Escalado pelos golpistas para guardar o presidente aprisionado, o cabo Rodriguez teve a oportunidade de levar para Hugo Chávez a grande questão que angustiava as massas e os setores progressistas da Venezuela: "presidente, o senhor renunciou?" Ante a resposta inequívoca de Chávez ("Não renunciei!"), o cabo propôs: "escreva isso em um papel e jogue no cesto de lixo que depois recolho". E ele escreveu: "Não renunciei ao poder legítimo que o povo me deu", e assinou: Hugo Chávez.

Surgiu assim a senha para o movimento de resistência popular e militar contra o golpe que prendeu e tentou depor e assassinar o presidente Chávez. Rodriguez transmitiu a mensagem (veja ilustração, nesta página) por fax; cópias dela multiplicaram-se com rapidez e muitos dos populares que se concentraram em torno dos quartéis, dos palácios e ruas, da Venezuela, traziam nas mãos pequenos pedaços de papel com aquela prova, assinada pelo presidente, da mentira da renúncia difundida pelos golpistas e pelos meios de comunicação.

A tentativa contra Chávez e sua revolução bolivariana despertou inúmeros pequenos grandes gestos, como aquele do cabo Rodriguez, que revelaram a extensão, profundidade e enraizamento das mudanças em curso na Venezuela.

As classes dominantes da Venezuela, e o governo dos EUA, que considera a América Latina como seu quintal, nunca aceitaram o tenente-coronel Hugo Chávez, que liderou, em 1992, um levante militar que fazia parte da continuidade da sublevação popular de 27 de fevereiro de 1989, reprimida à bala pelo governo de Carlos Andrés Pérez, com um saldo oficial de 240 mortos (dados não oficiais falam de 500 a 1200) em Caracas.

Foram episódios da crise social e política aguda, sinalizada também pelo movimento popular que levou ao impeachment do presidente Carlos Andrés Pérez em 1993, por corrupção; e em 1996 ele foi condenado a 2 anos e 4 meses de prisão.

A incapacidade política da classe dirigente tradicional da Venezuela, e sua impotência em exprimir os anseios da população, ficaram explícitas na campanha presidencial de 1998, quando chegou a apresentar como candidata à presidência Irene Sáez Conde – Miss Universo de 1981 –, cujo principal atributo para pleitear o mais importante cargo dirigente da nação era justamente esse, o de ter sido a campeã de beleza da mulher venezuelana… No final, Irene ficou com apenas 3% dos votos, e o principal concorrente de Chávez foi o independente Henrique Salas, que teve 40%.

Essa foi a eleição vencida por Hugo Chávez, o tenente-coronel que ficou famoso ao levantar-se contra o neoliberalismo e a dominação imperialista, e, com o fracasso da tentativa, chamar para si, lealmente, toda a responsabilidade pela tentativa de substituir, pelas armas, o governo corrupto e impopular de Carlos Andrés Pérez. Chávez teve 57% dos votos, à frente de uma ampla coalizão de forças progressistas, o Pólo Patriótico, incluindo nacionalistas, democratas, socialistas e o Partido Comunista da Venezuela.

O programa de Chávez e de sua frente progressista baseava-se na pregação de uma revolução democrática bolivariana, popular e pacífica, inspirada nos ideais do herói da independência da Venezuela e da América do Sul, e campeão da luta pela unidade, autonomia e soberania latino-americana, Simon Bolívar.

Essa pregação teve profunda repercussão popular e foi, ao mesmo tempo, motivo de escândalo e alarme para as classes dominantes, os privilegiados da Venezuela e os norte-americanos, seus aliados tradicionais.

É uma classe dominante formada por latifundiários (apenas 2,2% das famílias são donas de 89% das terras na Venezuela); grandes empresários (principalmente dos setores petroquímico e de comunicações); altos chefes militares e a cúpula religiosa; seguidos por uma classe média de funcionários, profissionais liberais, administradores, técnicos; e uma aristocracia operária de trabalhadores da indústria do petróleo. Dos 24 milhões de venezuelanos, 69% são mestiços de europeus, indígenas ou negros; 9% são negros; 2% são índios; e apenas 20% são brancos.

Cerca de um terço da população concentra a riqueza e os benefícios da civilização. Predominantemente brancos opõem-se aos dois terços formados por mestiços, indígenas, negros, cuja vida é o desemprego, a pobreza profunda (70% da população estão abaixo da linha de pobreza), e as superlotadas favelas das grandes cidades.

A reação conservadora

O grupo íntimo do presidente – em que se destacou, nos primeiros anos de governo, a figura lendária de Luis Miquilena – estudou a fundo o fracasso do governo de Salvador Allende, no Chile, incapaz de resistir ao golpe fascista que o depôs (e assassinou) em 1973. E chegou à conclusão de que, antes de reformas econômicas, seria preciso criar uma nova base política e institucional para dar base ao novo poder.

Eles tinham razão. A resistência das classes dominantes contra Chávez já era grande desde o referendo de 1999 e da Assembléia Constituinte que mudaram, radicalmente, as instituições do país. Mas ela recrudesceu depois das reformas de 13 de novembro de 2001, quando o governo anunciou um pacote de 49 medidas que alteraram profundamente a economia do país. Mesmo tendo sido definidas após ampla consulta popular, e mesmo a setores de oposição, incluindo a poderosa federação dos empresários, a Fedecámaras.

As medidas mais controversas foram a Lei de Terras, a Lei de Pesca e a Lei de Hidrocarburetos. Pela Lei de Terras o Estado passa a ter o direito de redistribuir, para a reforma agrária, terras privadas cujos proprietários não possam confirmar a posse com títulos legais. Além disso, a lei estabelece um limite máximo de 5 mil hectares para as propriedades, podendo desapropriar para reforma agrária o que superar esse limite ou a terra considerada improdutiva. A Lei de Pesca, por sua vez, amplia a zona de proteção costeira de 3 para 6 milhas, onde fica proibida a pesca de arrastão, favorecendo os pescadores artesanais e também o equilíbrio ecológico marítimo. A Lei de Hidrocarburetos reverte 20 anos de liberalização e privatizações no setor do petróleo, exige maioria estatal nas novas joint ventures do setor, e eleva os royalties cobrados às empresas de petróleo, inclusive as estrangeiras, de 16,6 para 30%.

A oposição ao governo de Chávez cresceu desde então, assumindo um caráter claramente conspiratório. Em dezembro de 2001, ela já havia tomado a forma de um lockout (paralisação do trabalho convocada pelos empresários). A conspiração começava a tomar corpo.

No dia 9 de abril de 2002, a Central dos Trabalhadores da Venezuela (CTV), pelega, convocou outra greve contra o governo, com o apoio da confederação patronal Fedecámaras e da oposição. No dia 10 de abril, foi declarada greve geral por tempo indeterminado, até a deposição do presidente. O golpe estava em andamento, mas era preciso levar o povo às ruas para dar-lhe legitimidade. Nesse mesmo dia, os canais de televisão privados da Venezuela, cujos proprietários estavam intimamente envolvidos com os golpistas, começaram a colocar no ar, de 10 em 10 minutos, anúncios convocando o povo para a passeata do dia seguinte, 11 de abril, contra Chávez.

A passeata do dia 11 concentrou-se em torno da empresa petrolífera estatal, a PDVSA, cujos diretores haviam sido demitidos por Chávez. Pouco depois do meio dia, os dirigentes da CTV e Pedro Carmona – presidente da Fedecámaras –, levaram a multidão a voltar-se para o palácio presidencial de Miraflores para exigir a renúncia do presidente. Houve confronto entre os manifestantes e chavistas e, das 14h30 às 18h, ocorreram graves distúrbios nas proximidades do palácio; houve tiroteio, com um saldo de pelo menos 11 mortos e 110 feridos. A mídia venezuelana, envolvida na tentativa de golpe, tentou culpar os chavistas pelas mortes; mentira que foi repetida pelo mundo afora por jornais e canais de televisão.

Depois, ficou comprovado que os responsáveis foram franco-atiradores e agentes da polícia metropolitana, que atiraram contra os manifestantes. Daqueles 11 mortos, nove eram membros dos círculos bolivarianos que estavam nas proximidades do palácio para defender a ordem legal. Após o confronto, um grupo de policiais civis entregou suas armas a Chávez, denunciando que "foram forçados a atirar contra os civis".

A ação dos franco-atiradores foi o pretexto para a tentativa do alto empresariado e da cúpula das Forças Armadas, apoiados pela alta direção da igreja católica, de afastar Chávez. Ocuparam o palácio Miraflores, prenderam o presidente e anunciaram, para o mundo, que ele havia renunciado. Após o fracasso do golpe, o próprio Chávez explicou: "Eles puseram um pedaço de papel na mesa dizendo: ‘Renuncie’, mas eu disse: 'sou um presidente que está sendo preso, mas não vou renunciar’”. O anúncio dos golpistas era mentiroso, e foi o ponto fraco de sua tentativa de afastar o presidente.

Aquela mentira era apenas um pequeno prenúncio do que poderia ter sido o regime que os golpistas queriam iniciar. Organizações de direitos humanos denunciavam, já na sexta feira, dia 12, uma onda de perseguições política. Na noite de 13 de abril, um dia apenas após o golpe, a repressão policial assassinou dezenas de líderes populares nos bairros pobres de Caracas. Naquela noite, agentes da polícia metropolitana, dirigidos por Henry Vivas, caçavam os membros dos círculos bolivarianos, a pretexto de desarmar a população. O general Oscar Gavidia Graterol foi mais claro e disse que os círculos bolivarianos estavam cercados. "É melhor que se acolham à ordem institucional, pois a situação atual é diferente da que vivíamos".

Durante as poucas horas do "mandato" de Pedro Carmona, houve a prisão ilegal de 120 cidadãos, entre eles ministros e deputados, "todos considerados como vinculados a Chávez". Houve também o assassinato de 30 pessoas, até o dia 14, domingo. As prisões arbitrárias e invasões de domicílios foram denunciadas pelo Vicariato de Direitos Humanos da Diocese de Caracas, pela ONG Cofavic e pelo defensor público Germán Mundaraín, entre outros.

O próprio presidente Chávez não passou ileso por esses atentados. Há notícias – que o governo venezuelano não confirma – de que ele teria sido encapuzado e espancado para assinar a renúncia. Outra fonte garante, também, que um coronel da Marinha, envolvido com os golpistas, tinha ordens para assassinar o presidente na ilha de Orcila, caso a tentativa de golpe falhasse. Um soldado daquela guarnição alertou as forças legalistas de que, no sábado, 13 de abril, seria organizada uma operação para resgatar o presidente, preso naquela ilha.

A denúncia, feita por um soldado da base em Orcila, do plano para assassinar Chávez foi um daqueles pequenos grandes gestos que se multiplicaram na resistência contra o golpe. Aristóbulo Istiris, ministro da Educação de Chávez conta que o presidente fora enviado a Orcila em um avião emprestado por Gustavo Cisneros, dono da rede de tevê Venevision, e que havia o risco de ele ser retirado dali na mesma aeronave e levado para o exterior. Mas o mesmo soldado que alertou contra o risco de assassinato foi orientado para desativar uma peça do avião, impedindo-o de levantar vôo.

O Império: poderoso, mas não onipotente

O golpe contra Chávez foi articulado por grandes empresários dos setores petroquímico, e de comunicação, com a participação de um assessor pessoal do ex-presidente Carlos Andrés Pérez. Entre eles destacam-se Gustavo Cisneros, da Venevision; Alberto Ravelli, da Globovision; Mardel Granier, da RCTV (Radio Caracol TV); Isaac Pérez Recao, amigo pessoal de Bush Jr., traficante de armas, herdeiro da família Pérez Recao, um dos principais acionistas da petrolífera Veneco e apontado como o verdadeiro homem por trás de Carmona, que é empregado de suas empresas.

Na madrugada de quinta para sexta feira – depois da prisão de Chávez –, os golpistas divulgaram o decreto com a intenção de suspender a Constituição de 1999 e fechar a Assembléia Nacional e os tribunais superiores. O grupo que redigiu esse decreto, reunido na sede do Comando do Exército – diz a jornalista Patrícia Poleo –, era formado por Pedro Carmona, seu secretário Juan José Mejías, o jurista Alan Brewer, Isaac Pérez Recao e Daniel Romero, secretário particular de Carlos Andrés Pérez; a Opus Dei venezuelana também influiu na redação do decreto de Carmona. Segundo a jornalista, Isaac Pérez Recao era quem orientava Carmona na formação do governo.

A falta de unidade entre os golpistas e os militares ficou explícita nas horas seguintes. Quando anunciou a desobediência a Chávez, o general Efraím Vásquez Velasco tentou enquadrar os demais generais, com êxito duvidoso, como ficou claro quando, em meio a um grupo de generais, advertiu o general García Carneiro, da Terceira Divisão de Infantaria, por ter colocado tanques e tropas nas ruas em defesa do governo. Disse que ele deveria ser preso.

Muitos generais não aceitaram as medidas anunciadas por Carmona e exigiam a apresentação da carta de renúncia de Chávez; a discussão entre eles foi acalorada. "As coisas devem ser feitas de acordo com a Constituição", dizia o general Navarro Chacón, representando o sentimento da maioria dos chefes militares. O grupo que seguia os golpistas reduzia-se cada vez mais e a divisão entre os generais era evidente. Outro sinal claro dela foi a declaração do general Julio Garcia Montoya: "Não somos chavistas, mas tampouco estamos de acordo com o governo Carmona Estanga, por ter dissolvido os poderes políticos e quebrado o elo constitucional".

Há notícias de que, naquela noite, o general Efraím telefonou a Luis Miquilena, a quem disse ter advertido Carmona de que as medidas anunciadas poderiam levar o país a um banho de sangue. "Saio da jogada", teria dito então. No dia seguinte, sábado, o general referiu-se a "erros" cometidos na transição, e enumerou 12 exigências para apoiar o golpe. A primeira delas era o respeito à Constituição Nacional e às leis da República, o que inviabilizaria o golpe, como notou o jornalista Claudio Uriarte, do diário argentino Página 12: isso significava a apresentação de um pedido de renúncia de Chávez à Assembléia Nacional, e a substituição do presidente pelo vice, ou pelo presidente da Assembléia Nacional, ambos do partido Movimento 5ª República (MVR) do presidente Hugo Chávez.

Não era exatamente isso o que os golpistas pretendiam e, por isso, quando estes se colocaram contra a Constituição, também o grosso do Exército se colocou contra o golpe, escreveu Uriarte – situação que se refletiu no refluxo de militares que, no primeiro momento, haviam apoiado o golpe. Já no sábado, uma comissão negociadora foi ao Forte Tiuna, e o diretor da revista Tal Qual, Teodoro Petkoff, saiu de lá dizendo que "os que lideraram o golpe voltaram atrás". Duas horas depois, o general Vásquez e os que o apoiavam no Exército e na Força Aérea retiraram o apoio a Carmona.

Outro protagonista importante desse golpe-chanchada foi o governo dos Estados Unidos, como denunciaram influentes jornais e revistas norte-americanos, como The Washington Post, The New York Times e Newsweek. Eles informaram, no dia 13, que membros da oposição venezuelana visitaram a Embaixada dos EUA em Caracas, em busca de apoio para derrubar Chávez, entre eles militares da ativa, e da reserva, empresários e políticos da oposição. E que essas reuniões, mais freqüentes desde o fim de semana anterior à tentativa de golpe, ocorriam desde o mês de fevereiro deste ano. O embaixador, Charles Schapiro, é considerado um especialista em conspirações e golpes de estado tendo, em sua folha, "serviços" prestados a conspiradores e golpistas em El Salvador, por exemplo.
Segundo The New York Times (18 de abril de 2002), o subsecretário de Estado, Otto Reich, assessorou os golpistas a partir de seu escritório no Departamento de Estado.

Reich, um ultradireitista de origem cubana, é um partidário feroz do bloqueio contra Cuba. Nomeado por Bush como subsecretário de Estado para Assuntos Hemisféricos há poucos meses (interinamente, pois há avaliações de que ele não seria aprovado pela Câmara dos Deputados dos EUA), Reich foi colaborador de Reagan, conspirador no caso Irã-Contras, e é especialista em sabotagem, atentados, e contra-revolução. Ele "foi o arquiteto oculto da conjuração contra Chávez", diz o jornalista francês Ignacio Ramonet, do Le Monde Diplomatique.

Mas o governo norte-americano não perde a pose e, mesmo derrotado, fez advertências ao presidente Chávez que traem o significado da palavra democracia para os poderosos de Washington. A conselheira de Segurança de Bush, Condolezza Rice, por exemplo, advertiu: "Esperamos que Chávez aproveite essa oportunidade para endireitar seu próprio barco que, francamente, está indo na direção errada há bastante tempo". Outro alto funcionário do governo norte-americano foi ainda mais enfático e, no dia 15, disse que "a legitimidade (democrática) é algo que não se baseia apenas na maioria dos votos".

Mas, como escreveu o cientista político argentino Atílio Boron, no Página 12, "ficou demonstrado mais uma vez que o Império é poderoso, mas não é onipotente". A própria reação – inédita – da OEA e dos governos latino-americanos (que em sua maioria condenaram o golpe e o governo de Carmona) mostra que o comando norte-americano na região já não tem o automatismo do passado.

A resistência popular

O levante popular e militar contra a tentativa de depor Hugo Chávez teve início logo no dia 11, quando a marcha oposicionista foi orientada contra o palácio presidencial de Miraflores; naquela noite, um comboio de tanques e caminhões militares partiu do Forte Tiuna, em Caracas, para proteger o presidente. A resistência cresceu na sexta-feira, dia 12, com a generalização de pronunciamentos militares pela legalidade e dos saques de lojas, bancos, shopping centers, pela multidão que exigia a libertação e a permanência de Chávez no poder. As manifestações chavistas convergiam dos bairros pobres de Caracas, depois de uma noite marcada por protestos, prisões em massa e vários atentados contra as liberdades públicas cometidos pela polícia comprometida com os golpistas.

No próprio dia do golpe, as pessoas começaram a mobilizar-se. À noite, houve um panelaço e o começo de concentrações populares diante dos quartéis e do palácio presidencial de Miraflores. Em Caracas, em frente ao forte Tiuna, que é o principal da cidade, havia pelo menos 15 mil pessoas. O povo saía das favelas, dos bairros pobres, das cidades.

A resistência estava em toda parte. O ministro da Defesa de Chávez, José Vicente Rangel conta – e esses são outros exemplos dos pequenos grandes gestos da resistência – que os garçons que serviam água e cafezinho nas reuniões dos golpistas, ou soldados chavistas obrigados a montar guarda, relatavam o que ouviam nas reuniões de Carmona com os golpistas e grandes empresários envolvidos na conspiração.

Quando os oficiais da 42ª Divisão de Pára-quedistas, de Maracay, anunciaram a adesão à resistência, às 13h30 do sábado, eles divulgaram o Manifesto da Operação Restituição da Dignidade Nacional exigindo a apresentação do texto de renúncia de Chávez ou o respeito à Constituição. Escrito em nome dos "soldados cidadãos", o manifesto invocou a Constituição, jurou defendê-la, denunciou a junta, "que usurpou o poder", exigiu o "fim imediato da matança" promovida por policiais, e denunciou a existência de uma lista de pessoas a serem mortas. O levante militar de Maracay foi acompanhado pelo governador de Aragua, estado onde aquela base está localizada, que liderou um protesto popular contra o golpe. Outra unidade do Exército, em Valencia, cidade próxima a Maracay, também se sublevou.

Mas o sentido da resistência era mais profundo. "A luta é das classes pobres contra os ricos", diz uma pichação em um muro na subida da favela Barrio Corazón de Jesús, no centro de Caracas. Ela exprime o sentimento, e a radicalização, do povo pobre na Venezuela. Povo que viveu, da sexta-feira para o sábado, uma noite de intensa movimentação legalista. Ramón Reyes, morador da periferia da capital e coordenador de um círculo bolivariano, contou que "nós, dos círculos, passamos de casa em casa para trazer gente. Foi um sucesso", orgulha-se. Com razão, pois conseguiram lotar as ruas de manifestantes que agitavam bandeiras e fotos do presidente e exigiam sua volta. O aeroporto internacional de Caracas, a 20 quilômetros do centro da cidade, ficou isolado quando a estrada que dá acesso a ele foi fechada por um panelaço dos moradores dos bairros pobres do local. O palácio presidencial de Miraflores, por sua vez, foi cercado por populares (chegou-se a avaliar seu número em 100 mil). A maioria deles era de moradores das favelas de Caracas. "Quem veio para cá, quem está aqui, é o povo da Venezuela", dizia um deles. "Aqui, lutamos contra a humilhação e a riqueza", dizia Ramón Reyes. Dizia-se também que camponeses vinham, de ônibus, de toda a Venezuela, para Caracas, para proteger o presidente.

Os Círculos Bolivarianos foram criados por Chávez e são odiados pela classe dominante venezuelana. Eles formam o sistema de organização básica do povo para participar da luta política. Eles podem ser formados nos locais de moradia ou nas empresas, e seu número oscila entre 7 e 11 membros. Seus membros, escolhidos por qualidades pessoais, discernimento político e fidelidade à luta do povo, prestam o seguinte juramento: "juro pela pátria ser sempre leal ao pensamento do Libertador Simon Bolívar, defender a Constituição da República Bolivariana da Venezuela e servir com coragem e honestidade, de forma solidária e co-responsável aos interesses da comunidade".

Foram os círculos bolivarianos que promoveram o cerco às sedes das redes privadas de televisão e dos jornais conservadores, revoltados pela campanha de boatos, mentiras e desinformação que promoveram desde a posse de Chávez, e principalmente pela tentativa de enganar a população com a notícia da renúncia do presidente desde a noite da quinta-feira.

Se os meios de comunicação, principalmente as redes de televisão, dominados pelos golpistas, afastaram-se de sua função pública de informar e esclarecer, o uso dos meios modernos de difusão de informações teve um papel central na articulação da resistência, como reconhece Aristóbulo Istiris, ministro da Educação de Chávez. Uma coisa que ajudou muito, disse ele, foi o envio por fax do bilhete assinado pelo presidente assegurando que não havia renunciado. Esse documento foi "divulgado principalmente pelos meios alternativos, Rádio Perola, todos esses meios que inventamos. As pessoas ficaram muito indignadas ao descobrirem que foram enganadas dessa maneira. Por isso, começaram a aglomerar-se frente aos canais de televisão, para que dissessem a verdade".

Outro aspecto importante da resistência foi a atitude dos deputados do MVR e do presidente da Assembléia Nacional, William Lara, que denunciou o golpe, desde o primeiro momento, as perseguições contra os chavistas e a ilegalidade do novo poder. Na sexta-feira, após o anúncio do fechamento do parlamento e dos tribunais, Lara disse que Carmona seria responsável por qualquer atentado contra parlamentares, e foi apoiado inclusive por alguns deputados conservadores da AD (Ação Democrática, de Carlos Andrés Pérez) e do Copei (Comitê de Organização Política de Eleições Independentes, social cristão). Lara foi claro: "Estamos frente a uma ditadura. Rechaçamos o decreto desse ditador e nos declaramos deputados porque só o povo tem a faculdade de tirar nossos mandatos". No dia seguinte, sábado, os parlamentares ocuparam a sede da televisão estatal e instalaram ali a Assembléia Nacional, encabeçada por seu presidente, William Lara, que fez uma proclamação declarando não reconhecer o governo instalado pelos golpistas.

O sucesso dos golpistas durou pouco. No sábado, os partidários de Carmona o retiraram do palácio Miraflores que, rodeado por manifestantes chavistas e por tropas não confiáveis, não oferecia segurança para aqueles que tentavam usurpar o poder. Era o constrangedor começo do fim da aventura. Os convidados para a "posse", de roupas elegantes, jóias e cabelos fixados com gomalina, ficaram expostos a sustos, espremidos entre a multidão que estava nas ruas e a Guarda Presidencial de Honra, legalista, que ocupara o palácio. Mesmo no forte Tiuna não havia segurança para eles – a guarnição logo cairia em mãos de oficiais e soldados legalistas e lá Carmona viveu os últimos momentos como presidente tentando desfazer o que fizera na madrugada do golpe. Lá ele foi preso depois da derrota do golpe. E o presidente Hugo Chávez reassumiu o cargo no palácio Miraflores, às 3 horas da madrugada do dia 14.

O governo Chávez

Os chavistas descrevem seu governo como uma democracia participativa, para contrapor-se à democracia política tradicional, em que os cidadãos votam nos governantes, mas não têm poderes para fiscalizar sua ação nem meios para participar da tomada de decisões.
Pode haver controvérsia a respeito, mas os acontecimentos dos dias 11 a 14 de abril mostraram o sentido dessa participação, o amplo apoio ao presidente e o enraizamento de seu projeto entre oficiais das Forças Armadas e entre as camadas mais pobres da população.

Entre os militares, o governo de Chávez corresponde a um sentimento de orgulho nacional que não havia quando o país era dirigido pela corrupta oligarquia afastada do comando político desde 1999. E cresce, também, em muitos setores militares, a consciência antiimperialista que impõe, entre os serviços à Pátria, não só a defesa nacional, mas também o esforço para combater a pobreza da maioria da população e construir uma nação autônoma, dotada de instituições democráticas estáveis. Nesse sentido, eles fazem parte do leque de alianças das forças nacionalistas e progressistas.

Entre o povo, além do sentimento nacional – que cresce – há a percepção imediata, palpável, das melhorias alcançadas nestes três anos de revolução bolivariana. Foram criados mais de 450 mil novos postos de trabalho, a Venezuela subiu quatro pontos no IDH, aumentou em 25% o número de crianças escolarizadas (mais de 1,5 milhões de crianças passaram a freqüentar as escolas, recebendo roupa, três refeições por dia, além de assistência médica e dentária, um luxo com que jamais sonhavam) e dobrou o investimento feito em educação; foram feitas campanhas massivas de vacinação nos setores marginalizados da população; a mortalidade infantil diminuiu de 21 para 17 por mil; estão sendo construídas 135 mil casas populares; a reforma agrária está sendo feita; foi criado o Banco da Mulher, que dá micro-créditos para pequenos negócios; o desemprego caiu de 18 para 13%. A corrupção é combatida com vigor, os sistemas legal e tributário foram modernizados, o país conquistou melhores preços para o petróleo e, em 2001, a Venezuela foi um dos países com maior taxa de crescimento na América Latina, cerca de 3%.

Estas mudanças correspondem a um movimento profundo que ocorre na Venezuela, do qual, a crise política ocorrida nos anos 1980 e 90 é apenas a parte visível. E que as classes dirigentes locais são incapazes de perceber e reconhecer, em virtude de sua profunda alienação e perda da percepção de seu próprio papel histórico. A própria articulação golpista (ou desarticulação…) reflete essa alienação, na medida em que os conspiradores consideraram que a cadeia de comando nas Forças Armadas funcionaria de forma automática, e que os oficiais de patentes inferiores e os soldados apoiariam cegamente as determinações dos generais golpistas, sem perceber que, como em qualquer revolução, a cadeia de comando havia sido rompida e parte importante, dos soldados e oficiais, apoiado a exigência de mudanças. O golpe mostrou uma possibilidade nova, a de que o "soldado-cidadão" pudesse sentir-se leal a outras forças, à voz das ruas, rompendo a subordinação e obediência que o liga aos altos comandos. Atílio Boron reconheceu o óbvio, no jornal Página 12, quando disse: "As recentes declarações das Forças Armadas demonstram que o chavismo é um fenômeno que cala mais fundo não só na sociedade civil, mas também no aparato militar".

Entre os civis, a alienação da classe dirigente foi estampada em comentários publicados pela imprensa local no dia do golpe e nos seguintes, expressando a profunda oposição às mudanças promovidas por Chávez. Luis Alvaray (El Mundo, 13 de abril de 2002) comemorou o golpe escrevendo que os três anos de Chávez "pesaram como uma lápide" na Venezuela. O analista político Humberto Njaim, no mesmo jornal e no mesmo dia, proclamou a presença de um "novo protagonista político", a "sociedade civil", cujo movimento para depor Chávez "não foi um golpe de Estado, ou militar, mas foi um golpe de pessoas, e um golpe civil", para libertar "o setor mais ilustrado da sociedade venezuelana" da "opressão de uma tirania".

Depois da derrota dos golpistas, o tom mudou. A analista Andréa Imaginário (!), da revista Analítica acusou Chávez de tentar transformar em diferenças políticas "as diferenças econômicas e sociais da Venezuela", jogando pobres contra ricos. A Senhora Imaginário, provavelmente, não prestou atenção à frase pichada no muro da favela Barrio Corazon de Jesús e repete, como muitos arautos da modernidade conservadora pregada pelo neoliberalismo, que a divisão política da sociedade é mais complexa, e não pode ser interpretada no marco teórico da luta de classes. Mas reconhece, perplexa, que o principal foco do apoio a Chávez está entre os pobres. A oposição contra Chávez é muito dividida, escreveu, enquanto os "chavistas são muito mais organizados na base. Isso ficou claro no fim de semana quando, de surpresa, uma multidão apareceu nas ruas".

Uma surpresa para ela e para tantos outros que, cegos e indiferentes às mudanças históricas mais profundas, não reconhecem, ou não aceitam, o protagonismo político e democrático das massas.
Há um conjunto de transformações de caráter democrático burguês que as classes dirigentes da América Latina até hoje foram incapazes de promover. Ao contrário, elas se opõem a essas mudanças que colocam em xeque o sistema de dominação em que seu domínio se formou, e no qual vivem e se reproduzem, intensificando a exploração de seus povos, impedindo seu desenvolvimento democrático e amparando-se, nos momentos de crise, na força dos dominantes estrangeiros. No passado, na força imperial britânica; hoje, no imperialismo norte-americano. Na Venezuela, joga-se um capítulo importante dessa luta para a libertação do povo e da nação. Estas são as contradições que a revolução bolivariana, democrática, popular e pacífica – como Chávez a proclama – enfrenta.

É preciso ressaltar que a vitória contra o golpe não significa a derrota definitiva da reação e do imperialismo. Ao contrário, a recusa da oposição antichavista ao diálogo indica sua disposição em manter a tensão. Carlos Ortega, o pelego dirigente da CTV, reitera a "defesa dos trabalhadores" contra Chávez, enquanto os partidos conservadores, principalmente a AD e o Copei, e o Movimento Para o Socialismo (MAS), também de oposição, exigem "atos de retificação" que, na verdade, significam o abandono do programa bolivariano.

As declarações do ex-presidente Carlos Andrés Pérez, cassado por corrupção em 1993 e condenado a 2 anos e 4 meses de cadeia em 1996, profundamente envolvido com os golpistas ao jornal espanhol El País logo depois da derrota do golpe, também indicam essa disposição conspirativa. "A situação na Venezuela está confusa", disse. "Creio que virá mais violência, pois os ânimos estão mais enlouquecidos e os Círculos Bolivarianos demonstraram que eram uma verdade; que foram treinados em Cuba e atuam a favor de Chávez", repetindo um bordão soprado pelos serviçais do Departamento de Estado. "Agora", disse, "Chávez é mais perigoso que nunca". "É preciso continuar a luta", disse aquele ex-presidente que mandou a polícia atirar no povo em 1989 e manchou suas mãos com o sangue de centenas de populares mortos.

José Carlos Ruy é jornalista e membro do Comitê Central do PCdoB.

Parlamentares brasileiros se encontram com Chávez
Rita Polli

Uma comitiva de solidariedade chefiada pelo deputado Aldo Rebelo (PCdoB/SP) conversou durante mais de duas horas com Hugo Chávez no Palácio Miraflores, no dia 29 de abril ultimo. O Presidente mostro-se sensibilizado com a visita e afirmou que a o saber da manifestação de apoio de Parlamento Brasileiro fez questão de ler a nota de solidariedade da Comissão de Relações Exteriores em cadeia nacional de televisão,

Aldo Rebelo (PCdoB/SP), Arlindo Chinaglia (PT/SP), Artur Virgílio (PSDB/AM), líder do governo; Eduardo Campos (PSB/PE), e de Velasco (PFL/SP), ao lado do embaixador do Brasil em Caracas, Rui Nogueira, e do ex-deputado Fernando Gasparian, ouviram de Chávez um relato pormenorizado da tentativa de golpe. Ele afirmou que o fracasso dos golpistas deveu-se à reação do povo mais pobre da Venezuela e á imediata manifestação dos oficiais e soldados do Exercito. O presidente esta confiante no funcionamento do fórum do “dialogo nacional”, já instalado e composto por representantes do governo e da oposição, para que o processo democrático seja fortalecido.

A ajuda dos Estados Unidos aos golpistas foi confirmada por Chávez. Ele disse que foram feitos registros da presença de oficiais do exercito norte-americano no Forte Tiúna. Segundo o jornal The Gardian (30/4) os golpistas atuaram também nas ilhas do Caribe, de onde enviavam informações aos Estados Unidos.

Para Aldo Rebelo, “Brasil e Venezuela têm objetivos comuns na defesa da independência e da autonomia dos países latinos e podem jogar um papel muito importante na busca de uma caminho comum para a integração na América do Sul e no mundo”.

Chávez falou sobre a intenção da Venezuela de fazer parte do Mercosul, e que quer ser parceiro do Brasil nas ações em favor da soberania dos dois países diante da Alca. O presidente considerou grandes feitos do povo venezuelano e a retomada do poder e o restabelecimento da democracia.
Os deputados brasileiros reafirmaram que a visita representava a ampliação, o fortalecimento e a consolidação dos laços de cooperação e de amizade entre os dois países. Eduardo Campos informou que as relações de aproximação são julgadas prioritárias pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados e que a missão havia sido marcada antes dos acontecimentos de 11 de abril. “Os 220 quilometros de fronteiras com a Venezuela serão um reforço na consolidação do processo democrático e de respeito ao governo legitimamente eleito pela vontade do povo”, afirmou Campos.

EDIÇÃO 65, MAI/JUN/JUL, 2002, PÁGINAS 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31