialista.
José Maria de Almeida. editorial do jornal Opinião Socialista, fevereiro de 2004.
Verena Glass. “Quatro deputados federais, Plínio Sampaio e Hélio Bicudo deixam o PT”. Agência Carta Maior, 26/09/05.
Emir Sader, “O PT morreu? Viva o PT”. Agência Adital, 27/09/05.
Marco Aurélio Weissheimer. “Pont quer novos rumos para o PT”. Agência Carta Maior, 27/09/05.
Emir Sader. “A esquerda e o governo Lula”. Outro Brasil, maio de 2005.
Roberto Robaina e Pedro Fuentes. “Aproveitar a crise para lutar pela ruptura democrática e anticapitalista”. Portal do PSOL.
Reinaldo Azevedo. “HH”. Revista Primeira Leitura, agosto de 2005.

EDIÇÃO 81, OUT/NOV, 2005, PÁGINAS 38, 39, 40, 41