Como todo evento que marca sua época, o Fórum Social Mundial vai produzindo, ao longo das cinco edições que teve até hoje, também a sua épica, seus heróis, seus episódios míticos que depois passam de boca em boca e de site em site, traduzidos para incontáveis idiomas. Entre eles, já vai cavando seu lugar, apesar do curto espaço decorrido desde sua realização, no último dia 29 de janeiro, o debate “Quixote Hoje – Utopia e Política”.

A proposta era proporcionar um painel sobre a utilidade e o conceito de utopia, tendo em conta o quarto centenário do Dom Quixote de Miguel de Cervantes. O debate ocorreu numa manhã de canícula porto-alegrense, no Auditório Araújo Viana com seus 3 mil assentos superlotados, por um público multinacional na maioria jovem, inquieto e irreverente.

Na mesa, alguns dos monstros sagrados do Fórum: Ignacio Ramonet, editor do jornal francês Le Monde Diplomatique; Federico Mayor Zaragoza, espanhol, ex-diretor da Unesco, presidente da Fundação Cultura e Paz Vistoria Malvar; Eduardo Galeano, escritor uruguaio, autor de As veias abertas da América Latina; José Saramago, romancista português, Prêmio Nobel de Literatura de 1998. Participavam também Luiz Dulci, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, e, como moderador, Roberto Savio, ítalo-argentino, fundador do Inter Press Service (IPS) e membro do Comitê Internacional do Fórum.

Por que Saramago merece respeito

Em torneios assim nem sempre é a profundidade que triunfa. Às vezes, vence a tirada mais espirituosa, o exemplo mais impactante ou a ironia mais ferina. Desta vez, porém, a fala de maior repercussão coincidiu com a de conteúdo mais sólido. Numa mesa e num ambiente onde prevalecia a visão da utopia como “a verdade de amanhã” (Ramonet), Saramago ousou colocar o guizo no gato:
“Tenho uma má notícia para vocês, não sou um utopista. Acho esse conceito de utopia não só inútil, como coloco no mesmo nível de que quando morremos todos vamos para o paraíso”, foi logo dizendo, à guisa de preâmbulo de um ataque frontal em que chegou a propor que se tirasse aquele verbete do dicionário.

“Tudo o que foi dito antes, poderia ser dito sem a introdução da palavra utopia”, afirmou Saramago, estabelecendo ao mesmo tempo um denominador comum e um diferencial com seus interlocutores. “O discurso sobre a utopia me desagrada porque é um discurso sobre o que não existe”, prosseguiu. “O que transformou o mundo não foi a utopia, mas a necessidade. Se a realização de nossas utopias ocorressem em breve, não seriam chamadas de utopia, mas sim de muito trabalho e dedicação”, insistiu.

E, com humor, na hora de responder à platéia: “Atenção, muita atenção, porque eu vou pronunciar uma frase histórica: ‘o que transforma o mundo é a necessidade e não a utopia’”.
É sabido que o autor do Memorial do Convento não poucas vezes tem deixado em apuros os seus correligionários comunistas, com umas tantas das suas declarações, dentro e fora do Fórum Social Mundial. Volta-se contra os sindicatos e os partidos de esquerda, Cuba e a guerrilha colombiana. Mesmo no debate do Araújo Viana, espicaçou que a esquerda está “mais do que necessitada” de “uma revisão criteriosa de conceitos” e “o primeiro conceito que tínhamos de rever é o de esquerda”, pois muitos falam da esquerda como quem invoca “o santo nome de Deus em vão”.

No entanto, seu corajoso – quase quixotesco – enfrentamento com os adeptos da utopia mostra que há bons motivos para se respeitar José de Sousa Saramago, além dos seus 82 anos de vida ereta como homem e escritor, do seu notável talento literário que é um sucesso de crítica e de público, ou da sua condição de único Nobel da língua portuguesa. Em política, está provado, ele pode escorregar. Mas não escorrega nos princípios. Não escorrega quando proclama desabridamente seu ateísmo militante, como voltou a fazer no Araújo Viana. Não escorrega quando rejeita a utopia.

Somos todos quixotes e sanchos panças

Para se penetrar no mérito da controvérsia, convém começar destrinchando o tema do debate de janeiro – “Quixote Hoje – Utopia e Política”. Tal como nos pratos de certas cozinhas exóticas – – “peixe frito com vinagre e açúcar" – há aqui uma mistura de ingredientes bem distintos: Quixote, utopia, atualidade.

Comecemos por Dom Quixote de la Mancha: tal como saiu da pena de Cervantes, o Cavaleiro da Triste Figura não tem parentesco com a utopia. O “link” só aparece na leitura contemporânea – do Cavaleiro e da utopia.

Saramago, no debate, forçou a tecla ao dizer que “Quixote não era utopista, mas um pragmático no melhor sentido da palavra”. Segundo o romancista português, Quixote “vivia um mundo do qual ele estava farto, enlouqueceu e inventou uma paixão, depois voltou a ser Alonso Quija, e volta ao início da alma humana, com a qual temos que viver e aceitar”. Embora seja este de fato o fim do fidalgo manchego, salta aos olhos não ser esse desfecho prosaico que lhe dá a estatura sem igual que adquiriu nestes 400 anos de existência.

Aqui vale um parêntese que dimensione esta estatura. Em maio de 2002, o Instituto Nobel e o Clube do Livro norueguês pediram a cem romancistas consagrados da atualidade, espalhados por 54 países, que listassem os dez melhores livros de ficção de toda a história. Cada um escolheu dez obras. O engenhoso fidalgo dom Quixote de la Mancha não só foi o primeiro colocado; bateu por 50 votos o segundo (Madame Bovary, de Gustave Flaubert; a lista das 100 melhores obras continha apenas um outro espanhol, Garcia Lorca, com o Romancero Gitano, e um solitário brasileiro, Guimarães Rosa, com Grande Sertão Veredas).

É um sucesso de 400 anos e são também 400 anos de sucesso daquele que é considerado o primeiro romance moderno. Já em 1605, quando foi publicada a sua primeira parte (a segunda sairia em 1615), o Quixote teve seis edições; e logo foi traduzido para o inglês (1612) e o francês (1614).
E quem era esse herói? Um utópico? Um pragmático? Para Cervantes, para os seus contemporâneos e as gerações de leitores que se seguiram, certamente nem uma coisa nem outra.

Numa primeira aproximação, o Engenhoso Fidalgo era um saudosista da Idade Média cavalheiresca que se chocava com a nada cavalheiresca realidade da Espanha do século 17. É esta a “moral da história” de Cervantes, confirmada pelo fim do livro, em que o personagem, agonizante, renega suas fantasias e rende-se ao bom-senso.

Mas aqui o diabrete da literatura escapa da garrafa e põe-se a fazer das suas. O personagem, ao ganhar vida – ao lado de seu parceiro-antípoda Sancho Pança – adquire uma carnatura humana de irresistível simpatia. Ele é patético, é ridículo; é, numa palavra, quixotesco. E, no entanto, os milhões de leitores que já acompanharam suas peripécias são compelidos inexoravelmente a encontrar pontos de identidade com Quixote, e também com Sancho, já que os dois balizam e contêm a raça humana inteira. Nesta outra leitura, empalidece o ideal concreto – cavalheiresco – que o fidalgo persegue; enquanto se agiganta o desprendimento e a bravura da perseguição.

Nesta dimensão pode-se distinguir, sim, um ponto de contato entre o Quixote e o espírito do Fórum Social Mundial, e dos sonhadores, revoltosos e revolucionários que têm povoado a história humana. Mas este é um ponto de contato que não se restringe aos utopistas. Aí, o paralelo buscado pelos organizadores do debate no Araújo Viana claudica, pois, utopistas ou não, somos todos um pouco quixotes, e um pouco sanchos panças.

A “Utopia” de More

Já a utopia possui outra linhagem. A palavra – que vem do grego u-topia, literalmente, “lugar nenhum” – entra no dicionário político-social quase um século antes do Quixote, ao servir de título para um também célebre livro, do inglês Thomas More (ou Morus), publicado em 1516. A Utopia de More descreve uma sociedade perfeita, em uma ilha imaginária.

Esta utopia original (embora haja textos bem mais antigos sobre sociedades perfeitas, desde A República, de Platão) tem a ver com a descoberta do Novo Mundo, e especificamente com o Brasil. More situa sua Ilha de Utopia no continente recém-descoberto. O personagem que a descreve, Rafael Hythloday, é um português, companheiro de viagem de Américo Vespúcio.

Rafael faz um implacável retrato da sociedade européia da época, citando diversos países, inclusive a Inglaterra. “Onde quer que a propriedade seja um direito individual, ali onde todas as coisas se meçam pelo dinheiro, jamais se poderá organizar a justiça e a prosperidade social; a menos que designeis como justa a sociedade onde o que de melhor existe é a partilha entre os mais malvados, e estimeis como perfeitamente feliz o Estado onde a fortuna pública torna-se preza de um punhado de indivíduos insaciáveis, enquanto a massa é devorada pela miséria”.

Em Utopia, é claro, ocorre o contrário. E Rafael descreve como vigora a república, a propriedade é pública, e os utopianos trabalham apenas seis horas por dia, vivendo mesmo assim na abastança, porque todos trabalham. É um comunismo ingênuo que o livro descreve.

Não se deduza daí que More tenha sido um proto-comunista subversivo. Ele apenas se dava conta das desigualdades e injustiças crescentes da sociedade de sua época, e descrevia sua ilha ideal como imune a todas elas. O livro dedica todo um capítulo, por exemplo, aos carneiros, “estas bestas tão doces”, que, na Inglaterra, “são tão vorazes e ferozes que devoram até os homens, despovoam os campos, as casas e aldeias”. Era o processo de implantação do capitalismo, que mais tarde Karl Marx analisaria, no capítulo do Capital dedicado à “Acumulação primitiva”. Mas o mesmo Thomas More inicia sua obra com louvores ao “invencível rei da Inglaterra, Henrique, o oitavo do nome, príncipe de um gênio raro e superior”. É verdade que mais tarde More conheceu o cárcere (como Cervantes, aliás) e terminou decapitado pelo “gênio raro” de Henrique VIII – mas não por pretender a subversão social e sim por recusar-se a trocar a fé católica pela anglicana.

Mas quando Utopia foi publicada seu autor era um prestigiado funcionário público de alto escalão. E a obra fez sucesso – para os padrões editoriais da época. A Europa da época consumia avidamente tudo que dissesse respeito ao Novo Mundo.

A ciência do “Manifesto”

A partir da Utopia de More, o termo penetrou no vocabulário político-social da época, designando qualquer sistema de governo imaginário, no gênero da República de Platão. O capítulo seguinte dessa novela seria aberto mais de três séculos depois, em 1848, pelo Manifesto do Partido Comunista.
A obra fundadora da teoria marxista surge polemizando com a “literatura socialista e comunista” que a antecede. E, se não menciona a Utopia de More, ajusta contas impiedosamente com a corrente que chama “socialismo e comunismo crítico-utópicos” – nomeadamente Saint-Simon, Fourrier e Owen.

O Manifesto reconhece que as obras desses pensadores “encerram elementos críticos” e que eles foram, em seu tempo, revolucionários. Mas aponta que, “em vez da ação social, têm que pôr a ação do seu próprio engenho; em vez das condições históricas da emancipação, condições fantásticas; em vez da organização gradual e espontânea do proletariado em classe, uma organização social por eles inventada. Para eles, a história futura do mundo reduz-se à propaganda e execução prática dos seus planos sociais”.

Em 1880, Friedrich Engels publicou um livreto desenvolvendo essas idéias, sob o título Do socialismo utópico ao socialismo científico. A obra logo se tornou a segunda mais popular da literatura marxista, depois do Manifesto. E consolidou a conotação pejorativa do conceito de utopia, dentro do movimento operário da época.

“As causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas – afirma Engels – não devem ser procuradas nas cabeças dos homens nem na idéia que eles façam da verdade eterna ou da eterna justiça, mas nas transformações operadas no modo de produção e de troca; devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época de que se trata. Quando nasce nos homens a consciência de que as instituições sociais vigentes são irracionais e injustas, de que a razão se converteu em insensatez e a bênção em praga , isso não é mais que um indício de que nos métodos de produção e nas formas de distribuição produziram-se silenciosamente transformações com as quais já não concorda a ordem social, talhada segundo o padrão de condições econômicas anteriores.”

É, no fundo, a mesma argumentação retomada por Saramago em Porto Alegre.

Um indômito sancho pança

Entretanto, um terceiro capítulo estava por ser aberto na história do conceito de utopia. Em 1929, o acadêmico húngaro radicado na Alemanha Karl Mannheim publicou sua obra mais influente, Ideologia e utopia, em que busca, por assim dizer, a reabilitação da utopia.

Para Mannheim, a utopia é “toda orientação que transcende a realidade e quebra as normas da ordem existente, contrariamente à ideologia, que exprime o status quo”. E em outro trecho: “O desaparecimento da utopia conduz a um estado de coisas estático, no qual o próprio homem não passa de uma coisa”.

Ocorre que, na Alemanha de 1929, o movimento operário esposava amplamente a crítica de Marx e Engels à utopia. Ela era partilhada não só pelo forte Partido Comunista da Alemanha como pelo Partido Social-Democrata, que então ainda não rompera de todo com suas origens marxistas. Mannheim constituiu, junto com o alemão Max Weber e o francês Emile Durkheim, a tríade dos pais fundadores da sociologia corrente na academia. Mas teve uma influência apenas marginal nos movimentos sociais da época, dentro ou for a da Alemanha.

Ideologia e utopia foi, portanto, apenas o prólogo do terceiro capítulo. Este só se inauguraria duas gerações mais tarde, no cenário criado com a desaparição da União Soviética e a chamada ofensiva neoliberal.

É a época onde a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher assevera: “Não há alternativa”. E onde o presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso cunha a expressão “utopia do possível”, cujo conteúdo é amoldar as ambições de mudança aos limites do neoliberalismo. É, também, quando a derrota da experiência socialista soviética parece pôr em xeque a noção do socialismo enquanto ciência.

É nestas circunstâncias que os utópicos renascem nas esquerdas e nos movimentos sociais. E renascem, por ironia, com o mérito de contestarem Thatcher, proclamando que há, sim, alternativa, ou, conforme o bordão do FSM, que “um outro mundo é possível”.
Assim, um século e meio depois de Marx e Engels, socialistas utópicos e socialistas científicos vêem-se na mesma barricada da resistência antiglobalitária. E firmam uma aliança na luta de idéias em curso, em torno do denominador comum representado pela rejeição da alternativa única de Thatcher.

Mas uma aliança é por definição uma unidade na diversidade. A briga comprada pelos fundadores do marxismo tem sua seqüência em debates como o de janeiro. E Saramago tem razão quando, como um indômito sancho pança do século 21, proclama a sua “frase histórica”: “O que transforma o mundo é a necessidade e não a utopia”.

Há neste enunciado bem mais que uma boutade de debate. Ela remete para a essência do contraditório entre utopistas e marxistas: a prevalência do ser sobre a consciência, da sociedade real sobre o que os homens pensam sobre ela, da necessidade da transformação sobre a boa-fé transformadora. Pois nenhuma consciência é verdadeiramente livre senão a consciência da necessidade.

Bernardo Joffily é jornalista, editor do Portal Vermelho (www.vermelho.org.br) e autor do Atlas Histórico Isto É Brasil 500 Anos.

EDIÇÃO 78, ABR/MAI, 2005, PÁGINAS 34, 35, 36, 37, 38, 39