Internacionalização, imperialismo e globalização (Visões da História – parte 7)
No começo deste ano, o professor Octávio Ianni vetou a reedição do livro Cor e mobilidade social em Florianópolis, que escrevera com Fernando Henrique Cardoso, publicado originalmente em 1960. Cada um deles havia escrito uma parte da obra, e Ianni não aceitou que a nova edição mantivesse aquela de sua autoria, recusando-se a figurar como co-autor ao lado do sociólogo-presidente, num sinal claro dos rumos divergentes e contraditórios seguidos por essas duas grandes estrelas da chamada Escola de São Paulo.
AMBOS PARTIRAM da mesma matriz de pensamento, aquele amálgama de weberianismo, funcionalismo e marxismo que surgiu na Universidade de São Paulo. Foi de seu trabalho conjunto sobre a escravidão e o preconceito racial que surgiu, entre outras obras, o livro cuja edição foi contestada por Octávio Ianni.
Após o golpe militar de 1964, sofreram a perseguição policial e a cassação pelo Ato Institucional n° 5 em 1969, sendo proibidos de lecionar em faculdades brasileiras; fizeram então brilhantes carreiras acadêmicas em universidades estrangeiras. Durante certo período, foram – com Florestan Fernandes – considerados a principal trindade do pensamento social brasileiro.
O pensamento e a obra desse trio refletia uma visão de Brasil fortemente homogênea, cuja vertente weberiana descrevia o passado colonial e escravista como capitalista, embora destituído da racionalidade do capitalismo moderno; a sociedade era vista como dividida em castas e estamentos que, com a Abolição e a República, iniciou a transição para uma moderna sociedade competitiva, burguesa, de classes. Essa mudança teria sido induzida desde o topo, pela ação do latifundiário cafeicultor que, ao transformar-se em empresário moderno, teria realçado os aspectos capitalistas da produção agromercantil, impondo a racionalidade do capital à formação social brasileira na qual – em conseqüência – não haveria mais lugar para o escravo, que foi substituído pelo trabalhador livre, assalariado.
O eixo da vertente marxista desse pensamento era a análise das classes e de sua interação conflitiva e contraditória, e a consideração dos interesses materiais como condicionantes da ação política e social. Ao encarar a escravidão como elemento central no processo de acumulação de capital (Queiroz: 1998), eles rompiam com a visão oligárquica e idílica da sociedade brasileira típica de pensadores como Gilberto Freyre, que viam o Brasil como o paraíso das relações raciais e da harmonia entre as classes.
Entretanto, a leitura atenta de suas obras revela a presença, mesmo nesse período inicial de concordância quase completa, de diferenças de enfoque cujo desenvolvimento, ao longo do tempo, levaria ao distanciamento atual entre os dois autores.
Escravismo e capitalismo
Essas diferenças de enfoque referem-se principalmente à forma de encarar o desenvolvimento brasileiro, o dilema capitalismo X socialismo, a luta de classes e as relações entre a nação e o imperialismo. E, como fundo teórico, a concepção que faziam do marxismo e seu papel como ferramenta teórica para a análise da sociedade brasileira e para inspirar as formas de intervenção política e social em seu desenvolvimento.
Embora trouxessem a marca da Escola de São Paulo, fortemente weberiana e funcionalista, pode-se dizer que, desde o começo de suas carreiras, Octávio Ianni foi mais influenciado pela ortodoxia marxista do que Fernando Henrique Cardoso, como é nítido já em As metamorfoses do escravo, de 1962 (Ianni: 1988), resultado das pesquisas iniciadas, sob direção de Florestan Fernandes e patrocínio da Unesco e da USP, em 1955, sobre as relações raciais no Brasil meridional.
Nessa obra, Ianni estuda a formação e o declínio do escravismo no Paraná. Se a cor weberiana desse estudo é dada pela conceituação daquela sociedade como sendo de castas e ordens, caracterizada como capitalista, a luz que ilumina o conjunto do estudo provém do pensamento de Marx: o reconhecimento da peculiar "conexão entre os meios de produção e o trabalho produtivo" no escravismo; a influência das condições históricas e econômicas na determinação daquele "sistema econômico-social" baseado no trabalho escravo; além disso, a identificação de uma situação onde a produção é social, mas a apropriação é privada, criando um substrato comum à existência do escravo e do trabalhador livre, e facilitando a passagem de um a outro regime de trabalho (Ianni: 1988; Martins: 1975).
Havia uma contradição nessa visão da economia escravista e colonial vista como capitalista por fazer parte de um sistema mundial dominado pelo capitalismo mercantil, um capitalismo colonial onde não havia trabalhador assalariado. A solução encontrada para essa contradição foi engenhosa, propondo que o capitalismo recria ou desenvolve instituições pré-capitalistas. Essa idéia reapareceria, muito mais tarde, na tese de José de Souza Martins sobre a criação capitalista de relações de produção não-capitalistas (lanni: 1988; Martins: 1979).
Isso gerava aquela que Ianni considerou a principal contradição da sociedade brasileira na segunda metade do século XIX: a produção de mercadorias voltada para o mercado internacional, baseada no trabalho escravo. Isto é, o caráter capitalista da fazenda do café (decorrente da produção para o mercado e da presença do cálculo econômico racional em sua organização) chocava-se com o caráter escravista das relações de trabalho em que aquela produção se baseava. Em Raças e classes sociais no Brasil, isso é dito de foa clara e mais coerentemente marxista: a sociedade brasileira de então é apresentada como "governada pela contradição entre a mercadoria e o escravo. Ou seja, é nessa época que a contradição entre o modo de produção e as relações de trabalho se toma aberta e incômoda, impondo-se a sua resolução" (Ianni: 1972).
Essa contradição entre o capitalismo que se desenvolvia e o regime de trabalho que levou à desagregação do escravismo. Há um momento, diz, em que a aplicação "de capitais em escravos se toma onerosa em face da rentabilidade que o empresário pode obter comprando força de trabalho por dia, semana, ou por mês", levando, ao cabo, à extinção do escravismo (Ianni: 1988). Mais avançado do que a maioria dos analistas até então, Ianni,vê a Abolição como um processo social, mas não chega a compreendê-Ia como uma revolução. O trabalho escravo não foi destruído por uma revolução de cativos; foram "transformações internas no sistema que paulatinamente arruinaram os últimos vestígios do regime, pois que ele se tomara inadequado, envelhecido, e novas relações de produção e existência social se haviam instalado e expandiam-se" (Ianni: 1988).
Este é o sentido essencial da Abolição: ela elimina os obstáculos e cria as condições para o início de uma nova fase na vida econômica do país, na qual a separação completa entre o trabalhador e os meios de produção "estabelece uma condição básica à entrada da economia nacional no ciclo da industrialização" (Ianni: 1972).
Tem inicio, assim, a transição entre o escravismo e o capitalismo no Brasil, aberta em meados do século XIX, quando "a sociedade brasileira, profundamente marcada por relações coloniais (com Portugal e, depois, a Inglaterra), começa a sofrer a diferenciação interna que caracterizará a sua relativa autonomia e singularidade". O desenvolvimento econômico provoca alterações no sistema produtivo e nas relações de produção, criando o ambiente em que se instauram "algumas das relações fundamentais à formação do capitalismo industrial" (Ianni: 1972).
Nessa análise, Ianni mistura elementos originários do pensamento marxista (a contradição entre relações de produção e forças produtivas, a existência do trabalhador livre como condição para a existência do modo de produção capitalista) a outros de raiz weberiana (padrões racionais, racionalismo inerente à produção do lucro, como sinônimos de modo de produção capitalista) (lanni: 1972). O foalismo da análise perde a especificidade da transição entre o modo de produção escravista colonial e o modo de produção capitalista, transição onde o trabalhador era foalmente livre e incompletamente assalariado; era o colono típico da transição, cuja remuneração combinava trabalho assalariado e o direito de explorar pequenos trechos de terra em benefício próprio. Embora fale em trabalhador livre, Ianni reconhece que a "mobilização dos trabalhadores nacionais, dispersos nas faixas de economia de subsistência, não pode realizar-se", pois estavam presos à classe latifundiária por "vínculos de tipo patrimonial" (a terminologia deriva de Max Weber, e não tem a precisão e concreticidade da expressão relações de servidão, mais aceita pelos marxistas). Foi esta dependência pessoal do trabalhador nacional que, diz, impôs a necessidade da vinda de trabalhadores europeus (Ianni: 1972).
Em 1962, também como resultado do programa de pesquisa do escravismo no sul do Brasil, promovido pela USPe patrocinado pela Unesco, Fernando Henrique Cardoso publica Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional, que – como diz na Introdução – era "uma tentativa de utilização da interpretação dialética na sociologia" (Cardoso, 1977). O tema era ambicioso – além do escravismo, pretendia também estudar as limitações da economia capitalista escravista, principalmente quando comparada ao capitalismo baseado no trabalho assalariado. No escravismo, diz, só é possível aumentar o rendimento do trabalho através do aumento da jornada e da intensificação do ritmo de trabalho, ao contrário do capitalismo "desenvolvido", cuja dinâmica está assentada na "produção de mais valia relativa, obtida graças à introdução de recursos técnicos e à subdivisão do trabalho, que peitem produzir em menos tempo o equivalente ao salário". Em conseqüência, o escravo precisa "produzir mais produtos para cobrir o capital inicialmente invertido na sua compra, sem o que a empresa escravista brasileira, que visava a lucros que se realizavam no mercado, estaria, desde o início, condenada." (Cardoso: 1977).
Em comum com Ianni, havia nesse estudo inicial a mesma caracterização do passado colonial e escravista como capitalista, uma tese reafirmada na Nota à 2a Edição, de 1977, onde diz que a escravidão moderna "se formou num horizonte histórico determinado, o da expansão do capitalismo mercantil" (Cardoso: 1977). Mas o ahistoricismo dessa definição é muito mais radical, bebido em Max Weber e, através dele, em Theodor Mommsen, de quem Weber foi aluno, e a quem Karl Marx acusou, em O Capital, de enxergar "um caso de regime capitalista de produção em toda economia monetária". O que é "capitalismo"? – pergunta Fernando Henrique (as aspas fazem parte do original). "Não será ele, ao mesmo tempo, a explosão manchesteriana, o sistema industrial-estatal de Colbert, o monopólio d'El Rey, a exploração dos índios, a escravidão dos negros na América, etc?" (Mitzman: 1976; Marx: 1985; Cardoso: 1975). Isto é, onde há ação em busca de lucro e circulação monetária, haverá capitalismo, não importando as formas históricas concretas assumidas pela organização da produção e da exploração dos produtores diretos, formas históricas que tornam específicas e particulares cada uma das etapas da evolução da humanidade e que, ao contrário da definição weberiana de ação dotada de um certo sentido econômico, é mais propriamente definida pelo marxismo como modo de produção, que estuda de foa científica não as formas subjetivas que a ação humana adquire, mas as bases objetivas que condicionam e dão a foa àquelas formas subjetivas.
Nessa linha de pensamento, Fernando Henrique diz que a escravidão e a servidão foram repostas, reinventadas, para a produção em larga escala para o mercado numa fase do desenvolvimento do capitalismo, e que elas "têm em comum com a escravidão antiga e com a servidão feudal apenas asformas" (Cardoso: 1975). O povo, nessa concepção, era uma espécie de massa amorfa e plástica sobre a qual a história imprimia a marca de seu desenvolvimento, fixando também a fóula que seria o cavalo de batalha de uma certa historiografia nos anos 80 e 90, para a qual Florestan Fernandes e sua escola comete-
ram o crime teórico de caracterizar o escravo e o negro como coisa, sem vontade ou autonomia, caracterização que, em Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional foi ao menos delimitada, traduzindo no plano teórico a concepção que a sociedade e os proprietários escravistas tinham daqueles homens-mercadoria, mas reconhecendo as tensões derivadas desta condição subumana a que o trabalhador forçado estava reduzido (Cardoso: 1977).
Mais tarde, entretanto, essas considerações relativizadoras (e enriquecedoras da análise) foram abandonadas, e não só os escravos mas também a plebe, índios, peões, libertos, camponeses, foram descritos como testemunhas mudas "de uma história para a qual não existem senão como uma espécie de instrumento passivo sobre o qual operam as forças transformadoras da história" (Cardoso: 1975).
C orno Ianni, Fernando Henrique Cardoso dizia basear-se no marxismo. Mas, vê-se, era um marxismo muito peculiar, eclético, enxertado por justaposições (e não assimilação crítica) com teses e categorias do pensamento social burguês, encarado como um método de estudo, e desarmado da marca principal do pensamento de Marx, a exigência de unidade entre teoria e prática, que o torna um instrumento de mudança social e guia da luta política do proletariado. Fernando Henrique Cardoso estava, sem dúvida, longe desse marxismo, visto por ele como dogmático e simplificador.
"Não podíamos", diz na Nota à 2a Edição, aceitar o marxismo "ritual e indolente", nem esquecer "um século de trabalhos sociológicos, alheios a Marx". Recusa o que chamou de "bê-a-bá do stalinismo teórico: a infra-estrutura, dinamizada pelo avanço das forças produtivas, que entra em contradição com a superestrutura (e a política e a ideologia) e impõe uma ação" (Cardoso: 1975).
A tentativa de enfrentar os impasses teóricos do stalinismo e do marxismo ossificado que ele gerou traduziu-se, neste caso, não num avanço no sentido do desenvolvimento do marxismo, mas num recuo teórico, através da absorção de teses do pensamento social burguês (Max Weber e os funcionalistas), do existencialismo de Jean Paul Sartre, e de História e consciência de classe, sobre o qual seu próprio autor, Georg Lukács, disse num posfácio de 1967 que as idéias ali desenvolvidas eram "errôneas" (Lukács: 1974). Um recuo paradoxal, contudo. Apesar de negar o condicionamento dialético da superestrutura pela infra-estrutura, em nome de uma suposta autonomia da ação humana (como aprendeu com Sartre), Fernando Henrique Cardoso foi, entre os estudiosos da Escola de São Paulo, aquele que foi mais longe ao negar a liberdade do escravo, sem compreender que a liberdade, e a subjetividade do escravo, afiavam-se pela vontade rebelde manifestada na luta contra a escravidão e contra a desumanização dela decorrente. Ele o via como inerte e passivo (como os demais membros das camadas pobres e dominadas da sociedade colonial), esmagado pela condição de coisa que a escravidão impunha. Nesse sentido, afastando-se do marxismo e da dialética, Fernando Henrique Cardoso ficou paradoxalmente preso ao mesmo economicismo do marxismo "vulgar" que pretende recusar.
Rumos do desenvolvimento
Com o golpe militar de 1964, a separação entre os dois autores se aprofundou, e as diferenças de enfoque ficaram mais nítidas. Ianni dizia que a política econômica da ditadura levaria o país à estagnação, e que a alternativa que estava posta para os brasileiros era a ditadura ou o socialismo, tese que defendeu em O colapso do populismo no Brasil, de 1968. Para Fernando Henrique, ao contrário, o desenvolvimento capitalista nos países pobres era viável e estava entrando em outra fase, a fase da internacionalização, tese que aprimorou mais tarde ao formular a teoria da dependência. "O Octávio Ianni foi para o México", contou Fernando Henrique, numa entrevista publicada em 1992, "e disse que eu estava defendendo os militares, porque a minha tese era a seguinte: o golpe é fascista, o que vocês queiram chamar, mas ele não está impedindo o desenvolvimento das forças produtivas" (Folha de S. Paulo: 17/5/1992).
Naqueles anos, Octávio Ianni dedicou-se ao estudo dos múltiplos aspectos da dominação imperialista (econômico, social, político, cultural), no contexto da guerra fria e da expansão do capitalismo norte-americano na América Latina. Estudou também a articulação íntima entre as elites latino-americanas e o imperialismo.
Em O colapso do populismo, partia de um ponto de vista socialista e avançado. Mostrou como, 1) "as heranças da economia de tipo colonial, sustentada no século XX com base na cafeicultura, facilitaram a formação de monopólios e oligopólios"; 2) para se efetivar, o modelo getuliano de desenvolvimento (ou uma possível opção socialista) teria de "levar a ruptura político-econômica até o fim", o que não ocorreu, levando o desenvolvimento brasileiro a "depender cada vez mais dos vínculos e centros de decisão externos", à desnacionalização provocada pelas facilidades concedidas aos investidores externos, e à "internacionalização crescente da economia nacional"; finalmente, a política econômica da ditadura inaugurada em 1964 substituiu a ideologia do desenvolvimento pela ideologia da modernização (Ianni: 1975).
Nesse contexto as classes dominantes latino-americanas – entre elas a brasileira – reafiaram-se como sócias da espoliação imperialista, situação estudada num conjunto de ensaios sobre as relações entre os EUA e a América Latina, e a teoria da dependência, escritos entre os meados dos anos 60 e o início dos 70 (Ianni: 1974).
"Da mesma forma que os governantes dos Estados Unidos trataram de garantir e desenvolver interesses criados, assim também quase todos os governantes latino-americanos trataram de consolidar suas posições e obter vantagens. A burguesia dominante na maioria dos países da América Latina continuava a aperfeiçoar sua condição de classe subalterna. Novas alianças e associações foram estabeleci das entre as burguesias em escala interamericana. Nesse sentido intensifica-se o processo de continentalização das classes sociais e, por certo, das contradições de classe". A adoção e generalização da doutrina de contra-insurreição foi, então, "um desenvolvimento novo e coerente com o tipo de hegemonia exercida pelos Estados Unidos sobre os países da América Latina", levando à "militarização do poder político, em nome da segurança hemisférica, da contra- insurreição e da interdependência". O imperialismo e as classes dominantes latino-americanas tinham num "inimigo comum" a solda para sua aliança: "o comunismo internacional, ou suas manifestações na subversão interna" (Ianni~ 1974).
O dependentismo subjacente à análise do imperialismo feita por Octávio Ianni também era uma denúncia da dominação imperialista e de sua aliança com as classes dominantes dos países latino-americanos, uma diferença essencial em relação à análise feita por Fernando Henrique Cardoso, cuja principal contribuição teórica, aquela que o tornou famoso, foi a chamada teoria da dependência – onde esses fenômenos eram valorizados de foa positiva.
Já no começo da década de 1961, quando teinava seus estudos sobre a escravidão, Fernando Henrique Cardoso mudou o rumo de suas investigações para a análise das condições sociais e políticas do desenvolvimento. Produziu então alguns artigos muito influentes (Cardoso: 1969), e realizou uma ampla pesquisa sobre os empresários industriais (Cardoso: 1972), onde concluía num embrião daquilo que desenvolveria depois como teoria da dependência – que a burguesia industrial era "incapaz de romper os vínculos com a situação de interesses tradicionalmente constituídos, isto é, com os grupos estrangeiros, com os grandes proprietários e com os comerciantes e banqueiros, a eles ligados. Não assumindo as responsabilidades políticas de classes economicamente dominantes, a burguesia industrial toma-se em parte instrumento da dominação política dos grupos tradicionais. Com isso, cria, quiçá, a possibilidade que mais teme: de perder as chances históricas de exercício pleno da dominação de classe" (Cardoso: 1972).
Essa análise seria desenvolvida mais tarde, depois do golpe militar de 1964, quando Fernando Henrique passou a trabalhar na Comissão EconÔlnica para a América Latina (CEPAL), em Santiago do Chile, na polêmica disse ele numa entrevista de 1992 – contra as visões "comunista populista" e cepalina. Isto é, contra as duas concepções, uma proletária e outra nacionalista- burguesa, que preconizavam reformas na estrutura social brasileira, ele defendia a viabilidade do desenvolvimento capitalista. (Cardoso: 15/5/1992). Assim, em Dependência e desenvolvimento na América Latina, escrito com Enzo Faletto, e que tomou-se o verdadeiro clássico da teoria da dependência, afia que entre o centro e a periferia, ou entre economias desenvolvidas e subdesenvolvidas, não há apenas diferenças de etapas de desenvolvimento, mas de "função ou posição dentro de uma mesma estrutura econômica internacional de produção-distribuição" que supõe uma "estrutura definida de relações de dominação", contrapondo-se, corretamente, às teses dominantes, favoráveis ao imperialismo e sistematizadas pelo norteamericano W. W. Rostow em Etapas do desenvolvimento econômico, com um subtítulo significativo, Um manifesto não comunista, onde descreve o desenvolvimento das sociedades como uma linha ascensional de estágios pelos quais todas devem passar e o subdesenvolvimento é uma espécie de lei natural do desenvolvimento das nações, e que ocorre à margem da dominação colonial e imperialista (Rostow: 1961). Contra essas teses, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto sustentam que os países "em desenvolvimento" não estão "repetindo a história dos países desenvolvidos" (Cardoso e Faletto: 1970).
Ao contrário, a dependência decorre da combinação entre dominação externa e interesses internos à sociedade dependente. Ela tem "expressão" interna e seu "verdadeiro caráter" resulta de um modo deteinado de relações estruturais em que os grupos dominantes mantém "a vinculação econômica com o exterior". O novo caráter da dependência é dado pela internacionalização do mercado, outra novidade que aparece nos textos de Fernando Henrique Cardoso.
Essa análise se beneficiou da tradição comunista, como o próprio Fernando Henrique Cardoso indicou ao citar o seguinte trecho de Lênin, de 1920: "Onde o imperialismo dominante necessita nas colônias um apoio social, une-se, antes de mais nada, com as classes dominantes do antigo sistema pré-capitalista, os feudais da burguesia comercial e usuária, contra a maioria do povo" (Cardoso: 1980).
O caminho da industrialização brasileira após os anos 50 aponta nesse rumo. Seu debate, fomentado pelo populismo varguista, levou à política de Juscelino Kubitschek, onde o desenvolvimento era baseado em investimentos externos, projeto "aceitável para parte do setor exportador", com a vantagem de permitir também o fortalecimento do setor industrial, "agora já associado ao capital estrangeiro" (Cardoso e Faletto: 1970). Juscelino Kubitschek lançou assim as bases do famoso tripé (a associação entre capitais privados e estatais brasileiros com investimentos estrangeiros), cuja conseqüência foi a internalização, na economia brasileira, de um enorme setor estrangeiro cuja reprodução passava a depender da própria capacidade de consumo do país. E que tinha a vantagem adicional, para as classes dominantes tradicionais, de promover a industrialização sem tocar na estrutura social.
Em 1971, essas teses foram aprofundadas, e generalizadas, em outra obra, Política e desenvolvimento em sociedades dependentes (Cardoso: 1971), onde a análise remonta à independência e mostra como os grupos agroexportadores controlaram aquele processo, mantendo o controle do sistema produtivo interno e reorganizando seu vínculo com o mercado internacional, constituindo uma "base interna de dominação externa", resultado da superioridade técnico-econômica das "economias centrais" e "de um processo político social de formação de alianças e de legitimação que passam a criar solidariedades – em tomo de sistemas econômicos comuns – entre grupos e classes sociais situados no âmbito das sociedades dependentes e os que se situam nas nações hegemônicas" (Cardoso": 1971).
Nos anos mais recentes – desde meados da década de 1950 – esse mesmo sistema de alianças e solidariedade entre os proprietários levou à formação de uma industrialização restrita e à criação de um empresariado que, face às dificuldades de acumulação interna, adotou aquele modelo de desenvolvimento associado, com internacionalização do mercado, no qual a origem do capital tanto pode ser interna quanto externa, e a quota da dependência aparece na forma de pagamentos ao exterior. O mais significativo, aqui, é que a realização do lUCf( se faz no interior do sistema econômico dependente. Assim, "os interesses da "grande indústria", nacional, estatal ou estrangeira, se solidarizam: trata-se de garantir o funcionamento do mercado oligopólico forte, capaz de peitir o funcionamento do sistema" (Cardoso: 1971).
Contra os que o acreditaram como um campeão da burguesia nacional e do desenvolvimento autônomo, o próprio Fernando Henrique afia, em entrevista à Folha de S. Paulo, em 1992, que a teoria da dependência foi incompreendida. Ela não era uma denúncia da dominação imperialista, mas a demonstração de que a "burguesia nacional" tinha interesses ligados ao sistema internacional, e isso era positivo. Naqueles anos, combateu aquilo que chamou de novas teses equivocadas (numa alusão a um ensaio então muito usado, intitulado Sete teses equivocadas sobre a América Latina, de Rodolfo Stavenhgen) defendendo a viabilidade do desenvolvimento capitalista na periferia e o papel ativo que as burguesias locais poderiam ter nele. Ao mesmo tempo, negava que a exploração, no capitalismo dependente, estivesse baseada na exploração extensiva da mão-de-obra, e na necessidade de pagar baixos salários (Cardoso: 1975).
Sociedade global
A diferença entre os dois luminares da Escola de São Paulo ficou maior na década de 1990, expressa em avaliações diametralmente opostas da globalização e suas conseqüências.
Ao contrário de Ianni, Cardoso pensa que, nas condições do capitalismo contemporâneo, e principalmente depois da derrocada do Leste europeu, a questão do socialismo desaparece da agenda política, sobretudo na América Latina. "Os critérios que emergem da visão tradicional da esquerda parecem superados, sobretudo se aceitamos que a construção do socialismo na América Latina de hoje é inviável", pensa ele. A luta de classes deixou de existir, substituída pela fragmentação dos conflitos cotidianos, como quer a tradição weberiana. O marxismo tornou-se anacrônico, perdendo atualidade; e não há mais na arena política demônios "a serem eliminados (como a burguesia na perspectiva marxista tradicional)", numa situação em que "a democracia, como ideal, passa a ser um jogo de razão", "sem as dicotomias fechadas da Guerra Fria" (Cardoso: 21/7/ 1995). Idéias cuja sinceridade pode ser avaliada pelo acompanhamento das ações efetivas, concretas, do governo que Fernando Henrique Cardoso dirige!
A rendição de Fernando Henrique Cardoso à globalização sob hegemonia dos EUA é coerente com sua trajetória de cientista social e militante político que, embora tendo feito parte no passado do campo democrático e progressista, sempre foi, na verdade, um teórico da burguesia internacionalizada. "Há mais de 25 anos", disse num discurso na Universidade do Porto, em 1995, "eu utilizava o termo 'internacionalização dos mercados' para caracterizar a atuação das empresas multinacionais em países como o Brasil". Mas, na verdade, "tratava-se da internacionalização do processo produtivo ou, como se diz freqüentemente, da globalização da economia, da expansão dos fluxos internacionais de comércio e de capitais, que acarretou profunda reorganização do sistema econômico mundial" (Cardoso: 221711995). Sua avaliação rósea dos desenvolvimentos recentes vem daí. Ele usa a expressão "novo renascimento" para descrever as mudanças da globalização – que, pensa, impõe-se com a força de uma lei natural. O capitalismo teria entrado numa nova forma de produzir, que envolve todos os povos e nações, e da qual não se pode fugir mas, ao contrário, eliminado o conflito ideológico que caracterizou a guerra fria, pode beneficiar a todos.
A visão que Fernando Henrique Cardoso tem da globalização é antípoda à de Octávio Ianni, apesar de compartilharem alguns traços comuns, principalmente a idéia de que ela resultaria principalmente de mudanças tecnológicas, deixando em segundo plano as mudanças políticas que viabilizaram o uso, em benefício da exploração capitalista, das conquistas da eletrônica, das telecomunicações, da robótica e da revolução nos transportes.
Em 1992, Octávio Ianni publicou A sociedade global, cujas teses retomou e aprofundou emA era do globalismo, de 1996, onde defende teses controversas, embora a partir de um ponto de vista avançado e comprometido com a luta pelo socialismo e pelo progresso social. Diz que, com a globalização (que encara como um novo ciclo de expansão do capital), a humanidade entra em outra etapa histórica, resultante do progresso tecnológico; e, em conseqüência dela, o Estado-nação declina, e a soberania nacional perde significado.
Sua posição tem o mérito de não ser uma rendição perante a globalização, que ele vê como um fato objetivo que recoloca em outro patamar a questão social, a luta de classes e a luta pelo socialismo. O socialismo não acabou, diz, e sua derrota no Leste europeu não significa que tenha deixado "de ser um fato da história, uma possibilidade de organização social da vida e trabalho, do modo de ser de indivíduos e coletividades". "O socialismo é um processo civilizatório que já faz parte da história das sociedades nacionais, bem como da sociedade mundial em formação" (Ianni: 1992). Sob o capitalismo global, a questão social globaliza-se também, e o movimento mundial dos trabalhadores intensifica-se e generaliza-se (lanni: 1992). A flexibilização do processo de trabalho e produção "envolve a emergência de um novo trabalhador coletivo", que agora, mais do que nunca, "é um trabalhador coletivo universal", com adquiriu "dimensão e significado mundiais". Ao contrário dos que pensam que o trabalho perde espaço na produção moderna e, em conseqüência, as classes perdem seu papel e a luta de classes deixa de existir, Ianni pensa que, no momento em que a reprodução ampliada do capital toma "conta do mundo, desenvolvendo as classes sociais e a luta de classes numa escala propriamente global", a condição operária agrava-se pela redução dos salários e superexploração da força de trabalho.
"Acentua-se a exploração da força de trabalho empregada nos países em desenvolvimento. Fica evidente que a utilização da força de trabalho realiza-se em condições de superexploração: salários ínfimos, longas jornadas de trabalho 'legitimadas' pelo instituto das horas extras, aceleração do ritmo de trabalho pela emulação do grupo de trabalho e pela manipulação da velocidade das máquinas e equipamentos produtivos, ausência ou escassez de proteção ao trabalhador em ambientes de trabalho, insegurança social" (Ianni: 1996). A luta de classes, em nível mundial, "repõe a questão do socialismo como organização democrática avançada, superior" (Ianni: 1992). E o marxismo é reafirmado como pensamento capaz de captar, reformular e orientar a ação. "Na essência do capitalismo, como processo civilizatório, está o liberalismo, que é sua visão do mundo mais elaborada, continuamente recriada. Da mesma forma, na essência do socialismo está o marxismo, que é a sua visão do mundo mais elaborada, continuamente recriada" (Ianni: 1992). ~
José Carlos Ruy é jornalista.
Referências bibliográficas
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