A discussão sobre o denominado multiculturalismo abrange um amplo leque de temas candentes da atualidade. Todos importantes e de conteúdos variados. Político, institucional, cultural e ideológico. Portanto, não deve ser subestimado como algo superficial, diletante ou simplesmente uma supérflua tese de alguns acadêmicos.

O cientista social norte-americano Russel Jacoby, em seu livro O fim da Utopia – Política e Cultura na Era da Apatia, dedica um capítulo à questão e refere-se ao tema como o mito do Multiculturalismo. Segundo ele, está em debate não especificamente o pluralismo cultural ou a noção de diversidade. Estas, não são falsas nem contestáveis.

O mundo natural, o físico e o cultural são caracterizados pela diversidade, e esta significa, seja em que sentido se apresente, um avanço da humanidade em relação à uniformidade das coisas.
O problema é que, nos tempos atuais, esse conceito encontra-se intimamente associado à ideologia do mercado como a etapa suprema da sociedade, no sentido do “fim da História”, tal como foi apregoada e desmascarada. O individualismo exacerbado, em contraponto aos objetivos sociais. Além do mais, expressa uma negação das identidades regionais ou mesmo nacional.

Assim, a luta dos trabalhadores, dos povos ou mesmo a soberania das nações, estariam superadas. Ou pelo menos em plano secundário. A solução da humanidade estaria, atualmente, na constituição de uma “segregação civilizada”, cuja ordenação jurídica e normativa encontra-se na chamada “Política Afirmativa”, originária dos EUA. O multiculturalismo avançou na medida em que a luta transformadora regrediu. Esta é uma constatação irrefutável.

Além disso, o recuo é apresentado como um extraordinário avanço. Surgem, em socorro a essa ideologia, “novas” formulações na Antropologia, Sociologia, Economia, História etc. Amparadas em forte apoio da mídia internacional, sob a liderança principal norte-americana.

Cabe alertar, portanto, que o arcabouço da chamada Ação Afirmativa, derivada do multiculturalismo, não é algo simplório. Porque possui raízes no passado, na batalha ideológica contra a questão nacional e o marxismo. Além disso, responde a determinadas aspirações de camadas médias e da elite nos EUA e se disseminou, através de estratos sociais idênticos, por todo o mundo, inclusive nos países em desenvolvimento, possuindo, assim, uma forte base de apoio em segmentos formadores de opinião.
Muitos dos líderes desta “onda”, inclusive no Brasil, passaram por importantes centros universitários dos EUA. Para tanto, basta ler o currículo de vários deles, apresentados em entrevistas caudalosas ou ensaios, na grande imprensa, com intuitos aparentemente despretensiosos ou fortuitos.

São capazes de ignorar solenemente conclusões científicas sem perderem a credibilidade – tal a força com que são empurrados por uma intensa e massiva propaganda, hábil ou mesmo ostensivamente dirigida.

Cabe destacar a influência do economista e filósofo austríaco F. A. Hayek, estabelecido na Inglaterra, autor do célebre livro O Caminho da Servidão, que inspirou as teses fundamentais do neoliberalismo, a defesa do Estado mínimo como o único agente propulsor do desenvolvimento das sociedades.
Não é aleatório, portanto, o fato de que durante os vinte anos em que as teses neoliberais reinaram absolutas, contrastando com a débâcle das primeiras experiências socialistas no mundo, à exceção da China e de alguns poucos países, as chamadas políticas multiculturais ganharam enorme influência e espaço nos governos de linha neoliberal.

No Brasil, os multiculturalistas ascenderam enormemente durante os oito anos do período do presidente Fernando Henrique Cardoso e, apesar de algum declínio no governo Lula, permanecem com espaços consideráveis e orientação doutrinária, em certos Ministérios.

Se, de um lado, os multiculturalistas estão associados ao campo econômico dos liberais da economia contemporânea, na área política, de outro, como conseqüência lógica, aos defensores de uma sociedade pós-moderna, quer dizer, ausentes de qualquer conflito de classes contra classe, ou
mesmo de defesa nacional contra as novas formas de imperialismo.

Trata-se, deste modo, da afirmação de uma visão fragmentada, dispersiva e de estratos sociais, em detrimento dos conceitos de povo, nação e Estado. Nada mais útil e providencial aos que postulam a máxima “dividir para reinar”. Não há acaso. Quer seja na teoria, quer seja na prática social. Em tudo existe um propósito aberto ou subliminar.

Ao combaterem o crime hediondo da discriminação de cor, com justa razão, baseados nas teses multiculturais, retornam, contraditoriamente, às teses do racismo, reacionárias ou mesmo de direita, derrotadas politicamente e cientificamente. Ao expressarem, com justa indignação, qualquer forma de discriminação, o fazem, quando partem através de movimentos multiculturais, em função de espaços de poder, destituídos de projetos política e socialmente mais amplos.

Recente pesquisa realizada na Universidade Federal de Minas Gerais revela que 60% da população branca do Brasil possuí, em sua formação, antepassados negros ou índios. E até os dois ao mesmo tempo.

Mesmo os colonizadores portugueses, ou espanhóis, possuíam uma alta diversidade genética, fruto de muitas invasões e imigrações para aquela região ibérica: celtas, fenícios, gregos, romanos, germanos, visigodos, judeus, árabes e berberes. Uma verdadeira feijoada de povos.

A mesma pesquisa descobriu que populações que habitam regiões adjacentes na Sibéria Central foram os parentes dos nossos ameríndios e para cá vieram através do estreito de Bering. É provável que outros dos nossos ameríndios sejam provenientes de migrações da região andina, como os Caetés de Alagoas e de Pernambuco.

A escravidão, fenômeno econômico, deu-se em todos os continentes da terra, inclusive na África. As diversas formas que caracterizam a discriminação “racial” nos dias atuais incluem manifestações do período escravocrata, transmitidas por círculos familiares pobres, médios e ricos. Provêm da herança colonial e do mito da raça branca. Revelam ódio, frustração, ignorância e o medo da perda de vantagens e prerrogativas sociais.

O caso brasileiro é bem mais complexo, porque aqui se desenvolveu um processo colonizador cuja característica fundamental foi a mestiçagem. Somos uma nação basicamente desses mestiços, o que nos revela a pesquisa da UFMG. Nossa própria cultura tem como traço definidor sua diversidade e ao mesmo tempo sincretismo de várias manifestações antropológicas, principalmente negras, índias e portuguesas.

Frente à política afirmativa, assume dimensão gigantesca o problema da mestiçagem do povo brasileiro. Como situá-los em relação às políticas de cotas, já que representam a esmagadora maioria da população? Brancos que não são brancos, negros que não são negros, índios que não são índios.
Um povo que se constituiu para além da senzala, da casa grande e das tabas diversas. E, por isso, até se tornar a imensa maioria da população do que viria a se constituir alguns séculos depois em Brasil, foi marginalizado porque, como dizia Darcy Ribeiro, era a “ninguémdade”.

Outros estudos publicados pela Universidade Federal do Rio de janeiro revelam um dado mais esclarecedor. Dentro de mais vinte anos, a população brasileira será mais mestiça ainda em conseqüência da intensa reprodução, principalmente nas camadas populares, da mesma mestiçagem. Sendo que ela possuirá a característica de ser cada vez menos “branca”, menos “negra” e, evidentemente, rarefeitamente ameríndia. Possuindo, no entanto, traços genéticos e culturais das três, porque o sangue índio está definitivamente incorporado em nossa formação biológica e cultural. Evidentemente, não me refiro aqui às reservas indígenas ou às escassas – infelizmente e criminosamente –, tribos no meio da floresta, principalmente da amazônica, ainda distantes do contato predador da “civilização” atual.

Mas a discriminação dá-se ainda através de outras maneiras. Os nordestinos são tidos em círculos ignorantes no sul do país como “gente” inferior, pouco inteligente, feita para o trabalho braçal ou outros sem qualificação que exija cultura e quociente intelectual razoável.
Desconhecem, portanto, o berço da civilização econômica e cultural daquilo que veio a se tornar posteriormente brasilidade. A verdade é que no Nordeste foi onde mais se processou a característica da mestiçagem. E mais uma vez o preconceito baseia-se na manutenção do privilégio no mercado de trabalho.

O esdrúxulo, nesta coisa toda, é que os dois últimos presidentes do Brasil possuem a olhos vistos clara mestiçagem. O ex-presidente Fernando Henrique, em seus traços fisionômicos, e o presidente Lula, além disso, de origem operária e nordestina, pernambucana. Qual a diferença então? A ascensão social e o prestígio.

É aqui que reside o problema central e a solução. A necessidade de um projeto nacional soberano, socialmente justo, com distribuição da riqueza e acelerada redução das desigualdades regionais. Para mais de cem milhões de brasileiros. Sem estas premissas, continuarão as discriminações “raciais” e regionais – todas odiosas e merecedoras de punição criminal e repúdio social.

Mas se, ao contrário, decretarmos a instituição das carteiras de identidade com obrigatoriedade da cor do cidadão ou da cidadã, coisa cientificamente impossível de ser comprovada, salvo raras exceções, regrediremos aos tempos do fascismo e do nazismo hitlerista.

Destacaremos uma política de privilégios para minorias habilitadas pelo estudo ou acesso a informações especiais, nas universidades, marginalizaremos a maioria da população mestiça, fomentaremos a “competitividade odiosa” e a “segregação civilizada”. Será o transplante para os trópicos brasileiros de uma cultura puritana, anglo-saxônica, no que delas há de pior.
A importação do lixo cultural. O luxo continuará com eles. E mais, não combateremos as formas de discriminações “raciais” em nosso país e construiremos, com o passar dos tempos, outras manifestações tão nocivas quanto.

Além disso, daremos a réplica ao antropólogo Gobineau e tantos outros derrotados teoricamente e na prática, no início do século vinte, que defendiam a impossibilidade de o Brasil vir a ser uma nação industrializada, tendo em vista a mistura das raças e o clima tropical, impróprios ao desenvolvimento industrial urbano.

Defendiam, para nós, uma malfadada vocação de uma fazenda de dimensões continentais. Para este mal, diziam eles, só há um atenuante, já que o clima e a vegetação exuberante dos nossos trópicos não podiam ser alterados. O persistente “embranquecimento” da “raça” brasileira. A vida mostrou o contrário, somos uma nação industrialmente complexa. Porém, sempre subordinada aos interesses dos colonizadores de ocasião e socialmente, brutalmente desigual.

No entanto, possuímos algo raro, muito raro mesmo. Falamos uma só língua, somo uma nação sem reivindicações separatistas e constituímos um Estado nacional. Vejam a próspera Espanha, só como exemplo, um Estado nacional, constituído por várias nações e línguas, sempre em conflitos, muitas das vezes sangrentos.

Não possuímos, apesar de classes sociais com diferenças econômicas e oportunidades dramaticamente díspares, as castas da Índia. Ali sim, multicultural e milenarmente dividida em etnias “divinamente eleitas” como superiores e outras em escala inferior, e que, aliás, marcha para a soberania econômica e tecnológica, apesar de tudo.

Assim, podemos afirmar que o multiculturalsimo avança na medida em que recuam o ímpeto, a coragem e a necessidade imperiosa de enfrentarmos os nossos graves e seculares problemas econômicos, de soberania e a criminosa exclusão social.

Devemos buscar o caminho brasileiro de desenvolvimento, através das nossas vocações e particularidades, inclusive naturais. Sabermos utilizar como alavanca de auto-estima e mobilização, uma das culturas mais ricas e diversificadas do planeta.

Não impedir, através da imitação barata de outras formações antropológicas, que o potencial de um povo extraordinário, o povo brasileiro, se desenvolva com plena capacidade e inventividade criadora. O problema do brasileiro é que parte de suas elites é aculturada, colonizada e incapaz de pensar um projeto singular, real e factível – harmonioso com as peculiaridades e riquezas do país.
O povo, o povo mesmo, é uno em sua diversidade, inclusive individual. Não há que fragmentá-lo, fracioná-lo em grupos e subgrupos, como uma esquizofrenia imposta à força, para melhor dominá-lo de dentro e fora, imobilizá-lo.

Devemos receber de braços abertos as boas coisas que a humanidade produz, criticamente, incorporando-as ao nosso patrimônio em geral. Para isto estamos abertos e sempre estivemos. Somos meios antropofágicos, inteligentemente antropofágicos.

Sabemos assim, as mazelas de que o brasileiro padece. Cabe a quem desejar, ou estiver disposto, incorporar-se à aventura árida, sofrida, às vezes sangrenta tarefa da libertação das potencialidades da população brasileira. Uma ampla arquitetura da construção de um país generoso, sem vocação imperial.

Do trabalhador anônimo, da balconista sorridente, do operário inventivo, do empresário desenvolvimentista, da juventude impulsionada em sua vitalidade e movimento, da intelectualidade acreditando, do agricultor fazendo plantações de dar gosto. De uma cultura incentivada a ser feita nas suas permanências e renovações. É nesta pluralidade e na diversidade dos brasileiros que se pode construir o presente e perseguir o sonho da utopia do futuro possível.

Eduardo Bomfim é advogado, ex-deputado federal constituinte pelo PCdoB/AL (1987-1990) e Secretário de Cultura de Alagoas.

EDIÇÃO 80, AGO/SET, 2005, PÁGINAS 56, 57, 58, 59