Na segunda metade do século XX ganhou força o debate sobre quais seriam as fronteiras que separariam a classe operária das demais camadas de trabalhadores assalariados. Em outras palavras: O que é o proletariado moderno?

Para as organizações socialistas esta questão não é secundária, ela tem implicações políticas de vulto. Os defensores de uma conceituação mais restrita de proletariado (proletariado = operário fabril) alegam que as conseqüências de se aceitar todos os assalariados como membros do proletariado seriam: a diluição do papel central dos operários manuais no processo de transição revolucionária para o socialismo refletiria no conteúdo de classe e na forma do partido revolucionário de vanguarda e isto, por sua vez, teria reflexo direto no próprio projeto de construção do socialismo.

Os autores que defendem uma conceituação ampliada de proletariado (proletariado = assalariados) acreditam que uma visão restrita de proletariado conduziria o movimento socialista a um beco sem saída, visto o processo de redução da classe operária tradicional na sociedade capitalista contemporânea. Outra questão estaria ligada ao modelo de construção do socialismo: um conceito de proletariado restrito levaria à constituição de um poder socialista assentado numa minoria das classes trabalhadoras, podendo conduzir à restrição democrática do poder político, ou seja, a “ditadura do proletariado” poderia se constituir numa ditadura de uma minoria.

A proletarização da classe média

No final da década de 50 a revista internacional Problemas da paz e do socialismo, ligada ao PCUS, resolveu realizar um intercâmbio de opinião sobre a estrutura da classe operária nos países capitalistas. O intercâmbio culminou com um encontro de centros de estudos científicos e de revistas marxistas de vários países.

A conclusão desse evento foi de que, na dinâmica do capitalismo na sua fase monopolista, o número de operários manuais, ligados diretamente à produção de bens materiais, tenderia a se reduzir enquanto que o número de trabalhadores não diretamente produtivos a aumentar. Esta, afinal, teria sido uma previsão do próprio Marx, que afirmou: “O aumento extraordinário da forças produtivas, nas esferas da grande indústria, acompanhado como está de uma exploração cada vez mais intensa e extensa da força de trabalho de todos os demais ramos da produção, permite empregar improdutivamente a uma parte cada vez maior da classe operária.” (Rumiántsev, 1963:24)

Esses autores se negaram a reduzir o conceito de proletariado ao de operário fabril, diretamente produtivo. Essa confusão teria sido introduzida pelos “sociólogos burgueses” para os quais o conjunto dos trabalhadores não-manuais comporia uma nova classe média, distinta e em contradição com os operários fabris. A despolarização da sociedade descentralizaria também o problema da luta de classe e garantiria a estabilização do capitalismo. Ficaria, assim, demonstrada a falsidade da tese de Marx sobre a proletarização das camadas médias.

O critério de definição de classe não poderia ser reduzido à relação direta (física) com os meios de produção, expressa na contraposição entre trabalho manual e intelectual. A diferença fundamental da situação da classe do proletariado não seria a união direta com os meios de produção, e sim a sua separação dos mesmos. O fundamental, portanto, para determinação de classe seria a relação de propriedade e não-propriedade que se estabeleceria com os meios de produção e o assalariamento. Estes dois fatores determinariam outros aspectos, como nivelamento dos níveis de vencimento, instabilidade no emprego, etc.

Assim, os trabalhadores em comércio e nos bancos comporiam a classe operária moderna porque além de não proprietários, seriam assalariados. Mas existe outro fator fundamental: apesar de não produzirem mais-valia, eles criariam as condições para que os capitalistas que os exploram se apropriassem de uma parte da mais-valia, expropriada dos operários fabris. Eles, portanto, seriam fundamentais para a reprodução ampliada do capital.

Por isso – apesar de não produzirem diretamente mais-valia –, esses assalariados poderiam ser considerados produtivos. Para Marx seria produtivo, no sentido amplo, o “trabalho que produz mais-valia ou que serve ao capital de meio de produzir mais-valia e transformar-se, por conseguinte, em capital, em valor produtivo de mais-valia”. A segunda parte dessa afirmação se refere justamente ao trabalho dos empregados no comércio e nos bancos. Assim, Marx não limitaria o conceito de trabalhador produtivo ao de operários fabris diretamente vinculados à produção de bens materiais. Segundo o encontro internacional, a estrutura profissional e as condições de vida dos assalariados intelectuais (engenheiros, técnicos e profissionais de nível médio ou universitário) haviam se transformado muito no curso das décadas precedentes, “a tendência a proletarização predominou nitidamente sobre a tendência de aburguesamento, antes de tudo porque a imensa maioria dos intelectuais perdeu sua ‘posição independente’. Por isso deve se dizer que a maior parte dos trabalhadores intelectuais se fundiu com a classe operária”. (Rumiántsev, 1963:35 – grifo nosso) Esses autores, então, utilizam-se do conceito de “proletário do trabalho Intelectual”, no qual seriam incluídos, inclusive, os advogados das grandes empresas capitalistas; contanto que estes fossem assalariados e não empregassem força de trabalho alheia.

Para esses autores, “o processo de nivelamento do caráter do trabalho dos distintos setores da classe operária leva objetivamente à aproximação ideológica da massa fundamental dos trabalhadores não-manuais com o núcleo do proletariado e vai inculcando neles a consciência de classe”. No entanto, reconhecem que as coisas são muito mais complexas. A “aproximação ideológica com o núcleo do proletariado” ainda seria uma promessa não realizada.

A luta desses assalariados não-manuais “não estaria isenta de inconseqüências nem os levaria sempre a abraçar a ideologia proletária. Abundam os obstáculos, sobretudo em uma esfera onde seria particularmente lenta a evolução: na esfera da consciência, que nos empregados estaria sobrecarregada de individualismo e de tradições pequeno-burguesas”. Mas seria “no fogo da luta onde os trabalhadores, individualmente ou em grupos, perceberiam plenamente o seu pertencimento à classe operária” e ocorreria a “proletarização da consciência dos empregados”. (Rumiántsev, 1963:45/47).

Contracorrente – reafirmando a classe operária

Em contraposição às teses predominantes no movimento comunista, que defendem a proletarização da classe média e a incorporação do conjunto dos assalariados urbanos nas fileiras da classe operária, surge uma nova corrente dentro do marxismo que nega essa possibilidade. O principal expoente dessa corrente foi Nicos Poulantzas.

O debate sobre o pertencimento de classe dos “assalariados médios” fez parte da grande disputa no movimento comunista internacional entre os intelectuais pró-soviéticos e os intelectuais pró-chineses, que estavam impressionados com a crítica chinesa ao revisionismo moderno e com a experiência da “grande revolução cultural proletária”.

Os denominados comunistas anti-revisionistas condenavam as mudanças de rumo ocorridas na URSS. Segundo esses autores a tentativa soviética de eliminar a nítida divisão entre a pequena-burguesia e a classe operária teria por objetivo justificar o modelo de construção socialista russo, que manteria a divisão entre trabalho intelectual e manual, o despotismo fabril, a burocratização do Estado e da economia.

Poulantzas e a nova pequena burguesia

Poulantzas travou uma luta teórica contra as correntes que negavam a especificidade de classe desse novo conjunto de trabalhadores assalariados não-produtivos, que se desenvolveu na fase monopolista do capitalismo, incluindo-o nas fileiras da classe operária. Discorda da tese de que estaria ocorrendo uma fusão entre os trabalhadores não-manuais/intelectuais com a classe operária.

A principal conseqüência dessa tese (fusão dos assalariados médios e dos operários numa única classe), seria que ela acabaria omitindo as divergências existentes entre esses dois grupos de trabalhadores, “pervertendo a longo prazo os interesses próprios da classe operária, única classe revolucionária até o fim” (Poulantzas, 1975:221). O reconhecimento de que esses assalariados médios (não-manuais e não-produtivos) não pertencem à classe operária, “é essencial para o estabelecimento de uma base justa de aliança popular, sob direção e hegemonia da classe operária”. (Poulantzas, 1975:221).

Para Poulantzas, esse novo conjunto de assalariados (não-manuais e não-produtivos) pertenceria a uma outra classe: a pequena-burguesia. Mais precisamente a uma fração desta: a nova pequena-burguesia. Embora a nova pequena-burguesia e a pequena-burguesia tradicional tenham posições diferentes no nível das relações de produção (relação de propriedade e de assalariamento), elas têm, no plano político e ideológico, bastante proximidade e é isso que lhes permite incluir os dois grupos sociais em uma mesma e única classe.

Assim, a determinação estrutural de classes não se referiria exclusivamente ao nível das relações econômicas, no sentido restrito, mas abrangeria outros dois níveis: o das relações ideológicas e o das políticas. Seria a articulação complexa desses três níveis que permitiria determinar o pertencimento de classe dos diversos agrupamentos sociais.

Seria justamente o rompimento com as concepções economicistas das classes sociais que permitiria compreender o lugar desses agrupamentos de assalariados não-manuais e não-produtivos. Conforme afirmou Poulantzas, “a referência às relações políticas e ideológicas é absolutamente indispensável para circunscrever o lugar da pequena-burguesia na determinação estrutural de classe: não somente para fundamentar o pertencimento da pequena-burguesia tradicional e da nova pequena-burguesia a uma mesma classe, mas também e, sobretudo, a fim de entender esse lugar da nova pequena-burguesia em relação à classe operária”. (Poulantzas, 1975:224)

Poulantzas reconhece as diferenças importantes existentes entre esses dois agrupamentos sociais. A pequena-burguesia tradicional seria originária de um modo de produção anterior ao capitalismo e tenderia a desaparecer, a nova pequena burguesia cresceria e se fortaleceria com o desenvolvimento do capitalismo monopolista. Além disso, essa nova pequena-burguesia, ao contrário da anterior, não teria a propriedade dos meios de produção e exerceria um trabalho “remunerado sob a forma de salário”. (Poulantzas, 1975:227).

Mas, então, por que Poulantzas não a incluiu nas fileiras do proletariado?

Segundo ele, o conceito de classe operária (e de proletariado) estaria vinculado ao de trabalho produtivo estrito senso. “A classe operária é delimitada (…) pelo trabalho produtivo”, conclui o nosso autor, e trabalho produtivo não se confundiria com trabalho manual. Trabalho produtivo seria aquele que produz diretamente a mais-valia, que valoriza o capital e que é trocado pelo capital.

Os assalariados da nova pequena burguesia (comerciários, bancários, etc) não produziriam mais-valia e, portanto, não pertenceriam às fileiras da classe operária. Esses trabalhadores “contribuiriam simplesmente para repartição da massa da mais-valia entre as frações do capital, segundo a taxa média de lucro. Certamente, esses trabalhadores assalariados são também explorados, e seu salário corresponde à reprodução de sua força de trabalho. (…) são extorquidos do sobretrabalho, mas não são explorados diretamente, segundo a relação de exploração capitalista dominante, a (sic) criação de mais-valia”. (Poulantzas, 1975:230).

O autor avança na sua definição de trabalho produtivo, dando-lhe um sentido bastante restrito. A mais-valia deveria ser produzida através de um trabalho que intervém diretamente na produção material, ou seja, é preciso que haja uma relação direta/física com os meios de produção. O trabalho manual, portanto, seria uma das características essenciais na definição de classe operária. Nega assim as conceituações ampliadas de proletariado e de trabalho produtivo que incluiriam, segundo indicações do próprio Marx, o “trabalhador coletivo”.

No entanto, uma das principais distinções entre os assalariados da nova classe média e a classe operária estaria relacionada com a separação entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. Afirma Poulantzas: “essa divisão trabalho intelectual/trabalho manual não somente se limita a uma divisão técnica do trabalho, mas constitui de fato, em todo modo de produção dividido em classes, a expressão concentrada da correspondência das relações políticas e ideológicas (político-ideológicas nesse sentido) na sua articulação com as relações de produção”. (Poulantzas, 1975:253).

A relação, ou polarização, que se estabeleceria entre os diversos segmentos dos assalariados e o trabalho manual e intelectual seria uma condição para constatar o pertencimento de classe de cada um desses grupos de trabalhadores. Conforme se localizem do lado do trabalho intelectual (ou não-manual) ou do trabalho manual, poderiam ser definidos como operários ou como nova pequena-burguesia.

O trabalho manual na consciência pequeno-burguesa estará sempre relacionado com “um trabalho mais penoso, um trabalho que requer, na ordem de sua valorização do trabalho intelectual, menos ‘conhecimentos’, menos ‘aptidões’, um trabalho ao qual falta o ‘não sei o quê’ que faz a ‘qualidade’ e a ‘superioridade intelectual’” (Poulantzas, 1975:281). Essa determinação estrutural ideológica, divisão trabalho intelectual/trabalho manual, seria sempre uma barreira de classe entre a nova pequena-burguesia e a classe operária.

Uma outra distinção, que se articularia com a anterior, seria a existência de uma divisão entre funções de controle/supervisão e de execução, que acabaria reproduzindo uma relação de dominação no próprio interior do processo de produção. Os engenheiros, técnicos, baixa gerência não fariam parte da classe operária justamente porque exerceriam funções de direção delegadas pelo capital cujo principal objetivo é extrair a mais-valia dos operários manuais. Eles seriam “os portadores da reprodução das relações ideológicas no próprio seio do processo de produção material” (Poulantzas, 1975.). As distinções entre trabalho intelectual e manual, entre funções de controle e de execução não seriam naturais, ditadas pela técnica moderna, elas seriam constituídas histórica e socialmente e deveriam começar a ser superadas durante a construção do socialismo.

O processo de burocratização das empresas e instituições modernas, ao contrário do que a maioria dos teóricos marxistas afirma, não aproximaria os assalariados da pequena-burguesia dos operários. Poulantzas não aceita, pois, a tese de que a burocratização seria uma forma particular do despotismo fabril, e por isso mesmo teria sobre os assalariados pequeno-burgueses os mesmos efeitos (ideológicos) que o despotismo fabril teve sobre os operários.

A burocratização reproduziria e fortaleceria aspectos da ideologia pequeno-burguesa, por exemplo, a “tendência a exercer relações induzidas de autoridade e de segredo do saber sobre os agentes subalternos”. (Poulantzas, 1975:300). O papel da carreira no processo de burocratização só faz reforçar a ideologia meritocrática da ascensão social entre a pequena-burguesia.

No despotismo fabril a burguesia dominaria e oprimiria a classe operária. Através dele buscaria aumentar o nível de exploração de mais-valia. Por outro lado, o despotismo não permitiria a criação de relações de dominação/subordinação entre os próprios operários. As condições de trabalho da classe operária, vinculadas ao processo de socialização do trabalho produtivo, anulariam, ou pelo menos minimizariam, as tentativas da burguesia de impor fragmentações assentadas na hierarquia, na polarização entre trabalho intelectual e manual. A própria condição operária seria contraditória com a hierarquização burocrática de funções.

Segundo Poulantzas, os principais traços ideológicos dessa nova pequena-burguesia seriam: o anticapitalismo, mas que se inclinaria fortemente em direção às ilusões reformistas; hostilidade à “grande riqueza”, mas articulada a defesa da manutenção das hierarquias salariais. O principal motivo de sua ação seria ainda o medo da proletarização, ou seja, o medo de qualquer transformação revolucionária que possa ameaçar os “privilégios” de sua condição de trabalhador não-manual. Na consciência pequeno-burguesa polarizada pelo proletariado, o limite estaria na aceitação da socialização das forças produtivas entendida apenas como estatização dos meios de produção. O estatismo, nas suas mais diversas formas, tem sido também uma das características da ideologia pequeno-burguesa no seu conjunto.

No entanto, algumas frações da nova pequena-burguesia possuem condições mais favoráveis para uma aliança com a classe operária, colocando-se, inclusive, sob a sua direção. A fração de assalariados não-produtivos mais próxima dos operários manuais é representada pelos assalariados de base do setor comercial. Estes estariam mais próximos da barreira que separa o trabalho intelectual do manual. Eles estariam nos limites da condição de classe operária, embora ainda não possam se fundir com ela. Esta fração foi também a menos afetada pelo processo de burocratização do trabalho não-produtivo. (Poulantzas, 1975:352). Este seria o único setor da nova pequena-burguesia que teria conhecido um verdadeiro processo de proletarização.

Aqui se encontra um dos limites da análise de Poulantzas. Por que a condição de produtores de mais-valia, o trabalho produtivo estrito senso, deveria ser o principal critério de definição de classe operária? Como ficariam os assalariados não-produtivos (de mais-valia) que não exercem nenhum trabalho de supervisão e que realizam um trabalho majoritariamente, ou exclusivamente manual? Os exemplos mais típicos dessa situação são os faxineiros das grandes empresas capitalistas ligadas ao setor financeiro (ou comercial) e os motoristas de ônibus urbanos. Não teríamos, aqui, a volta de uma concepção economicista das classes sociais tão criticada por Poulantzas?

A dificuldade de construir um conceito marxista de proletariado, entre outras coisas, se deve ao fato de que o próprio Marx jamais definiu de maneira clara, inequívoca, o que seria o proletariado moderno. Embora o conceito não seja explicitado podemos afirmar que não seria uma leitura forçada afirmar que no conjunto de sua obra existe uma tendência a encarar a classe dos proletários como o conjunto dos assalariados produtivos (produtivos para o capital), incluindo os trabalhadores não-manuais e os agentes da “produção imaterial”.

Marx chegou a escrever: “Nos estabelecimentos de ensino (…) os professores, para o empresário do estabelecimento, podem ser meros assalariados; há grande número de tais fábricas de ensino na Inglaterra. Embora eles não sejam trabalhadores produtivos em relação aos alunos, assumem essa qualidade perante o empresariado (…) O ator se relaciona com o público na qualidade de artista, mas perante o empresário é trabalhador produtivo”. (Marx, Teoria da Mais Valia, vol.1, p.404).
Sobre os comerciários Marx afirmaria: “O trabalho não-pago desses empregados, embora não crie mais-valia, permite-lhe apropriar-se de mais-valia, o que para esse capital é a mesma coisa (…) É produtivo, para o capitalista, não por criar mais-valia diretamente, mas por concorrer para diminuir os custos de realização de mais-valia, efetuando trabalho em parte não-pago”. (Marx, O Capital, Livro 3, Vol. 5, p. 345)

Embora concordemos que o conjunto desses assalariados compõe uma única e mesma classe, o proletariado, não acredito que seja possível afirmar que exista uma fusão entre todos assalariados (manuais/não-manuais,produtivos/ não- produtivos), que se traduziria na constituição de uma única ideologia, um único partido e um único projeto societário – modelo único de socialismo.
Utilizando livremente uma contribuição teórica do próprio Marx em suas obras histórica, podemos afirmar que a classe proletária, como a burguesia, não se compõem enquanto um bloco monolítico, sem fissuras. Ele se divide, e se subdivide, em frações e camadas distintas. Cada uma dessas frações, e camadas, são portadoras de ideologias próprias e, por conseguinte projetos societários e formas de organização políticas também diferenciados. Utilizamos aqui também uma preciosa indicação de Marx para o qual “entre o empregado do comércio e os trabalhadores diretamente empregados pelo capital industrial deveria se dar a mesma diferenciação que se dá entre o capital industrial e o capital mercantil”. (Marx, O Capital, Livro 3, Vol. 5, p. 345)

Analisemos o caso das frações da burguesia. Embora a burguesia comercial não extraísse diretamente a mais-valia dos operários, como ocorre com a burguesia industrial, não deixa de compor com esta uma única e mesma classe – a classe burguesa. O interesse que as unem é a manutenção do sistema capitalista. Mas, em conjunturas nas quais este interesse fundamental não está ameaçado, elas podem se confrontar em relação às políticas econômicas a serem adotadas pelos governos capitalistas, se organizar em entidades corporativas e partidos distintos. Estas desavenças não raramente desembocaram em conflitos armados (golpes de Estado, guerra civil e revoluções).

Se no processo da revolução burguesa a sua fração industrial teve o papel de vanguarda, unificando e às vezes combatendo outras frações de sua própria classe, no processo da revolução socialista caberá à classe operária estrito senso o papel de vanguarda. Portanto, o futuro do socialismo não é indiferente em relação a qual fração de classe do proletariado estará à frente do processo revolucionário e de construção do novo Estado socialista.

Nenhuma das frações, ou camadas, do proletariado tem interesse na manutenção indefinida do modo de produção capitalista. Como assalariados não têm interesse especial pela manutenção da apropriação privada dos meios de produção. E justamente por isso podem se unificar num projeto de transição revolucionária. Mas existe uma forte tendência nos setores médios – assalariados intelectuais – em apostar nas saídas reformistas e de obstaculizarem o próprio processo de transição do socialismo ao comunismo.

A transição para ser bem sucedida, e não ficar incompleta, deve romper com a burocratização da vida social – eliminando gradualmente o Estado – e a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, ou seja, não basta a estatização dos meios de produção é preciso também que sejam revolucionarizadas as relações de produção. A ideologia (meritocrática) particular dessa fração do proletariado é avessa a essas tarefas essenciais no processo de transição. Nesse sentido podemos afirmar que grande parte da descrição que Poulantzas faz da ideologia desses “assalariados médios” é correta.

Isto, no entanto, não nos deve fazer aceitar as suas teses que incluem esses “assalariados médios” na chamada classe dos pequeno-burgueses. As diferenças entre eles e os pequenos-proprietários e profissionais autônomos, são muito grandes. Não só em relação aos meios de produção (relação de propriedade e não-propriedade) e o assalariamento, mas também em relação à ideologia. Entre outras coisas, os assalariados não têm um apego especial a apropriação privada dos meios de produção, visto que não são proprietários e esse fato tem conseqüências políticas importantes na luta revolucionária.

A incorporação dessa fração do proletariado no processo revolucionário e de construção do socialismo não será fácil, pelos limites apresentados acima, mas ela é possível. Será ainda necessário um grande esforço político-prático da classe operária, dirigida pelo seu Partido de vanguarda, para afastar importantes setores dos assalariados não-manuais, impregnados por preconceitos pequeno-burgueses (anti-socialistas), das malhas complexas da ideologia burguesa.

Augusto César Buonicore é historiador e membro da direção nacional do PCdoB.

Referências
MARX, Karl (1974) O Capital. Livro 3, Volume 4. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro.
______ (1987) O Capital. Livro 4, Vol.1 (Teorias da Mais-Valia). Bertrand Brasil: Rio de Janeiro.
______ (1978) O Capital. Livro 1, Capítulo VI (Inédito). Ciências Humanas: São Paulo.
POULANTZAS, Nicos (1975). As Classes Sociais no Capitalismo de Hoje. Zahar: Rio de Janeiro.
RUMIANTSEV, Alexei (1963). La Estrutura de la Clase Obrera de los Países Capitalistas. Paz e Socialismo: Praga.

EDIÇÃO 64, FEV/MAR/ABR, 2002, PÁGINAS 48, 49, 50, 51, 52, 53