Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais divulgaram na revista Ciência Hoje, em abril deste ano (2000), um estudo mostrando que entre a população brasileira que se autoconsidera branca, aproximadamente 30% tem genes que provam sua descendência indígena, outros 30% sua descendência negra, e 30% têm descendência européia. E que a contribuição européia se deu principalmente através dos homens, enquanto que a ameríndia e africana, através das mulheres.

Vários desdobramentos podem ser feitos dos resultados desse estudo. Aqui, abordaremos dois: uma breve discussão do conceito biológico de "raça" e uma introdução à contribuição desses resultados para o entendimento da origem da população brasileira a partir de ameríndios, africanos e europeus – já apontada por vários historiadores, sociólogos e antropólogos.

O estudo dos pesquisadores mineiros é mais uma prova científica de que o conceito de raça humana, tão difundido na nossa sociedade, não tem fundamento biológico.

A existência do conceito de raça é inegável, e ele traz à mente as raças negra, indígena, amarela, e assim por diante. Seu fundamento, no entanto, não é biológico, e sim social. Ele é formado historicamente e seu significado tem uma longa história, cujos aspectos culturais, sociais, políticos e econômicos não serão tratados aqui.

Após a derrota do nazismo, na II Guerra Mundial, a crença na existência de raças superiores e inferiores ficou desmoralizada. Em 1954, mesmo biólogos conservadores como Edward O. Wilson diziam que a noção de raça ou subespécie é tão arbitrária que deveria ser abandonada pois não auxiliava na classificação de plantas e animais – o que inclui o homem – e nem no entendimento dos fenômenos evolutivos mas, ao contrário, confundia-os (Futuyma, 1992). Apesar disso, até hoje encontra-se com freqüência os termos raça e subespécie, que são sinônimos, na literatura científica, mesmo quando há capítulos que fazem a crítica deles.

A percepção da existência de diferenças entre indivíduos de uma mesma espécie é muito antiga na história da humanidade. Aristóteles já comentou-as na antigüidade. O estudo moderno dessas diferenças começou em 1735 quando o naturalista sueco Carl von Lineu criou um sistema de classificação dos seres vivos – o Sistema Naturae – com critérios mais objetivos do que tudo o que fora feito até então. Essa objetividade permitiu a sobrevivência das bases de seu sistema até hoje. No decorrer desses quase 300 anos, o Sistema Naturae foi aprimorado, principalmente com as idéias evolutivas de Darwin, em meados do século XIX, e seus desdobramentos. Na época de Lineu acreditava-se que as espécies eram fixas, criadas por Deus, e as variações entre os indivíduos de uma mesma espécie não passavam de imperfeições nas criaturas, provocadas pelas falhas do mundo material (Futuyma, 1942). No tempo de Lineu, a controvérsia sobre a utilidade da subdivisão das espécies em grupos menores corria solta. E prossegue hoje, a despeito de todo o conhecimento acumulado nessas três centenas de anos sobre a evolução dos seres vivos, genética de populações e genética molecular.

As diferenças individuais que ocorrem em indivíduos da mesma espécie, formando grupos populacionais com características diferentes da espécie à qual pertencem, chamaram a atenção dos estudiosos e suscitaram o aparecimento de termos como raça, subespécie e variedade – este mais usado na botânica.

Os critérios para classificar os seres vivos em raças, subespécies ou variedades também modificaram-se conforme o próprio sistema de classificação foi evoluindo.
Segundo Alan Templeton, biólogo da Washington University, atualmente convivem dois critérios – o tradicional e o evolutivo. Há ainda uma parcela de pesquisadores que simplesmente não aceita essa subdivisão.

O critério tradicional de raça ou subespécie foi desenvolvido na década de 1940, ancorado nos avanços da genética e principalmente da genética de populações. Ele descreve um grupo de indivíduos de uma mesma espécie, circunscritos numa área geográfica e com características genéticas diferentes da espécie à qual pertencem. Essa definição de subespécie é normalmente designada por "raça geográfica".

Para se verificar se um grupo populacional é realmente uma subespécie do ponto de vista tradicional, compara-se a freqüência de algumas características genéticas no grupo populacional com a freqüência das mesmas características genéticas de outras populações da mesma espécie ou com a média da população geral da espécie.

Por exemplo, na espécie humana existem os tipos sangüíneos A, B, AB e O, presentes em todas as populações locais humanas. A análise da freqüência desses tipos sangüíneos para todas as populações poderia mostrar, que numa certa população X, a freqüência do tipo sangüíneo A é mais elevada do que na população humana geral, enquanto as dos tipos B, AB e O, é menor. Poderíamos então pensar que a população X é realmente diferente, e poderíamos realizar então a análise de outras características e verificar que elas também se encontram com freqüências gênicas próprias daquela população. Assim, chegaríamos à conclusão de que a população X é uma "raça geográfica" porque possui várias características com freqüências gênicas típicas, muito diferentes da média da população humana geral.

Os estudos genéticos sobre "raças" humanas

Foram feitos vários estudos para verificar a existência de "raças geográficas" humanas. Primeiramente tentou-se relacionar a freqüência gênica de cerca de 150 proteínas codificadas por genes conhecidos na época, supondo as três grandes "raças humanas" – caucasianos, negróides e mongolóides. Verificou-se que 75% dos diferentes tipos de proteínas estudadas são idênticas em todos os indivíduos testados, independente de "raça" ou grupo populacional. Essas proteínas, chamadas monomórficas, são, portanto, comuns a todos os seres humanos (Lewontin, Rose, Karnin, 1984). Os 25% restantes são proteínas com mais de uma forma (duas ou mais), ditas polimórficas, como nos casos do tipo sangüíneo e dos genes responsáveis pela cor da pele. Cada uma dessas formas alternativas de proteína é codificada por formas alternativas de genes correspondentes. O estudo da freqüência dos genes que codificam essas proteínas em função das "raças" é que caracterizaria geneticamente cada raça.

No caso do tipo sangüíneo, estudos verificaram que apesar da distribuição dos tipos A, B, AB e O variar em todas as populações locais, a análise dessas populações agrupadas nas três grandes raças mostra que a variação mantém um padrão homogêneo. Isto é, as variações da freqüência dos tipos sangüíneos não sustentam a divisão da espécie humana em três raças ou subespécies.
Outros estudos, feitos na década de 1970 por diferentes grupos de geneticistas, levaram em conta toda variação genética humana conhecida naquela época em matéria de enzimas e proteínas e compararam a diferença entre a freqüência de cada tipo alternativo de proteína e enzima na espécie em geral e aquela observada em três níveis: entre indivíduos de uma mesma população local; entre indivíduos de populações locais, nações ou tribos pertencentes a uma mesma raça; e, finalmente, entre indivíduos de "raças" diferentes. E mostraram que 85% da variação total se manifestam entre indivíduos de uma mesma população local, tribo ou nação; 8% entre tribos e nações de uma mesma raça, e os 7% restantes se manifestam entre as grandes "raças" (Lewontin, Rose, Karnin, 1984). Esses dados também desmentem a existência de raças na espécie humana.

Essa forma tradicional de definição de "raça" é bastante frágil. À primeira vista, salta aos olhos uma questão: qual a porcentagem de variação da freqüência pode indicar a existência de uma subespécie? Esses 7% encontrados são suficientes? Esta pergunta foi respondida pela experiência dos cientistas: 7% é uma freqüência considerada baixa. Outra pergunta decorre desta: não é importante saber quais foram as proteínas e enzimas estudadas, e qual sua qualidade? Ou, de outra forma: a qualidade da variação genética não tem qualquer importância em termos evolutivos? Isso significa que a definição tradicional de raça ou subespécie contém alguma subjetividade pois a resposta a essas perguntas fica a critério pessoal do pesquisador.

Em 1998, Alan Templeton fez um estudo para verificar a existência de raças ou subespécies na espécie humana usando os mesmos critérios, ferramentas matemáticas e dados moleculares aplicados atualmente para a definição de subespécies e raças de qualquer tipo de ser vivo. Ele encontrou dados que comprovam que a quantidade de variação dentro da nossa espécie é extremamente baixa não só quando comparada a outros vertebrados superiores mas também com o valor padrão utilizado para definir subespécies sob o critério tradicional.

Seu estudo atualiza e confirma os resultados obtidos na década de 1970 – não há raças ou subespécies entre os Homo sapiens.

Mas Templeton foi além. Partindo das críticas à concepção tradicional de subespécies ele verificou como a espécie humana se comporta sob o enfoque da concepção evolutiva, perspectiva sob a qual as diferenças genéticas entre as populações de uma mesma espécie são insuficientes para definir um grupo populacional como subespécie. É necessário, também, que o grupo populacional, além de conter diferenças genéticas, tenha permanecido sem troca gênica (isto é, acasalamento) com a população original por longo tempo.

A análise de uma população sob esse ponto de vista facilita a definição das características peculiares daquela população que são importantes do ponto de vista evolutivo, isto é, que podem levar essa subespécie, que por um longo período de tempo tenha ficado isolada geneticamente, a uma diferenciação tão decisiva em relação à espécie original que, finalmente, não seja mais possível a troca gênica – isto é, o acasalamento com descendência fértil – entre os dois grupos e, portanto, tenha se formado uma nova espécie.

A impossibilidade de gerar descendência fértil ocorre quando parte do material genético da subespécie perde a correspondência com o material genético da espécie ancestral. E, segundo Templeton, só a diferenciação genética de uma população não é suficiente para que o processo de especiação ocorra. É imprescindível que essa população tenha uma continuidade genética histórica, isto é, não receba genes de outras populações da mesma espécie por um longo tempo. Este é um dos processos que leva à evolução das espécies.

O enfoque evolutivo define subespécie, – a raça, portanto -, como um estágio da formação das espécies, no qual a população ainda não se diferenciou em espécie mas que já tem as premissas necessárias para isso.

Segundo Templeton o enfoque evolutivo, aliado aos avanços da genética molecular, supera as insuficiências do enfoque tradicional e permite que se defina linhagens evolutivas (uma nova forma de denominar subespécies ou raças) de um modo objetivo e explicito, o que é fundamental para a ciência.

Estudos baseados nesse enfoque levam em consideração a genética de populações, a genética molecular e, ainda, utilizam a análise de um tipo de gene que é praticamente igual em todos os indivíduos da mesma espécie, afora as pequenas alterações produzidas exclusivamente pelas mutações. As pequenas alterações desses genes são então estudadas para definir suas linhagens, isto é, como era o gene ancestral, quais mudanças ele sofreu e quando mudou. Estuda-se também a distribuição geográfica de cada tipo de alteração. Esse tipo de "gene" na verdade é um bloco de material genético que, no processo de sua reprodução, produz uma cópia idêntica àquela que o originou. É chamado de haplótipo e pode ser encarado como um verdadeiro marcador de linhagens.

O estudo de Templeton dialoga com várias argumentações sobre a possibilidade de existência de raças humanas. E ele derruba uma a uma, argumentando com novos dados e interpretações. Ao final ele conclui: "Devido às extensas evidências de troca genética durante os movimentos populacionais e ao recorrente fluxo gênico ocorrido durante as últimas centenas de milhares de anos, há apenas uma linhagem evolutiva da humanidade e não há subespécies ou raças sob as definições tradicional ou filogenética. A evolução humana e a estrutura da população foi e é caracterizada por várias populações localmente diferenciadas coexistindo a cada tempo dado, mas com suficiente contato genético para fazer de toda a humanidade uma única linhagem compartilhando a mesma sorte evolutiva a longo prazo." Seus estudos mostram também que nunca houve uma população humana que pudesse ser considerada como uma "raça pura". (Templeton, Alan. Human races: a genetic and evolutionary perspeCtive, in American Anthropologist, 100 (3): 632-650, 1999.)

São vários aspectos que explicam a inexistência de raças na espécie humana: ela se formou há apenas 150 mil anos aproximadamente, num processo de evolução que se iniciou há 6 milhões de anos a partir dos primatas. "Em outras palavras, a espécie humana é jovem demais para ter tido tempo de se diferenciar em raças", diz Sérgio Pena, da UFMG, em entrevista à Folha de S. Paulo (03/07/2000) formando um coro com outros especialistas como Stephen Jay Gould, J. Craig Venter, do Celera, e outros.

A mobilidade dos primeiros grupos de Homo sapiens e a troca gênica entre eles foi intensa desde a origem da espécie; ela continua nos dias de hoje, apesar da persistência de alguns grupos humanos onde há restrições culturais ao acasalamento. Mas, "mesmo considerando-se a existência de tabus sociais contra o intercruzamento, existe um fluxo gênico considerável entre as 'raças"'. (Futuyma, 1992). Não há, portanto, isolamento reprodutivo na espécie humana e, como mostrou Templeton, nunca ocorreu na sua história.

Outro fato relevante a ser levado em conta é que a evolução humana chegou a uma situação que a torna única: a enorme plasticidade de seu sistema nervoso, que é a base da consciência e da ação consciente e age, por isso, sobre seu próprio processo evolutivo. A base da evolução das outras espécies de animais e plantas são mudanças no tipo biológico, físico. No ser humano, porém, a coisa é diferente – ela é cultural, ou histórica, fenômeno muito bem apreendido por Vygotski: "No homem, cuja adaptação ao meio se modifica completamente, destaca-se em primeiro lugar o desenvolvimento de seus órgãos artificiais – as ferramentas – e não a mudança de seus próprios órgãos nem a estrutura de seu corpo".

O desenvolvimento da inteligência e da cultura deu ao homem a capacidade de adaptar-se ao meio e, portanto, a evolução biológica, dos órgãos e da estrutura corporal, passou para um segundo plano. A evolução cultural tem leis e normas diferenciadas, ela "diverge da evolução biológica em pontos muito importantes. Talvez o mais importante seja que a evolução cultural é lamarckiana: o comportamento, a língua e as peculiaridades que um indivíduo adquire durante sua vida, são transmitidas para seus descendentes ou para outros indivíduos" (Futuyma, 1992). Seu papel no processo evolutivo é que permite a extensa distribuição geográfica de nossa espécie.

A definição de raças humanas, em sentido biológico, é, portanto, um equívoco.

Os traços normalmente usados para definir as três raças – cor da pele, textura do cabelo, formato da cabeça, etc – são controlados por um pequeno grupo de genes que rapidamente se alteraram em função de pressões ambientais muito fortes durante a curta história do Homo sapiens. Os estudos modernos mostram que o homem surgiu na África, e à medida que os grupos humanos iniciais migraram, ocupando regiões diferentes, algumas mutações genéticas foram sendo selecionadas, principalmente em função do clima. A pele, por exemplo, seria originariamente escura, adaptada à alta incidência de raios solares na região de origem. Ao alcançar regiões temperadas, onde a incidência de raios solares é bem menor, mutações que clareavam a pele foram selecionadas naturalmente porque pessoas de pele escura em locais de baixa incidência de raios solares estão sujeitas a várias deficiências, entre elas, aquelas relacionadas à fixação das vitaminas A e D.

Natalie Angier, em matéria publicada no The New York Times, em agosto passado, registra um consenso entre os cientistas: a facilidade de identificar, num bater de olhos, asiáticos, europeus ou africanos desaparece no estudo minucioso do DNA. Por isso, J. Craig Venter, líder do Celera Genomics Corporation in Rockville, (que recentemente divulgou o seqüenciamento de bases da maior parte do DNA humano), afirma "raça é um conceito social, e não científico".

Todos esses estudos chegam à mesma conclusão: "Embora a freqüência dos diferentes estados de um gene varie entre as raças, não encontramos 'genes raciais', ou seja, estados estabelecidos em certas raças e ausentes de todas as demais", conclui Gould. Eles destróem a crença de que existem "raças humanas" e derrubam crenças associadas, como as da superioridade e da pureza de uma "raça" em relação a outras.

Mas, se essa é a posição da ciência sobre "raças humanas", é bom lembrar que a ciência burguesa (da qual Wilson, o mentor da sociobiologia, é um bom exemplo), continua com seu discurso que é, no fundo, ideológico e racista. Seu Da natureza humana é um bom exemplo de ciência a serviço da ideologia. Primeiro ele assume os resultados científicos e admite ser "um exercício inútil tentar definir raças humanas. Na verdade elas não existem.". Mas, logo em seguida, mostra seu discurso ideológico: "Tendo em vista que a humanidade é uma espécie biológica, não deveria constituir surpresa constatar que as populações são até certo ponto geneticamente diversas nas características físicas e mentais subjacentes ao comportamento social". Isto é, o racismo, expulso pela porta (as raças "não existem"), é readmitido pela janela, como condicionamento genético do comportamento.

Durante três séculos a ciência ocidental embasou posições ideológicas racistas que culminaram no racismo científico dos séculos XIX e XX e no nazismo. Hoje a ciência é mais sutil. O determinismo biológico dá as bases para notícias que pipocam nos jornais sobre a hereditariedade de comportamentos sociais como a agressividade, homossexualismo, inteligência, entre outros. Através dele, se "interpreta a gama [de comportamentos] habitual no ambiente moderno, como a expressão de uma programação genética direta, e não como a manifestação limitada de um potencial muito mais amplo" (Gould, 1991). E essa ciência, determinista e reducionista, continua com um papel ideológico a cumprir – explicar e legitimar a desigualdade num sistema que alega ter a igualdade como sua palavra-de-ordem.

Mesmo tendo destruído o conceito biológico de raça humana, não será a ciência que destruirá o racismo, cujas origens não são científicas e nem fazem parte da "natureza humana". O racismo também não é um mero problema de atitude, ou um preconceito residual do tempo da escravidão, como a visão liberal tradicional deseja. As origens do racismo são ideológicas e suas bases se mantêm na medida em que o racismo é necessário para a manutenção do sistema capitalista (Callinico . 1993).

A origem genética dos brasileiros

Os estudos feitos pela equipe da UFMG – formada por Sérgio Pena, Denise R. C. Silva, Juliana Alves Silva e Vânia Prado e Fabrício R. Santos – é um destes que mostram como os caracteres aparentes nos dizem pouco obre a nossa origem.

Eles analisaram dois conjuntos de genes diferentes. Um deles encontra-se no cromossomo Y, que é herdado do pai apenas pelos filhos do sexo masculino. O outro faz parte do DNA mitocondrial, que é herdado da mãe por filhos e filhas.

Esses dois conjuntos de genes foram escolhidos para estudo por apresentarem duas características importantes: são herdados de apenas um dos pais e não sofrem recombinação genética. Isto é, os filhos do sexo masculino recebem uma cópia idêntica desse bloco de genes (haplótipo) do cromossomo Y do pai, da mesma forma como filhos e filhas herdam uma cópia do haplótipo do cromossomo mitocondrial da mãe. E essas características tomam esses blocos de genes verdadeiros "marcadores" de linhagens paternas (patrilinhagens) e maternas (matrilinhagens), e permitem que seja contada a história genética da espécie humana.

Todos os haplótipos do cromossomo Y existentes hoje, segundo teoria aceita universalmente, são derivados de um haplótipo ancestral, presente entre os primeiros Homo sapiens, chamado haplótipo 7, ainda encontrado entre bosquímanos do Sul da África. "À medida que os homens migraram para novas regiões, o conjunto inicial de genes foi sendo alterado por mutações, o que gerou novos haplótipos", contam os pesquisadores. Para facilitar os estudos práticos, reúne-se os haplótipos que são intimamente relacionados em grupos chamados "haplogrupos".

Ao analisar uma amostra da população brasileira que se autoconsidera branca, os pesquisadores encontraram sete haplogrupos diferentes do cromossomo Y (veja tabela I); eles mostram que a ascendência paterna dos brasileiros que se consideram brancos é formada principalmente por europeus. Um olhar mais atento à tabela conta uma longa história genética.

Em relação ao cromossomo Y, o haplogrupo 1, típico das populações européias, aparece em 57% da população branca brasileira. Os portugueses trouxeram também, em menor porcentagem (14%), o haplótipo 21, das populações do norte da África e orla do Mediterrâneo. É que durante a Idade Média, os mouros, vindos do norte da África invadiram a Península Ibérica e levaram o haplogrupo 21 incorporado, a partir de então, ao genoma da população portuguesa. Esta seria a explicação para a presença deste haplogrupo entre os brancos brasileiros, já que praticamente não houve importação de escravos do norte africano para o Brasil.

O haplogrupo 9, das populações mediterrâneas, aparece em 8% da população branca brasileira (e em 6% da população portuguesa). É assim provável que os portugueses tenham sido os principais fornecedores desse haplogrupo entre os brasileiros; isso se deveria à vinda de "cristãos novos" para o Brasil no século XVI (quando os judeus foram forçados a se converter ao cristianismo, ou expulsos de Portugal pela Inquisição), pois as maiores taxas deste haplogrupo são encontradas entre judeus e libaneses.

Os imigrantes europeus que chegaram ao Brasil depois da primeira metade do século XIX teriam aumentado a freqüência desse haplogrupo, o 9, e do 21, originários do Mediterrâneo, e os imigrantes espanhóis teriam trazido para o Brasil o haplogrupo 22.

Em relação ao haplogrupo 2, segundo os pesquisadores da UFMG, é mais difícil entender sua distribuição entre as populações pois ainda não há estudos conclusivos sobre sua origem e ele é encontrado em todas as populações. Tudo leva a crer que foi trazido por portugueses, pelos holandeses que invadiram o Nordeste, e pelos alemães cuja imigração concentrou-se no Sul do país. Essa explicação se baseia nas altas porcentagens encontradas para esse haplogrupo no Nordeste (19%) e no Sul (28%) do país.

Portanto, para nós brasileiros, os haplogrupos 21, 1, 9, 22 e 2 podem ser considerados como originários da colonização portuguesa e da imigração européia. Somando a porcentagem da população em que cada um deles aparece no Brasil, verificamos que a linhagem paterna de mais de 90% da população branca brasileira é de origem européia. Apenas 2% da população branca apresenta o haplogrupo 8, originário da África subsaariana, e I % o haplogrupo 20, originário do Japão e Coréia. Os pesquisadores da UFMG chamam ainda a atenção para a baixa presença do haplogrupo originário da África subsaariana, de onde vieram a maior parte dos escravos brasileiros e que poderia estar presente na linhagem paterna da população branca. Chamam, também, a atenção para a ausência do haplogrupo 18, que marcaria a presença indígena na linhagem paterna dos brancos brasileiros.
Foi a análise desses marcadores que levou Sérgio Pena e sua equipe à conclusão que mais de 90% das linhagens paternas de brasileiros brancos descendem de europeus, e somente 2% descendem de africanos.

Nas linhagens maternas os resultados encontrados foram diferentes. A análise do DNA mitocondrial, que é o marcador genético destas linhagens, é complexa pois ele é mais diversificado que o cromossomo Y. Os pesquisadores encontraram 171 haplótipos diferentes nos 247 indivíduos estudados. Apesar da diversidade, foi possível distribui-Ios em três grupos distintos de linhagens: africanas, ameríndias e européias (veja tabela 2), cuja distribuição é relativamente uniforme na população branca brasileira – 33% de linhagens ameríndias, 28% de linhagens africanas e 39% de linhagens européias -, bem diferente daquela encontrada para o cromossomo Y.

A distribuição dos haplogrupos mitocondriais por região no Brasil também está relacionada à história da colonização, dizem os pesquisadores. No Sul, chama a atenção a maioria (66%) dos haplótipos europeus, refletindo a imigração européia dos séculos XIX e XX, de um lado, e a minoria das matrilinhagens africanas associada à menor utilização de mão-de-obra escrava na região.
No Norte, 54% das matrilinhagens são ameríndias e refletem a maior presença indígena em relação aos africanos entre os trabalhadores forçados da região. No Nordeste, predominam matrilinhagens africanas (44%), e mesmo no Sudeste, onde se concentrou a imigração européia, e que portanto é visto como o Brasil branco, há uniformidade da distribuição das linhagens.

Os dados do estudo dos cientistas da UFMG reafirmam a inexistência de raças humanas e expõem a diversidade genética da população brasileira. Somos descendentes de africanos, índios e europeus. E, olhando mais de peito, veremos que os europeus nos deixaram as marcas das invasões e imigrações daquele continente por celtas, fenícios, romanos, suevos, visigodos, judeus, árabes e bérberes. A nossa ascendência será cada vez mais rica à medida que os estudos filogeográficos se desenvolverem e conseguirem determinar mais detalhadamente a origem histórica dos marcadores genéticos.

A natureza tri-híbrida da população brasileira, a partir de ameríndios, africanos e europeus, já havia sido afirmada por vários autores como Artur Ramos, Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro, entre tantos outros. Como dizem os pesquisadores mineiros, "os dados que obtivemos dão respaldo científico a essa noção".

A partir da presença de 33% de matrilinhagens ameríndias, eles calculam que cerca de 45 milhões de brasileiros têm DNA mitocondrial ameríndio – descendem, portanto, dos primeiros habitantes desta terra. "Em outras palavras", dizem eles, "embora desde 1500 o número de nativos no Brasil tenha se reduzido a 10% do original (cerca de 3,5 milhões para 325 mil), o número de pessoas com DNA mitocondrial aumentou mais de 10 vezes". É uma herança expressiva e muito maior do que a suposta, e que relativiza a idéia de que quase a totalidade da população originária teria sido simplesmente eliminada, como geralmente se diz. Ela nos leva a entender melhor a participação, muito subestimada, dos indígenas na formação do povo brasileiro. Os colonizadores de fato massacraram o povo autóctene da terra que invadiam, mas uma fração relevante desse povo foi assimilada e incorporada ao novo povo que surgia, o povo brasileiro.

Que branco é este?

Outra revelação importante é que "a contribuição européia deu-se basicamente através de homens, e a ameríndia e africana veio principalmente através de mulheres. A presença de 60% de matrilinhagens ameríndias e africanas em brasileiros brancos é inesperadamente alta e, por isso, tem grande relevância social", dizem os pesquisadores. Esses dados já haviam sido vislumbrados por antropólogos brasileiros que explicaram a formação do povo brasileiro.

Darcy Ribeiro foi um deles. Em O Povo Brasileiro ele dá as pistas de nossa história genética. Desde o começo da colonização, vieram da Europa principalmente homens, e raríssimas mulheres. E os colonos, desde o início, acasalavam-se com as índias, formando alguns focos de mamelucos, resultado da miscigenação entre índios e portugueses, franceses ou espanhóis. No final do século XVI, o padre José de Anchieta avaliava a população do Brasil em 57 mil almas, sendo 25 mil brancos da terra (principalmente mestiços de portugueses com índias), 18 mil índios e 14 mil negros. "Anchieta, porém só se referia à população incorporada ao empreendimento colonial que ocuparia, naquela época, não mais de 15 mil quilômetros quadrados", diz Darcy Ribeiro. Quase a metade da população era branca, mas branca da terra, isto é, mamelucos. E, no conjunto da população, o número de brancos europeus era ínfimo.

A partir daí o componente negro-africano aumentou cada vez mais, pela intensificação do tráfico africano e do uso de escravos na Colônia, trazendo muito mais homens do que mulheres – de tal forma que, em alguns locais, a população negra era constituída quase exclusivamente por homens.
"Numa sociedade com carência principalmente de mulheres, os índios e negros aliciados como escravos raramente conseguem uma companheira", inutilizando-se como povoadores. Os descendentes mestiços do cruzamento entre europeus, índias e negras foram aqueles que formaram o nosso povo e constituíram a identidade brasileira até praticamente 1850. Dados citados por Darcy Ribeiro mostram que de 1500 até 1850 vieram para o Brasil apenas 500 mil europeus. Um número ínfimo se considerarmos que até essa data foram introduzidos, como escravos, entre 4 e 6 milhões de negros, e que a população indígena original teria sido de 5 milhões. E ele conclui, antecipando-se aos resultados da pesquisa genética realizada em Minas Gerais: "Nós surgimos, efetivamente, do cruzamento de uns poucos brancos com multidões de mulheres índias e negras".

A partir de 1850 há, no entanto, uma alteração na composição das linhagens maternas na população com o início da vinda de grandes contigentes europeus, acelerada no final do século XIX e que trouxe, até 1960, cerca de 4 milhões de pessoas, vindas de diferentes países da Europa. Pode-se dizer que esses imigrantes foram a principal fonte daquela terça parte de matrilinhagens européias que os pesquisadores da UFMG encontraram. Diferentemente dos portugueses dos tempos coloniais, que raramente traziam suas mulheres, os imigrantes modernos vieram com elas, e seus filhos e filhas, formando, pela primeira vez, um extenso estoque de mulheres européias no conjunto da população brasileira. A elite racista do começo do século havia sonhado promover, com a imigração européia, o branqueamento da população. Mas os imigrantes não formaram quistos étnicos isolados, incorporando-se à população já existente através dos casamentos. Frustraram, assim, aquela esperança racista. Ao contrário dela, como os cientistas da UFMG mostraram, a mistura dos imigrantes à população brasileira aumentou enOlmemente o número dos mestiços, muitos dos quais, à primeira vista, brancos, que caracterizam nossa população.

Verônica Bercht é bióloga.

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EDIÇÃO 59, NOV/DEZ/JAN, 2000-2001, PÁGINAS 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57