Novos passos na luta emancipacionista
Pouco mais de dois séculos separam os dias atuais do levante das trabalhadoras francesas no assalto à Bastilha buscando a “liberdade para o trabalho”. Há apenas uma centena e meia de anos, mulheres da fábrica Cotton, em Nova York, eram vítimas da crueldade do capital, na histórica greve pela redução da jornada de trabalho, consumidas no fogo que foram, junto com seus teares. Aos olhos da sociedade atual parece pura lenda as imagens das “bruxas” queimadas nas fogueiras da inquisição por sua ousadia de pensar e de saber.
Os tempos são outros e a metade mulher dos habitantes do mundo descobriu-se enquanto sujeito histórico. “Milhares e milhares se fizeram visíveis, abandonaram o âmbito privado e saíram a pelejar pelos seus” (Edelman). Nessa passagem pelas ruas em sua luta cotidiana, a mulher elevou sua consciência, afirmou sua auto-estima e incorporou-se à ação política, alcançando significativos avanços.
Os últimos 90 anos presenciaram uma verdadeira reviravolta na situação das mulheres em diferentes campos da vida humana: acelerou-se sua integração ao mercado de trabalho; sua agenda de direitos foi reconhecida pelos organismos internacionais e por inúmeros governos; estudos sobre sua especificidade foram absorvidos pelo debate científico em incontáveis espaços acadêmicos.
Estas mudanças se deram num mundo em que a humanidade pôde presenciar um extraordinário desenvolvimento científico e tecnológico. Em igual período, avanços históricos ocorreram com as revoluções sociais e anticoloniais que levaram ao poder as novas experiências de sociedades socialistas, pautadas no ideário do fim da exploração nas relações humanas.
Contraditoriamente, nunca ficaram tão claras a existência e a continuidade da opressão de gênero. O progresso material da sociedade não foi acompanhado, em igual intensidade, pelo avanço social e espiritual, particularmente no que se refere à vida das mulheres. As chagas da opressão saltam aos olhos na lentidão da igualdade no trabalho, nas cicatrizes da violência, na distância dos níveis de poder.
Numa etapa histórica em que muitas foram as vitórias, seguidas de incontáveis derrotas na luta da humanidade pela sua emancipação e, igualmente, na luta específica das mulheres, novas inquietações são postas para tornar claros os caminhos a percorrer.
Condicionantes
Há um ambiente contraditório que cerca a nova caminhada. A situação mundial é marcada pela unipolaridade sob hegemonia americana, pela exacerbação do militarismo, pelo desrespeito aos organismos internacionais e seus contratos de convivência pactuados, pela exclusão de milhões de homens e mulheres dos bens da terra, pela financeirização das relações econômicas. Agrava essa situação a interrupção das experiências socialistas européias e a conseqüente crise do paradigma das sociedades do trabalho, pressuposto fundamental da luta emancipadora de homens e mulheres.
A hegemonia conservadora no mundo e a crise do paradigma emancipatório criam limites objetivos e subjetivos para a caminhada. A experiência histórica indica que os avanços alcançados pelas mulheres sempre se deram em um ambiente democrático e de progresso. Os socialistas e seu movimento operário foram os que maior visibilidade deram à luta pelo reconhecimento dos direitos das trabalhadoras, no início do século passado.
Apesar desses limites há sinais positivos nesse processo. As particularidades do modelo de dominação capitalista-imperialista atual, com a exacerbação da barbárie social, provocam, ao mesmo tempo, o crescimento do inconformismo humano através do surgimento de um número crescente de manifestações, organizações e movimentos cuja característica central é sua diversidade temática, multiplicidade de sujeitos e seu atual estágio de articulação globalizada.
O movimento feminista assume uma nova dinâmica, fruto das alterações dessas últimas décadas. Diversifica-se, torna-se mais plural, descentraliza-se, redefine conceitos, reelabora estratégias, eleva a sua articulação supra-nacional. Ao mesmo tempo, fragmenta-se, enfraquece a sua organização autônoma, não consegue assumir um caráter de massa.
Essa nova dinâmica, com seus aspectos positivos e negativos introduz componentes pouco conhecidos que precisam ser mais bem observados. De um lado, a força da articulação internacional dá maior visibilidade às discriminações e aos preconceitos que pesam sobre as mulheres, contribuindo para a construção de uma agenda mundial comum. O reconhecimento das instâncias governamentais eleva o combate à discriminação de gênero a um patamar de tarefa de toda a humanidade. A multiplicidade de abordagens temáticas e de estruturas organizativas amplia os espaços da agenda feminista.
De outro lado, a agenda de caráter universal, algumas vezes leva a um distanciamento do movimento real, do cotidiano das mulheres brasileiras submetidas à lógica de uma sociedade de extrema desigualdade. Carece de articulação e força o enfrentamento de problemas relativos à precarização da mão-de-obra feminina, à necessidade da maternidade compartilhada, à dimensão da maternidade juvenil, às doenças específicas e a qualidade de vida da mulher, à exigência de um novo padrão de família que iniba a violência doméstica. O predomínio da ação institucional retira a radicalidade na luta, própria de todos os movimentos emancipatórios. A multiplicidade temática contribui para o aprofundamento do debate, mas a fragmentação leva o feminismo a perder a dimensão de “universalidade material da espécie” (Valcárcel) e, conseqüentemente, a força de pressão que representa essa dimensão.
Nessa conjuntura contraditória, o continente latino-americano também sofre mudanças políticas como conseqüência da resistência de sua gente frente à exacerbação neoliberal. Vários governos que tinham compromisso com essa agenda foram substituídos. No Brasil, a virada política construída pela sociedade brasileira na última eleição levou ao governo central um conjunto de forças que tem à frente aquelas identificadas com a luta dos explorados pelo progresso.
Embora de caráter heterogêneo, o novo governo criou um ambiente favorável ao combate às teses neoliberais, implantadas no país nesses últimos dez anos, apesar da permanência, ainda, da política macro-econômica anterior. (As mulheres sabem o quanto lhes custou o empobrecimento da sociedade – onde são a maioria – e a redução dos serviços do Estado – o tal “estado mínimo” – que lhes legou a ausência de creches, a piora nos serviços de saúde e a responsabilidade privada da atenção aos idosos…).
Nas condições históricas da sociedade brasileira essa alteração política se deu assumindo um caráter contraditório. Por isso, a luta entre a continuidade e a mudança que se incorporou à dinâmica não só do governo, mas também da sociedade, só poderá ter uma equação que sirva ao progresso se for contaminada pela pressão dos/das “de baixo”, empurrados que serão pelas dificuldades que os/as cercam. Cabe ao movimento feminista incorporar-se a esse esforço para aproveitar os espaços institucionais abertos nessa nova fase, buscando o compromisso do novo governo para garantir que as conquistas legais se tornem realidade, elevar o debate de sua agenda própria, articular-se com outros setores do movimento popular, reforçando sua organização e sua autonomia.
As mulheres existem
Chegou-se a uma fase em que “as lutas e conquistas de direitos políticos e sociais, experimentadas ao longo da primeira metade do século XX permitiram o estatuto jurídico da cidadania plena, a ampliação da presença das mulheres em espaços decisórios e a posterior consolidação do princípio da igualdade entre os sexos”, ressalvados os países onde o fundamentalismo religioso se mescla com o Estado, segundo Clara Araújo.
A vida mostrou, no entanto, que há uma grande distância entre a conquista legal e a transformação dela em prática cotidiana. “Hoje, mesmo amparadas por conquistas jurídicas e formais – concebidas desde a ilustração, numa democracia erigida sobre a igualdade legal – as mulheres vivem, no seu cotidiano, situações de desrespeito aos seus direitos e de imposições de limites ao exercício da cidadania plena” (Jonas).
No Brasil, sob a pressão mobilizadora das mulheres, essas conquistas jurídicas se deram particularmente no direito ao voto, em 1932, na Constituição Federal de 1988, na Lei 9.100 de 1995, a chamada “lei de cotas”, que instituiu um percentual mínimo para os sexos nas chapas eleitorais e através do Novo Código Civil Brasileiro, de janeiro de 2003.
Na virada do século, as mulheres superaram numericamente os homens, representando 51,32% da população brasileira. Cresceu significativamente a escolaridade feminina, ultrapassando em 0,27 a taxa de alfabetização masculina. De 1991 a 2000 sua participação no mercado de trabalho foi de 32,5% a 40,4%. Nos últimos dez anos a defasagem salarial em relação aos rendimentos masculinos reduziu-se em 7,5 pontos percentuais.
Estes avanços, no entanto, foram acompanhados da permanência dos preconceitos e da discriminação. Mesmo representando 51,32% do eleitorado brasileiro, as mulheres são 8,7% dos cargos eletivos do Congresso Nacional. Para igualar seu salário ao dos homens, se continuar no ritmo atual, ainda levarão 30 anos. São reféns em sua própria casa – 63% das agressões físicas contra as mulheres acontecem nos espaços domésticos, segundo pesquisa do IBGE de fins dos anos 80.
Aquela que seria a grande bandeira das mulheres nos últimos dois séculos, a luta pela igualdade jurídica, demonstrou os limites de seu alcance recolocando o debate sobre a necessidade de uma estratégia mais abrangente na luta emancipadora da mulher para liberar suas energias transformadoras. Mais do que nunca está posta a questão: onde queremos chegar?
Em busca do paradigma perdido
Como uma característica do período mais recente os movimentos vinculados à luta das mulheres por seus direitos alterou significativamente sua prática. Reduziram-se as atividades comuns articuladas, reduziram-se também as manifestações de rua e os encontros massivos. Empurrado por mudanças estruturais e pela ampliação dos espaços democráticos no continente, condicionado por certo esvaziamento de suas bandeiras históricas de igualdade jurídica, o feminismo redefine sua ação acentuando sua intervenção institucional.
Essa perda de radicalidade das bandeiras e das formas de luta do movimento feminista tem diferentes explicações. O esgotamento da etapa em que o centro mobilizador era a igualdade formal, expressa em marcos legais, veio acompanhado da enorme dificuldade de levar essas conquistas para o cotidiano das mulheres. A luta para implementar os direitos conquistados se descentraliza, transformando-se numa verdadeira “guerra de guerrilhas”, disputada em cada espaço da existência.
Se, na etapa finda, o confronto se dava entre o conjunto dos movimentos e as instituições onde se votavam as leis, agora a luta se desloca para outros cenários: o das fábricas e empresas (com os departamentos de pessoal ou chefias); o dos lares, num confronto solitário na violência doméstica; junto aos governos locais para assegurar políticas públicas; junto às instâncias de representação e organização do poder político e dos movimentos sociais, sobretudo no movimento sindical, tradicional espaço masculino.
A própria vida vem apontando que a implementação das conquistas exige maior poder de pressão e o apoio de outras esferas de organização da sociedade. A opressão cotidiana que pesa sobre as mulheres não é uma mera expressão da cultura patriarcal. Ela está intimamente associada às diferentes formas de exploração da sociedade capitalista. A trabalhadora ganha menos do que o homem, como uma forma de o patrão se apropriar da situação de subalternidade da mulher para pressionar os salários para baixo. O trabalho doméstico não é remunerado como alternativa do capitalista para ampliar seus lucros através da apropriação do trabalho doméstico gratuito.
A luta para que a mulher ocupe os espaços de poder se situa numa arena em que os diferentes projetos para o país, em torno da continuidade ou não do modelo neoliberal anteriormente hegemônico, acirram seu confronto. Num clima, onde predomina no mundo a agenda conservadora não há preocupação com a democratização e aperfeiçoamento das instâncias de representação. São quase inexistentes as iniciativas dos partidos para irem além do cumprimento das cotas e tomarem medidas de formação, qualificação e apoio às filiadas para exercerem as novas funções que lhes impõe o “empoderamento”. Compartilhar o poder entre os gêneros é um gesto de elevada consciência progressista que só é alcançado pelos que buscam um projeto de ruptura com a ordem neoliberal vigente.
Essa nova etapa da luta das mulheres exige um nível superior do debate sobre as razões da discriminação de gênero. A contribuição teórica dada, nesse período, pelos diferentes núcleos de estudo nas universidades foi de grande relevância. O importante agora é aproximar a produção acadêmica da luta cotidiana dos movimentos de mulheres, ajudando-os a pesquisar e tirar ensinamentos de sua própria experiência. Retomar uma agenda que trate de forma mais universalizante as discriminações de gênero. Neste sentido, a conquista de políticas públicas de gênero, em especial as que garantem um apoio à trabalhadora, em todos os níveis de governo, é importante instrumento mobilizador. E é a materialização do necessário confronto com o modelo neoliberal de “estado mínimo”, assumindo contornos de bandeira tática de sentido estratégico. Os espaços de formação e qualificação para a cidadania devem ser ampliados e diversificados como forma de sustentar e elevar a luta cotidiana. A incorporação das entidades feministas a todos os fóruns unificadores da luta do povo brasileiro é componente fundamental para lhes dar maior protagonismo político e social.
Os impasses vividos pelo feminismo, hoje, na busca de descobrir e retomar sua perspectiva emancipatória são parte da crise que atingiu o movimento operário e progressista após a interrupção das experiências socialistas do Leste europeu. A saída dessa crise exige um amplo debate que não pode se dar apenas nos marcos das organizações e espaços das feministas. É necessário se incorporar à busca que o movimento socialista realiza para descobrir os caminhos da retomada dos ideais das sociedades do trabalho.
Para isso, a corrente do feminismo emancipacionista necessita continuar investigando a experiência da construção socialista na ótica do enfrentamento das discriminações de gênero e intensificar a sua aproximação com as bandeiras e as mobilizações das mulheres trabalhadoras.
A trajetória humana na busca de melhores dias tem sido, a partir das sociedades de classe, dura e sinuosa. Mas ela sempre encontra energias transformadoras naqueles e naquelas que, submetidos/as a qualquer tipo de opressão, ao tomarem consciência dela, rebelam-se para pôr um fim à situação.
Jô Moraes é do Comitê Central do PCdoB e deputada estadual PCdoB/MG.
Referências
ALVAREZ, Sonia. “Feminismos Latino-americanos”. Estudos Feministas, Rio de Janeiro, v. 6, n.2,1998.
VARGAS, Virgínia. La Subversion de Los Feminismos Latinoamericanos. Memoria Del Seminario Internacional. Uruguai: REPEN/DAWN, 1999.
JONAS, Eline. “As Mulheres como Protagonistas de sua História”. Revista Presença da Mulher, São Paulo, n. 43, 2002.
ARAÚJO, Clara. “O Poder Político e as Novas Estratégias Feministas”. Revista Presença da Mulher, São Paulo, n. 41, 2002.
EDELMAN, Fanny. Feminismo y Marxismo. Ediciones CuadernosMarxistas, Buenos Aires, 2001.
EDIÇÃO 72, FEV/MAR/ABR, 2004, PÁGINAS 75, 76, 77, 78