Anísio Teixeira: cem anos do pensador da educação
Era 8 de maio de 1968. Na Câmara dos Deputados, a CPI que investigava a situação do ensino superior e universitário no Brasil ia tomar um depoimento fundamental, o de Anísio Teixeira.
ANÍSIO JÁ era consagrado como um talento poderoso, ao ser descrito por Delgado de Carvalho como um "vulcão de idéias", dotado, como diria Josaphat Marinho, de uma "estupenda organização expositiva", qualificado por Darcy Ribeiro, como, "aquele, entre os muito inteligentes que conheci, que é o mais inteligente e o mais cintilante de todos". Anísio fez exposição vasta e magistral sobre a origem, a evolução e o significado da universidade no mundo e no Brasil.
A instituição universitária, disse Anísio, surgiu na Idade Média, pelos séculos XI e XII, quando realizou um trabalho extraordinário de unificação do pensamento humano até então. Ela chega a seu clímax no século XIV, após o que se torna uma grande força conservadora. Ela não aceitou, por exemplo, nem o Renascimento nem a Reforma e, durante os séculos XV, XVI, XVII e XVIII, o que fez foi se defender das forças exteriores de transformação. Nas alturas do século XVIII essa universidade medieval entrou em completa decadência. A Revolução Francesa chegou a fechar a Universidade de Paris.
A universidade só vai renascer nos princípios do século XIX, por obra de Humboldt, na Universidade de Berlim. E é aí que se opera, segundo Anísio, a grande renovação da universidade, quando ela deixa de ser "o comentário sobre a verdade e o conhecimento existentes, e passa a ser o centro da busca da verdade e da criação do conhecimento novo". Anísio mostra como foi na Universidade de Humboldt que a Inglaterra, a Holanda e a América do Norte foram buscar o modelo para suas modernas universidades.
Entretanto, observa Anísio, essa nova universidade não se refletiu no Brasil, entregue à educação dos jesuítas, que repetia o modelo medieval. E embora Portugal não tenha permitido a implantação de universidade por aqui, abriu-nos as portas para a Universidade de Coimbra, tipicamente medieval, dirigida pelos jesuítas, onde 2.500 brasileiros estiveram de 1550 a 1808. Os brasileiros, matriculados em Coimbra, recebiam educação aristocrática e ornamental.
Anísio Teixeira mostra nesse quadro como foi que se formou a resistência à universidade no Brasil, onde, durante todo o período monárquico, 42 projetos de universidade foram formulados, desde o primeiro de José Bonifácio até o último de Rui Barbosa, todos recusados pelo governo e pelo parlamento. Anísio mostrou trechos de uma intervenção proferida no Congresso de Educação realizado em 1882 pelo Conselheiro Almeida Oliveira que a certa altura afirmava: "A universidade é uma coisa obsoleta e o Brasil, como país novo, não pode querer voltar atrás para constituir a universidade; deve manter suas escolas especiais, porque o ensino tem de entrar em fase de especialização profunda; a velha universidade não pode ser restabelecida". Sobre essa opinião, aparentemente esdrúxula, a mente de Anísio Teixeira lobrigou um sentido oculto e disse que "ela não é de todo despida de lucidez".
E a histórica resistência à universidade no Brasil é examinada por Anísio Teixeira de uma outra forma. Diz ele: "Tenho refletido longamente sobre isto. Sempre estranhei esse comportamento do governo brasileiro, desde o tempo do Império. Vejam bem, um imperador como Pedro 11, razoavelmente culto e até altamente inclinado para as coisas intelectuais, não abriu uma só escola superior no Brasil ( … )". E a República, continua Anísio, continuou na mesma tradição. Mas, estimulavam as escolas agrícolas, os liceus de Artes e Ofícios e o ensino técnico-profissional. Na verdade, resistia-se à tendência ornamental da cultura, enquanto procurava-se promover educação mais utilitária. A Regência, diz Anísio, criou o Colégio Pedro 11, francamente ornamental, mas foi só, e o Império não o multiplicou, tampouco a República. Em contraposição, Império e Re-pública criaram diversos liceus de Artes e Ofícios e escolas técnico-profissionais. Resistia-se à tendência ornamental da cultura, enquanto procurava-se promover educação mais utilitária.
A resistência no Brasil à universidade era à universidade medieval, a única conhecida no Brasil. No mesmo Congresso de Educação de 1882, o conselheiro Almeida Oliveira acrescentou: "Nós não podemos ter universidade ( … ) universidade é a expressão de uma cultura do passado, e nós vamos ter uma cultura do futuro, que já não precisa mais dela". Entretanto, diz Anísio, os governantes que resistiam ao saber ornamental e que fundavam escolas de profissões não criaram ginásios ou escolas secundárias. Daí por que foi se forjando no Brasil a idéia de uma sociedade utilitária, de serviços úteis, que não teria muito a ganhar com o saber ornamental da velha universidade, mas que tampouco tinha projetos para produzir conhecimentos novos a partir do Brasil.
A República, segundo Anísio, só em 1920, dá o nome de universidade a quatro escolas superiores que existiam no Rio de Janeiro, implantadas como universidade somente em 1937. Prevalecia a visão de uma educação superior utilitária, formadora de profissionais. A exemplo da Universidade de Coimbra, a universidade preparava para a profissão e para a cultura. Só que a cultura que transmitíamos era européia, o que nos conduzia, segundo Anísio, a duas alienações, à cultura voltada para o passado e sobre o passado, que nos levava ao desdém do presente, e à cultura de origem estrangeira, européia. "E nisto tudo – conclui Anísio – o Brasil era o esquecido".
A nova universidade, afirma Anísio, "tem de formular o conhecimento que vai ensinar, o qual não existe ainda. Quando se fala que a universidade deve passar à pesquisa não significa que lhe devemos acrescentar mais uma tarefa e ela viraria universidade de pesquisa. A universidade só será de pesquisa quando passar a formular a cultura que vai ensinar". Nesse sentido, diz Anísio, "todas as vezes que eu estiver dando uma cultura que não foi elaborada nacionalmente para ser ensinada, estarei prestando informações, não educando". E "só conseguiremos educar, quando transformarmos as nossas instituições culturais em instituições embebidas no solo brasileiro, na terra brasileira, na forma de pensar brasileira, no modo de pensar brasi1eiro". Na Alemanha, assinala Anísio, a universidade re-criada por Humboldt surgiu como forma de se criar a cultura germânica, o que quer dizer que a universidade é ciência e nação; é pesquisa e nação. Anísio Teixeira conclui sua exposição dizendo que o esforço educativo é o esforço para criar e transmitir a cultura nacional e o grande objetivo da educação é formar a consciência nacional. Só por este apanhado do que disse Anísio na Câmara dos Deputados, vemo-Io como homem de Estado, tomado pela idéia de que a educação era meio insubstituível da construção nacional. Por isso Hermes Lima chamou-o de "estadista da educação".
No Brasil, na década de 20, ocorreram fatos de grande significado transformador, como a Semana de Arte Moderna, que abriu horizontes nacionais libertadores; o episódio dos 18 do Forte, que desembocou na Revolução de 1930; a fundação do Partido Comunista do Brasil, que deu origem ao pensamento social progressista e começou a organização dos trabalhadores entre nós. Na década de 20 também, foram feitas as três primeiras reformas educacionais brasileiras, encabeçadas por Anísio Teixeira, na Bahia; Lourenço Filho, no Ceará; e Fernando de Azevedo no antigo Distrito Federal. Anísio tinha nessa época 24 anos.
Daí por diante sua cruzada pela renovação educacional brasileira só foi interrompida nos momentos em que reacionários regimes de força intervieram para alijá-lo, em 1935 e 1964.
Falar de Anísio Teixeira, como disse Florestan Fernandes, é falar do aspecto mais palpitante de sua atividade, a defesa da escola pública. Aquele que foi, segundo Florestan, "o nosso primeiro e último filósofo da educação", fez dessa defesa seu estandarte principal, que apontava o rumo para todas as outras intensas atividades. Formulou e sustentou, em situações de grande pressão, a tese de dinheiro público para a escola pública, embora percebesse e apoiasse o papel complementar da escola privada.
Anísio verberou contra o arcaísmo da estrutura educacional brasileira. Em 1953, na Fundação Getúlio Vargas, disse que o mais singular entre nós é que o ensino reflete a teoria medieval do conhecimento, onde as informações são passadas e decoradas para os exames. Disse ainda que acrescentamos algo a essa teoria. Enquanto o lente medieval nada mais fazia do que lidar com seus alfarrábios, entre nós o professor pode ser qualquer pessoa que saiba mais ou menos ler. E acrescentou: encurtamos o período de aula e "encurtamos" os professores. Em nossa escola brasileira tudo pode ser dispensado: prédio, instalações, biblioteca, professores. Somente não a lista completa de matérias.
Mas, a despeito desse arcaísmo, Anísio acentuava ter essa escola a função de formar privilegiados, pessoas que desfrutariam de uma vida mais fácil e sobretudo afastada do trabalho manual, em um contexto onde a democracia escolar era vista como a possibilidade do pobre ascender ao privilégio. Para manter essa escola, empenhou-se por muito tempo a classe rica e dominante, segundo Anísio, "mais dominante do que rica".
É assim que afirma-se Anísio como o "revolucionador de estruturas caducas", no dizer de Jaime de Abreu, e como arauto da escola pública, universal e gratuita.
Nesses dois sentidos desenvolveu-se seu pensamento e sua obra, ambos portentosos, expressos – o pensamento- em vasta produção literária, com diversos livros inumeráveis artigos, conferências, discursos, ensaios – e a obra em longa série de grandes realizações como a antiga Universidade do Distrito Federal, da qual foi Reitor; a Escola Parque, de Salvador; o plano da educação pública de Brasília; a Universidade de Brasília, fundada com Darcy Ribeiro; o Instituto de Pesquisas Educacionais; a Fundação Nacional da Ciência; o Instituto de Educação, pioneiro no Brasil na formação em nível superior de professores para a escola primária; o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais que coordenava Centros Regionais em Pernambuco, com Gilberto Freire; na Bahia, com Luís de Sena e Carmen Teixeira; em São Paulo, com Fernando de Azevedo; em Minas Gerais, com Abgar Renault e no Rio Grande do Sul, com Elooch Kunz. Integram ainda o acervo das realizações de Anísio Teixeira, milhares e milhares de salas de aula por todo o Brasil, integrantes de inúmeros ginásios, escolas e centros cujas construções promoveu, enquanto passava, duas vezes, pela Direção da Educação e Cultura da Bahia, Secretaria de Educação e Cultura do Rio de Janeiro, 12 anos na Direção do INEP, Secretaria Geral da Capes, Presidência da SBPC, Conselho da Unesco etc. Anísio sabia pensar e fazer.
A marca anisiana de encaminhar a modernização e a democratização do ensino brasileiro em todos os níveis, com originalidade, praticidade e muito dinamismo, esteve presente em toda sua atividade. Iniciativas implementadas ou propostas, como o Plano Nacional de Educação, os Conselhos de Educação, inclusive Conselhos Municipais, a pesquisa educacional, a educação em tempo integral, o Fundo Escolar Permanente, pensado tem base de determinada quantia por criança escolar recenseado ou matriculada – precursor do Fundef – rubricaram de forma indelével a educação no Brasil.
A tese de doutorado da professora Clarice Nunes da PUC/RJ, intitulada Anísio Teixeira, a poesia da ação, assinala que "tudo que se faz, hoje em educação no Brasil remete a Anísio Teixeira".
Anísio via a educação como atividade cara, onde se de veria investir. Era investir no Brasil. Em seu pensamento não cabia se beneficiar um setor, como o ensino funda mental, deixando à míngua outro, como o universitário Criticava a idéia de que se educa de qualquer forma, de baixo de árvores, em casebres ou galpões. Educação, para Anísio, precisa de prédios bons, aparelhamentos escolares, verbas de custeio, vencimentos condignos do professorado e docência, preparados, até na atitude de ensinar. Em carta a Edvaldo Boaventura, ex-secretário da Educação da Bahia, escreveu: "Se alguém deseja ser professor, é como estudante que vai ensinar". Dizia enfim: "Depois da guerra nada é mais caro que a educação". Mas ressaltava que sem uma administração, planejamento e controle adequados o dinheiro tende a esbanjar-se em improvisações, em sofisticação elitista dos recursos e em fraude. Sua força persuasiva foi tal que, ao dirigir pela primeira vez a educação na Bahia, com 24 anos de idade, conseguiu triplicar a receita estadual para o setor, entre 1924 e 1927, como registra Luís Viana Filho.
Aos que achavam essa visão de educação-grande visionária e estapafúrdia, Anísio respondeu: "Na realidade, estapafúrdios e visionários são os que julgam que se pode hoje formar uma nação pelo modo por que estamos destruindo a nossa".
Incompreensões acompanharam toda a vida de Anísio. Em 1958, um memorial dos bispos do Rio Grande do Sul, encabeçado pelo arcebispo D. Vicente Scherer, desencadeou uma formidável campanha nacional contra a suposta ameaça para as instituições brasileiras que Anísio Teixeira representava na direção dos altos cargos que ocupava. O memorial era dirigido ao presidente Juscelino Kubistcheck, de quem se esperava a demissão de Anísio, que estaria fomentando, através da educação, a revolução social no Brasil. A permanência do grande educador parecia irremediavelmente comprometida. Hermes Lima conta que Anísio chegou a ser informado de sua exoneração. Foi quando ocorreu talvez a maior manifestação da intelectualidade brasileira de todos os tempos, em defesa de Anísio Teixeira. Cientistas,escritores, lentes renomados, professores de todos os quadrantes do país, instituições respeitadas de ensino e pesquisa, a Associação Brasileira de Educação, a Associação Brasileira de Escritores, Assembléias Legislativas, Câmaras de Vereadores, entidades de classe e a União Nacional dos Estudantes desencadearam outra campanha, contra a intolerância, a injustiça e pela manutenção de Anísio no INEP. O próprio Anísio, que no início pensara em se demitir, já não tinha condições para fazê-lo. Juscelino compreendeu que a demissão de Anísio Teixeira seria uma afronta ao mundo intelectual brasileiro. E confirmou-o no INEP.
O obscurantismo não convivia com o choque de luz que jorrava resplandecente da inteligência de Anísio Teixeira. A "usina de pensamento", de que falava Abgar Renault, só operava em clima de liberdade. Quando o obscurantismo se impunha e encasulava a democracia, cuidava logo de apagar a flama esfuziante do pensamento de Anísio. Logo no início das perseguições que se seguiram ao levante de 1935, Anísio foi apeado da Secretaria de Educação do antigo Distrito Federal e da Reitoria da Universidade do Distrito Federal que havia criado. Mais que isso, teve de se esconder, até meados de 1937, no alto sertão da Bahia. O golpe de 1964 coincidentemente encontra Anísio de novo na Reitoria de outra Universidade que ajudara a criar, no novo Distrito Federal, a Universidade de Brasília. E não faz por menos: autoriza a entrada de tropa a cavalo no campus universitário. Vale reproduzir o que a professora Zahidê Machado Neto, testemunha ocular dos momentos finais da tomada da Universidade escreveu: "Anísio estava sentado, fumando o restinho do cigarro. Estava tranqüilo, mas a gente sentia que alguma cousa lhe acontecia por dentro. A voz estava serena; num fim de frase me pareceu meio trêmula. Dizia que precisávamos ficar, que tudo podia ser fruto de desentendimento e que a ressaca podia passar ( … ) Todos nós que o ouvíamos estávamos em redor dos trinta anos. Todos professores, moços, cheios de ideais, de sonhos e de esperanças dávamos ali, naquele planalto, naquela Universidade o melhor pedaço de nossas vidas. Trouxeram um pouco de café, pois Anísio tomava-o o tempo todo. A mão tremia levemente. E veio a frase que não pude esquecer: 'Vejam o que fazem.
De mim sinto que esta será a ultima vez. A primeira foi em 35. Se ocorrer outra, eu já poderei estar morto.' Anísio não parecia vencido mas cansado" – conclui a professora Zahidê.
Afastado dos cargos que engrandecia, abriram inquérito contra Anísio para apurar malversação de bens públicos. Disse ao coronel que o investigava: "O que vocês pensam que é o comunismo, é o que vocês estão fazendo conosco". Descobriram então que Anísio havia depositado todos os salários que recebera de Reitor da UnB em conta do Tesouro Nacional, para não acumular vencimentos, o que não considerava ético, embora fosse legal. O inquérito encerrou com elogio à sua administração judiciosa. Mas o exílio foi o que lhe restou. Convidado, foi dar aulas nos Estados Unidos, depois, no Chile. Certa feita escreveu a Abgar Renault: "Sou um homem a quem a vida dá e tira com certa grosseria". E a Fernando de Azevedo: "Se tivesse de viver de novo, viveria como vivi ( … ) apenas pediria que a vida fosse mais curta".
E a vida de Anísio Teixeira foi muito curta para o Brasil que só o teve até os 70 anos, quando, de forma até hoje não bem explicada, um mês depois da morte de Rubens Paiva, apareceu morto no fundo do poço de um elevador, no Rio de janeiro.
Anísio Teixeira não foi um intelectual marxista. A Hermes Lima chegou a confidenciar que o insuficiente contato com o marxismo era uma falha de seus estudos. Entretanto, tinha uma concepção revolucionária que vai sendo reexaminada por estudiosos como o professor João Augusto de Lima Rocha, da UFBA, que desenvolve o pensamento de Florestan segundo o qual, "Anísio foi um homem de seu tempo. Mas, dentro de seu tempo, seu pensamento não defendia meia revolução, defendia toda a revolução". Em 1945 Anísio disse não ter dúvida em admitir que, pouco a pouco, os partidos de esquerda irão crescendo de prestígio no país, até algum dia conquistarem o poder ( … ) E acrescentou: "Mas isto só se dará se eles souberem conservar-se no princípio, como partidos de esclarecimento e de vigilância, devotando-se a um lento trabalho de pesquisa dos problemas brasileiros e de educação da consciência nacional (… )".
Anísio era avesso a homenagens, mas o ambiente brasileiro da época não achou por bem ressaltar o papel de quem se comprometera tanto com a defesa da educação pública. O professor Luiz Antônio Cunha, da UFRJ, conferiu que as atas da última reunião em que Anísio participou no Conselho Federal de Educação não faz menção à saída do grande educador que lá estivera por seis anos. O Ministério de Educação e Cultura foi lhe conceder a comenda da Ordem Nacional do Mérito Educativo, no grau de Grande Oficial, só depois de Anísio morto, como que numa reparação histórica, a partir de iniciativa do então ministro Jarbas Passarinho.
Mas verdadeiramente dramático é que, com o alijamento de Anísio do papel de formulador principal da educação brasileira, a partir do regime militar, foi se mudando completamente a orientação da educação do país. Acordos foram assinados entre o MEC e a Usaid, entidade norte-americana, com o objetivo de implantar reformas na educação no Brasil, inspiradas nas recomendações do famoso Relatório Atcon, entre as quais, "estabelecer programas de ação educacional em todos os níveis ( … )", "transformar a universidade estatal em fundações privadas ( .. )", "eliminar a interferência estudantil na administração ( … )", "colocar o ensino superior em bases rentáveis, cobrando matrículas crescentes ( … ) etc." Hildérico Pinheiro, auxiliar de Anísio durante anos, observa que se foi destruindo sistematicamente a obra de Anísio Teixeira. Extinguiram os Centros de Pesquisa, desativaram os programas do INEP, desfiguraram a Escola Parque da Bahia, acabaram com a Fundação para o Desenvolvimento da Ciência. Muitas outras de suas idéias, embora desconectadas de sistema uniforme, reapare-
cem na prática educacional de hoje, como na discussão da última Lei de Diretrizes e Bases, em Brasília, sobrevivem na Universidade, nas doze Escolas Classe e cinco Parques e, no Rio de Janeiro, na rede dos CIEPs, implantada por seu seguidor mais destacado, Darcy Ribeiro, no último governo de Leonel Brizola.
Anísio não formulava máximas fora do contexto da labuta. Mas de suas formulações pode se extrair esparsas lições de política, de filosofia e de vida, tais como: "é fácil organizar um hospital sem doentes, uma escola sem estudantes. A presença da vida é que complica"; "a burocracia no Brasil não é um fato, é uma ideologia"; "no Brasil, a cultura isola, diferencia, separa"; "a universidade não tem nenhuma verdade a dar a não ser a de buscá-Ia"; "nunca procurei fazer discípulos; às vezes mais perturbo que educo"; "ciência é antes método de se obter conhecimento razoavelmente seguro do que um corpo imutável de conhecimentos"; "a escola primária tem de ser a mais importante escola do Brasil, depois a escola média, depois a escola superior"; "podemos ser capitalistas por contingência da evolução histórica, mas ninguém mais o é por convicção"; "a sociedade do lucro precisa de certas roupagens socialistas para se tornar segura"; "costuma-se dizer que a esquerda brasileira é uma esquerda festiva.
Poderemos também fazer um capitalismo festivo?"; "o ato de pensar, matriz das invenções, é justamente o mais vigiado de todos"; "na Grécia criou-se a tecnologia das tecnologias, a arte de pensar, e surgiu daí um novo tipo de homem, ( … ) o criador do pensamento e do saber, distinto do estudioso do saber já feito"; "entre nós, impressiona muito a escassez em quantidade e pouco a escassez em qualidade"; "nada há mais fácil nem mais sutil que a iniqüidade"; "realmente, parece que algo incoercíve1 compele o país a fazer do público o privado, a dar ao privado as regalias e privilégios do público"; "a infância que freqüenta escolas de um turno, está abandonada em metade do dia; entre nós quase toda a infância, com exceção da de família abastada, é infância abandonada"; "neste país, só o que é rotineiro é sólido".
Que o centenário de Anísio Teixeira sirva como momento de reflexão, especialmente dos educadores, trabalhadores em educação e responsáveis pela educação em nosso país, e como oportunidade de revitalização da luta pela escola pública, universal e gratuita. E de Anísio recolhamos esta diretriz: "Acostumemo-mos a estar sempre combatendo por alguma cousa. Temos sempre uma missão a cumprir e a missão dos homens é social".
Haroldo Lima é deputado federal pelo PCdoB/BA e exerce seu quinto mandato na Câmara dos Deputados.
EDIÇÃO 58, AGO/SET/OUT, 2000, PÁGINAS 62, 63, 64, 65, 66