A crise na Bolívia
A origem da atual crise na Bolívia é a disputa pela posse dos hidrocarbonetos e seus benefícios. Tal disputa ocorre entre as transnacionais petrolíferas, seus representantes internacionais e nacionais, seus agentes naturais presentes nos partidos de direita, no parlamento, no governo central e em algumas agrupações empresariais, como a Câmara de Hidrocarbonetos, localizada na cidade de Santa Cruz, seu centro de operações empresariais e políticas. É evidente o que busca a direita: manter os privilégios obtidos por intermédio da lei de capitalização e a de hidrocarbonetos de 1996. Ambas garantem às transnacionais grandes lucros, os quais não estão dispostas a perder – sobretudo quando se sabe que a Bolívia possui recursos hidrocarbonetos descomunais.
À frente de uma luta para acabar com esses privilégios está a esmagadora maioria do povo boliviano, consciente de que essas leis possibilitam o saque de nossa riqueza – às quais há vários anos se suscitou a necessidade de anular, sobretudo com o objetivo de recuperar, para o domínio do Estado e do povo bolivianos, essa imensa riqueza que deveria estar a serviço de um desenvolvimento nacional real e soberano. Essa consciência popular e nacional custou a amadurecer. Em outubro de 2003, o povo chegou à conclusão de que o principal obstáculo para a obtenção da retomada do alienado (privatizado) por obra do neoliberalismo era o próprio governo neoliberal – que precisava ser derrotado e retirado do poder. As massas mobilizadas conseguiram o que parecia impossível: a renúncia e conseqüente fuga de Sánchez de Lozada. Esse movimento começou com a consigna principal “o gás para os bolivianos”. Simultaneamente, foi proposto restabelecer a indústria nacional (a YPFB) com todas as suas capacidades; a industrialização do gás, seu uso no transporte; a indústria; necessidades domésticas e outros. As massas mobilizadas estabeleceram também – como meio para garantir legalmente a mudança da política de hidrocarbonetos – a realização de um referendo popular e da Assembléia Constituinte.
A Insurreição de Outubro não pôde ir adiante na tentativa de conseguir a substituição do presidente de acordo com a sucessão constitucional – alçando ao cargo da primeira magistratura o vice-presidente, parceiro de fórmula de Sánchez de Lozada e chefe do MNR. Esse fato não foi apreciado corretamente pelas agremiações políticas e por vários setores sociais. Alguns depositaram muitas esperanças – e até se iludiram – esperando mudanças reais. Mas essa ingenuidade foi desmantelada pela realização de um referendo desonesto; pelo envio ao parlamento de uma lei que introduzia mudanças superficiais sobre a antiga – que, mesmo assim, não foi promulgada pelo presidente Carlos Mesa.
O parlamento, cuja composição já não refletia nem de longe a correlação de forças na sociedade, por sua vez – além disso, por propiciar um tratamento tortuoso aos projetos de lei, descartando automaticamente, por exemplo, a conhecida “A lei do Povo”, elaborada por procuradores da CODEPANAL e aceita pela COB – acabou aprovando um projeto inócuo para as transnacionais e inútil para uma melhora favorável ao Estado boliviano. Mesmo assim, Mesa negou-se a promulgá-lo, deixando isso a cargo do presidente do Congresso num ato teatral sob suspeita de uma sutil concertação entre estes personagens. Em poucos minutos Carlos Mesa expôs à nação, em suas costumeiras declamações, um plano de “produção e solidariedade”, cujos recursos financeiros, inexistentes até esse momento, não poderiam aparecer, a não ser pelos acessos moderadamente fomentados pela venda do gás. Essa nova farsa de comunicação pretendia dar por encerrado o episódio da luta pela recuperação do gás. Nada mais pretensioso. O povo rapidamente tomou consciência do engodo e declarou aberta uma nova batalha.
Lamentavelmente não existe unidade no campo popular em relação à tática a ser empregue para alcançar o objetivo final, isto é, ao gozo real dessa gigantesca riqueza – ou, o equivalente a isso: nacionalizá-la para benefício do povo e de todo o país. Em atos públicos – como o da praça de San Francisco – em vez de a unidade popular se firmar as diferenças se aprofundaram, mostrando uma diversidade de soluções tal a ponto de abrir a possibilidade de um fracasso nessa atual batalha.
Para alguns, é possível impor ao Congresso a revisão da última lei de hidrocarbonetos e convocar uma Assembléia Constituinte que corrija os erros e supere os males que afligem nossa pátria. Falsa ilusão em relação à atual composição parlamentar. Para outros a Carlos Mesa, fechando o parlamento, uma lei de nacionalização dos hidrocarbonetos. Outra ilusão, tão perigosa quanto a anterior, pois pode transformar a arrogância presidencial em franca ditadura. Outros, ainda, acreditam ser possível tornar presidente um “militar patriota” e estimulam a formação de uma junta cívico-militar que “nacionalizaria os hidrocarbonetos”. Cruel armadilha. Sem negar a existência de personalidades progressistas e patrióticas na instituição castrense é preciso admitir neste momento que se trata de uma minoria pouco significativa e sem influência real sobre o conjunto da instituição. Os dois militares protagonistas das aparições nos meios de comunicação não merecem nenhuma confiança. Sua atitude parecia concertada para provocar ações desordenadas e, assim, justificar a intervenção de organismos repressivos – quando não um golpe de Estado regressivo.
E, ainda, outros concentraram suas energias na renúncia de Mesa e em sua substituição de acordo com a prelação constitucional. Isso significa entregar o poder Executivo a Hormando Vaca Diez, representante direto da oligarquia, conspirador, em cujas mãos cairia a aplicação, sem atenuantes, de todo o programa neoliberal. Não é exagero sinalizar que essa saída seria concertada entre certos círculos do militarismo como uma alternativa mais para devolver o poder completamente aos antigos integrantes das antigas coalizões neoliberais. É evidente a alternativa Vaca Diez com suas manobras do dia 31 de março – o plano da direita política (MNR-MIR) e da direita empresarial cruceña (de Santa Cruz de la Sierra) consiste em obter autonomia departamental a qualquer custo para manter o controle sobre os recursos naturais (gás, petróleo, madeira, água) e a terra. Esse é o motivo de sua oposição à Assembléia Constituinte, cuja antecipação ao referendo departamental é imprescindível caso não se queira violar ainda mais a Constituição atual.
Por fim, alguns dirigentes populares, e até sindicais, acreditam ter chegado a hora da revolução e ser possível impor um governo popular. Outros – nessa mesma linha de pensamento exaltado – defendem a “ditadura do proletariado”, retirando do velho baú bordões trotsquistas ou, alinhados a um indigenismo etnocentrista, propagam consignas que enfraquecem a coesão nacional-patriótica. Sem rodeios esses desvarios ideológicos caem como luvas aos separatistas e reacionários – que preferem dividir da Bolívia a perderem seus privilégios. Não é necessário acrescentar que tais experimentos seriam exterminados pela vulnerabilidade do povo e talvez pela intervenção estrangeira de países vizinhos, sedentos de recursos naturais, sobretudo, energéticos.
Fazemos estas reflexões porque é grande o perigo para nossa pátria. Maior ainda para os trabalhadores do campo e da cidade, para o povo em profundidade – quem mais sofrerá as conseqüências de uma possível derrota do atual movimento. Nossas reflexões procuram demonstra-lhes que os planejamentos táticos, a partir do campo popular são, no geral, equivocados.
Nem este governo nem este parlamento tem condições de acolher nossas exigências e reivindicações.
Somente uma mudança de cenário político, com a convocação antecipada das eleições gerais para presidente, vice-presidente, senador e deputado pode nos dar um fôlego na atual batalha e, ao mesmo tempo, criar um espaço para uma real união das forças populares. Para isso, a condição é a elaboração de uma plataforma de luta com um programa mínimo de governo – à qual não se deverá aderir formalmente. No cumprimento dessa tarefa deverão ser excluídas as tendências caudilistas, o sectarismo e até ambições de grupos.
Devemos ressaltar algo mais: se o inimigo exterior principal é o imperialismo estadunidense, o interno é a oligarquia cruceña. E a estes é que precisamos derrotar e, por isso mesmo, nos solidarizarmos com o povo trabalhador e os povos aborígenes – todos eles explorados e oprimidos – e contribuir para que eles próprios se libertem do domínio oligárquico, da chantagem psicológica e da manipulação midiática.
Finalmente, é urgente tomar todas essas medidas para que o protesto popular – sem perder força ou combatividade – transcorra pelo alicerce da disciplina, isolando e expulsando os provocadores e os elementos de fraude implantados e financiados pelos partidos derrotados em outubro e pelos organismos de repressão e inteligência. Os atos de vandalismo e contra outros trabalhadores ou cidadãos não são atitudes revolucionárias, mas atitudes que desacreditam os movimentos justos e as legítimas reivindicações do povo boliviano multinacional e pluricultural.
O Partido Comunista Boliviano – com sua longa experiência e por seu conhecimento histórico e sua concepção doutrinal científica – acredita na urgência de um reencontro no campo popular para examinar, e concluir, propostas que acabem com a perigosa crise em que vivemos e que passa, repetimos, pela obstinação, por uma recomposição do atual quadro político, mantendo e resgatando a seqüência constitucional por meio de eleições gerais antecipadas. Só depois de estas ratificadas é que se poderá convocar uma Assembléia Constituinte capaz de abordar com legitimidade a questão das autonomias e outras demandas de essencial importância para a Bolívia.
Marcos Domich é secretário do Partido Comunista Boliviano (PCB). Traduzido por Maria Lucília Ruy.
EDIÇÃO 80, AGO/SET, 2005, PÁGINAS 62, 63, 64