Marxismo e método
“Não há estrada real para a ciência, e só tem probabilidade de chegar a seus cimos luminosos aqueles que enfrentam a canseira para galgá-los por veredas abruptas”. (Marx, “Prefácio à Edição francesa” d’O Capital)
Ah, se se tratasse “apenas” de uma racional marcha forçada, por becos tortuosos ou neblinosos, para que, de pronto, sentíssemos firmes os pés numa clara avenida. O problema é que passamos, nós mortais – pós-sonhos visionários fecundados pela práxis em “real” –, a ser assaltados por novas “assombrações” do “mundo enfeitiçado” do poder do capital (Marx, Livro 3, v. 6: 952-53). Diriam os pessimistas: “vivemos o pior dos mundos!” – crise do socialismo e “financeirização” ultra-alienante da riqueza. Ao que o genial Marx, serenamente, sentenciaria: “Aliás, toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência [a expressão fenomênica] e a essência das coisas” (Marx, Livro 3, v. 6: 939).
Para espantar fantasmagorias, Luis M. Fernandes – cientista social e intelectual comunista de raro talento – vem por esgrimir esforços concentrados e sistemáticos em suas pesquisas. Sobre as vicissitudes da dimensão (épica) constitutiva do socialismo, destacam-se: além de “O enigma do socialismo real. Um balanço crítico das principais teorias marxistas e ocidentais”; “URSS – ascensão e queda. A economia política das relações da União Soviética com o mundo capitalista”, Anita Garibaldi, 1992; “As lutas de classe na Rússia de 1991 a 1993”, Princípios, nov.1993/ jan.1994, n° 31; “Conceitos fora de lugar: uma crítica epistemológica das principais teorias ocidentais sobre os Estados socialistas do Leste”, Dados – Revista de Ciências Sociais, 1994, n° 2; “Rússia: do capitalismo tardio ao socialismo real”, in: Estados e moedas no desenvolvimento das nações, Fiori, J. (org.), Vozes, 1999. Trata-se já de uma obra… que vai se encorpando.
Incontornável: no Brasil (e também fora dele), quem quiser conhecer a íngreme “estrada” da industrialização russa, dos fundamentos ontológicos da construção socialista na URSS, captando ainda este movimento no Leste da Europa, terá de seguir o seu caminhar. Sob um olhar, porque a captura processual do método em Fernandes – rigoroso – é de evidente inspiração marxiana, onde, todavia, sua démarche arrisca a fuga da (petrificante) clausura sedutora dos clássicos. Relembrando, a propósito: “A investigação tem de apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento, e de perquirir a conexão íntima que há entre elas. Só depois (…) é que se pode descrever, adequadamente, o movimento real” (Marx, “Posfácio à 2ª Edição” d’O Capital).
Ademais, porque em O enigma do socialismo real. Um balanço crítico das principais teorias marxistas e ocidentais, Fernandes conseguiu atingir elevado nível de abstração numa crítica sintética da epistemologia das ciências sociais. Síntese, não resumo: o livro é um torpedo no modismo intelectual pós-moderno, que não distingue sujeito e objeto nas ciências sociais (p. 17); sendo elaborado para identificar e/ou confrontar a miríade das formulações teóricas com o concreto desenvolvimento histórico das experiências do “socialismo real” (p. 18-19). Nele, mesmo a (auto)-relativização do apreendido no volumoso número de autores analisados (p. 157-58), não consegue desviar a rota do balanço que faz Fernandes, a indicar que o colapso do “socialismo real” pode estar fornecendo as condições “necessárias para uma análise de classe marxista”, mais precisa no “desenvolvimento passado e presente” dessas sociedades (p. 162).
Razões suficientes para Luis Fernandes ter dissecado o centro nevrálgico de suas conclusões (caps. 7 e 8) em: 1) o problema da autonomização do poder do Estado nos marcos do processo de abolição da propriedade privada (democracia socialista; “fusão” partido/Estado); e, 2) o problema da perda de dinamismo da economia socializada/estatizada (produtividade; tecnologia).
Mas o que quer dizer mesmo isso? Fundamentalmente que: a) as idéias clássicas da “democracia direta e participativa”, integrantes e projetadas das pioneiras formulações teóricas marxistas, não foram – e, óbvio, parece-me, não poderiam ser – suficientes para prospectivamente apreender a magnitude da problemática da democracia socialista; b) num quadro da permanência duma economia de “escassez relativa”, as assimetrias, previstas em anterioridade para a construção socialista por Marx, ensejam a tendência da reprodução de uma espécie de diáspora individualística.
Nisso, não há reducionismo coisa nenhuma. É só constatar, no limite, que havia, nos EUA, oficialmente, cerca de 36 milhões de “pobres” (1998), subjacentes à brutal desigualdade e polarização da apropriação da riqueza (que aumentou, dizem as últimas estatísticas). Numa outra ponta – tratando da URSS, sabidamente o objeto central de seu estudo –, Fernandes aponta a necessidade de a obtenção da produtividade, a eficiência, etc, terem engendrado uma “burocracia poderosa” (Alec Nove), funcional, ingredientes sinérgicos e contrapostos à exigência da afirmação do “coletivo/universal”; dada a “fragmentação” particularista que se fizer acompanhante da generalização simplificada dos mecanismos da democracia direta e participativa “como eixo estruturador do Estado” (p. 203).
Nas palavras de Fernandes, então correlacionando uma resultante das duas questões: “Para além do inevitável problema da alienação enraizada na escassez, outros traços estruturais das sociedades socialistas também reforçam a autonomia do Estado e o imperativo da mediação política no seu interior” (p. 205).
Finalmente, Fernandes (aclarando as configurações da experiência socialista) também não se esquece de uma sobre-determinação estrutural, expressa na marcante dualidade “ruptura sistêmica” x “reação sistêmica particular”, que emerge, a partir da URSS, no novo cenário internacional dos combates ao imperialismo.
A meu juízo, O enigma do socialismo real: um balanço crítico das principais teorias marxistas e ocidentais – juntamente a David Bohm e a controvérsia dos quanta (Fapesp-CLE, Unicamp, 1999), do físico Olival Freire Jr. – representa o que de melhor produziu o pensamento avançado no Brasil. Mais: os dois estudos são uma alegre convocação para um último adeus, no féretro do dogmatismo.