Feudalismo versus capitalismo – Visões do Brasil (Quinta Parte)
Na década de 1950 o pensamento progressista brasileiro foi marcado pela retomada do debate sobre a presença e a natureza dos modos de produção na formação social brasileira, debate iniciado no âmbito do Partido Comunista do Brasil na segunda metade da década de 1920, e depois abandonado. O debate estava então polarizado em duas posições: para uma, a Colônia sempre foi capitalista; para a outra, ao contrário, o feudalismo predominou no passado colonial, havendo ainda restos feudais, ou relações semifeudais, a serem superados.
Tradicionalmente, sem grandes preocupações científicas, os historiadores caracterizavam a colônia como feudal. Fundamentavam-se na transposição da legislação e de instituições portuguesas no início da colonização, quando o território foi retalhado em fatias imensas, doadas como capitanias hereditárias a donatários ligados à corte de Lisboa; terras que os donatários ou a própria Coroa podiam distribuir, em grandes porções, a seus protegidos ou como forma de reconhecimento e retribuição a serviços prestados.
A caracterização da Colônia como feudal surgia então por analogia, devido à presença do latifúndio; mas também, por outro lado – como lembrou Ernesto Laclau – por razões polêmicas. As elites liberais latino-americanas, ligadas à Europa e aos EUA, encaravam como estagnados e atrasados os setores da economia voltados para o mercado interno, geralmente provinciais, e incapazes de suportar a concorrência de produtos importados. Como feudais, em suma (Laclau, 1978).
A crítica da elite liberal, feita pela direita, coincidia com outra, feita por setores republicanos e progressistas, para quem as palavras feudal e feudalismo também significavam atraso, monopólio da posse da terra, monocultura agrícola, e o domínio da oligarquia agro-exportadora contra quem lutavam.
Academização do Marxismo
A recusa da caracterização do passado colonial como feudal surgiu nos anos efervescentes da década de 1930, quando os estudos históricos assumiram um papel explicitamente político na luta de classes que então se agudizava. Essa recusa firmou-se cerca de 20 anos depois, quando o questionamento do atraso e do subdesenvolvimento, as exigências de industrialização, a emergência das ligas camponesas e da luta pela reforma agrária, deram contornos políticos à questão.
A principal corrente a defender a tese capitalista inspirou-se na obra de Caio Prado Jr., que, já em 1933, havia enquadrado a Colônia num quadro mundial descrito como capitalista, e do qual a Colônia era apenas um prolongamento (Prado, 1933). Os desdobramentos das teses de Caio Prado Jr. foram duradouros, marcando os estudos históricos durante décadas. Ele contrapôs-se às teses da Internacional Comunista e do Partido Comunista do Brasil que arrolavam o Brasil entre as nações coloniais e semifeudais, negando peremptóriamente a existência do feudalismo em qualquer época histórica brasileira, contraposição que apresentou de forma sistemática em A revolução brasileira, de 1966, (Prado, 1977) livro onde reduz a questão agrária à luta dos trabalhadores rurais por melhores salários, liberdade de organização sindical e extensão da legislação trabalhista ao campo. Esta era, pensava, a contradição principal do campo brasileiro, sendo marginal e menos importante a luta pela distribuição das terras dos latifúndios entre os camponeses.
O foco principal da análise de Caio Prado Jr. esteve sempre na esfera da circulação da mercadoria e, em conseqüência, na articulação da produção colonial com o mercado mundial, que definia o caráter, o sentido, da Colônia, condicionando tudo o que acontecia nela. Foi o capitalismo em expansão que trouxe os portugueses a esta parte do mundo, determinando, para os adeptos desta corrente, o caráter capitalista da Colônia. Em virtude dessa ênfase na esfera da circulação, Caio Prado Jr. (e seus inúmeros seguidores) deixou em segundo plano o estudo da natureza das relações de produção estabeleci das em seu interior, suas particularidades, e da dinâmica colonial interna que resultava delas. Caio Prado Jr. é explícito, neste particular: é a circulação de mercadorias que define o caráter de uma formação social.
A grande aceitação das teses de Caio Prado Jr. está ligada à academização do marxismo, que teve início, no Brasil, entre as décadas de 1950 e 1960. Já foi indicado antes como seu marxismo "sem compromisso ou desígnio político imediatista" (como disse Antônio Candido) facilitou essa aceitação. A presença, em posições salientes na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, de professores democratas e reformistas, como Sérgio Buarque de Holanda e Florestan Fernandes, também ajudou a abrir seu caminho para a universidade.
O primeiro, por trazer para o debate influências weberianas e da escola histórica alemã, que "matizaram as matrizes marxistas" (Capelato, 1995). Florestan Fernandes, por sua vez, como professor de sociologia, na Escola Livre de Sociologia e Política e na Universidade de São Paulo, foi pioneiro no uso técnico do pensamento de Marx, ao lado de Max Weber, Emile Durkheim e dos funcionalistas americanos, numa composição eclética consciente e que o próprio Florestan valorizava.
Em 1958, auxiliares de Florestan na universidade, seus ex-alunos (José Arthur Giarmotti, Fernando Novaes, Paul Singer, Octávio Iarmi, Leôncio Martins Rodrigues, Fernando Henrique Cardoso, Roberto Schwarz, entre muitos outros), criaram o "grupo de Marx" (ou "Seminário Marx") que, até 1964, leu e debateu O Capital. Esse grupo teve grande papel na introdução do marxismo na universidade, e na determinação da espécie de marxismo, politicamente desarmado, que nela seria aceita. Eles buscavam em Marx novas abordagens epistemológicas e teóricas para a história e para a ciência social, e não "um referencial político, visando a revolução social" (Soares, 1997).
A crise do marxismo nos anos 50, resultado das denúncias contra Stálin no XX Congresso do PCUS e sua repercussão entre os marxistas brasileiros, as conseqüências dos levantes húngaro, reprimido duramente pelos soviéticos, e polonês, e a estagnação teórica do marxismo sob influência soviética, também foram fatores que influiram na domesticação do pensamento de Marx por professores universitários que o adotavam como método, mas não como guia para a ação.
A "fragilidade do marxismo combatente, ocupado em organizar as massas (1945/1964)" e o espírito liberal dominante na universidade (que garantiu, até 1968, um certo reinado dos "pensadores críticos") permitiram que aquela geração "transformasse a universidade no cenário formal das 'lutas teóricas "', diz José Carlos Barriguelli. Em conseqüência, com a academização, o "marxismo foi apropriado por forças exteriores ao Partido" (Barriguelli, 1984).
Ao criticar as teses comunistas e defender a vigência do capitalismo desde os primeiros tempos da colonização, as opiniões de Caio Prado Jr. coincidiam com os anseios e com as formulações teóricas daqueles professores. Esta recusa tinha um fundo científico, dadas as insuficiências da tese feudal para dar conta dos problemas históricos de nosso país, e outro de natureza política, resultante da rejeição das formulações e da ação do Partido Comunista do Brasil e sua visão da revolução brasileira.
Para estes críticos, a tarefa histórica mais impositiva e urgente era a modernização do capitalismo brasileiro, e não a luta contra o latifúndio. Caio Prado Jr. e os professores universitários concordavam também na definição de capitalismo e na forma de compreender o colonizador. A Colônia era capitalista porque a Coroa ou donatários, ao doar sesmarias, visavam "a produtividade da Colônia, condição essencial para o aumento de seus rendimentos" (Prado, 1961); o colonizador era, assim, o "empresário de um grande negócio" (Prado, 1963).
E a busca do lucro que define o capitalismo, de acordo com este ponto de vista, opinião que coincide com as idéias de Max Weber (ver adiante), tão caras àqueles professores, ou decorre diretamente da leitura do sociólogo alemão. O marxismo de Caio Prado Jr. e dos professores universitários caracterizava, assim, de forma semelhante o passado colonial e o capitalismo, permitindo uma influência recíproca na ação intelectual e teórica.
A tese Capitalista
A revisão da tese feudal começou a ser feita quando os estudos do passado colonial passaram do campo da história para a política, em decorrência do desenvolvimento e agudização da luta de classes no Brasil. Não é por acaso que ela começou em São Paulo, ligada à luta pela afirmação política e social da burguesia, principalmente da burguesia industrial paulista, podendo ser compreendida como uma reação ao estado de coisas instaurado no país após 1930 (Topalov, 1978).
O fim da República Velha significou a derrota da oligarquia agro exportadora, cujo principal ramo estava em São Paulo, e que dominava os governos da República desde os tempos de Prudente de Moraes e Campos Sales. Em 1932, a derrota da elite paulista foi confirmada pelas armas; em 1937, o sonho de chegar à Presidência da República pela eleição de Armando de Sales Oliveira foi desfeito com o golpe militar que deu origem ao Estado Novo. Naqueles anos – principalmente depois da derrota de 1932 – a elite paulista iniciou um programa de renovação cultural, técnica e ideológica, voltado à formação de quadros para recuperar e manter o seu domínio, criando condições para a modernização conservadora, capitalista, da sociedade brasileira. Para criar "uma 'elite' que, de São Paulo, daria o exemplo ao Brasil", como escreveu Afrânio Peixoto em 1937, no prefário da obra onde aquela revisão aparece de forma desenvolvida pela primeira vez, História Econômica do Brasil, de Roberto Simonsen.
Para esta tarefa modernizadora, a elite paulista criou então, entre outros instrumentos, a Escola Livre de Sociologia e Política, em 1933, e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, núcleo da Universidade de São Paulo, em 1934 (Miceli, 1979).
É nesse contexto que surge a obra de Roberto Simonsen. Tratava-se de firmar um ponto de vista capitalista, burguês, sobre a formação social brasileira. Ele próprio foi um arrojado diretor da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), empresário e teórico importante da burguesia industrial, defensor de um projeto de desenvolvimento capitalista autônomo para o Brasil, protagonista de um debate intenso com os livre-cambistas (os antepassados dos atuais neoliberais) simbolizados pelo economista Eugênio Gudin (Lima, 1976). Roberto Simonsen foi o primeiro professor de história econômica do Brasil na Escola Livre de Sociologia Política, e seu livro, publicado pela em 1937, foi composto com as aulas que proferiu.
Em 1933, Caio Prado Jr. já havia iniciado a revisão, ao defender que a Colônia foi capitalista, e não feudal. Mas será Roberto Simonsen, em sua obra pioneira de história econômica, quem vai romper mais nítida e conseqüentemente com a tese feudal. Para ele, o Brasil foi capitalista desde a origem. Os portugueses se lançaram sobre os oceanos e se estabelecerem em outras terras em busca do lucro: "todos procuravam a nova terra em busca da fortuna; todos visavam a melhorar sua situação econômica. O fito do lucro era a causa primordial da vinda para o Brasil" (Simonsen, 1937).
Intérprete fiel de sua classe, Roberto Simonsen define o capitalismo como a busca do lucro, uma tese tipicamente burguesa, que compreende o aumento da riqueza através da compra e venda de mercadorias e – em consequência – analisa o movimento da economia principalmente a partir da esfera da circulação (onde o dinheiro reina soberano), desconhecendo ou relegando a plano secundário a esfera da produção, que é onde ocorrem as relações de produção (e, por isso, as relações sociais) decisivas, e onde o segredo da exploração dos trabalhadores se oculta.
O uso dessa tese, a "orientação capitalista para o lucro", como suporte teórico da definição da formação social brasileira como capitalista desde o início da colonização, teve longo curso entre os historiadores, sendo sofisticada nos anos 50 e 60 quando a obra de Max Weber é incorporada a seu horizonte conceitual, estando presente, explicitamente ou não, em quase todos aqueles que atribuem à Colônia um caráter capitalista, numa compreensão ahistórica do capitalismo, encarado não como um modo de produção, mas como o movimento para a aquisição de riquezas. Ao restringir-se à esfera da circulação, a análise deixa oculta a relação de exploração específica de cada modo de produção, que se manifesta nas relações de produção. Weber deu cidadania, na ciência social, a esta identificação burguesa do capitalismo com a busca do lucro, "de um lucro sempre renovado, da 'rentabilidade'. Só pode ser assim", como escreveu. Essa "orientação capitalista para o lucro" aparece sob várias formas, desde a antiguidade: comércio, botim, especulação com dinheiro, espoliação fiscal, e até mesmo como produção de bens (Weber, 1967 e 1992).
Caio Prado Ir. polemizou com as teses comunistas, através de artigos na Revista Brasiliense ou, de forma mais sistemática, em A revolução brasileira, de 1966, criticando os que buscavam inspiração nos modelos russo ou chinês, e criticando a ênfase a um aspecto da questão agrária que julgava secundário, marginal, a luta pela terra, num momento em que pensava – a contradição fundamental no campo é aquela que opõe os assalariados rurais às grandes propriedades.
Outro autor, crítico das posições comunistas, que teve grande repercussão na época foi o norte-americano (de origem alemã) Andre Gunder Frank, para quem o atraso da agricultura brasileira decorre não da presença de restos feudais, mas da própria natureza do capitalismo, que produz simultaneamente desenvolvimento e subdesenvolvimento (Topalov, 1978; Frank, 1967)
A tese feudal
A outra tese presente no debate sobre os modos de produção, reiniciado nos anos 1950 e 1960, era aquela que encarava o passado colonial como feudal, e via o presente como semifeudal, ou marcado por restos feudais que deviam ser removidos.
Esta foi a posição do Partido Comunista do Brasil, influenciada pela Internacional Comunista (apesar de extinta 1943, suas teses continuaram aceitas), e que aparece, por exemplo, em maio de 1944, no documento Luís Carlos Prestes e a situação no Brasil e no mundo, que defende uma ampla aliança, "de todas as classes sociais, democráticas e progressistas, desde o proletariado até a grande burguesia nacional", e afirma que, na ausência de condições subjetivas e objetivas para a revolução socialista, "os comunistas no Brasil sempre lutaram pela revolução democrático-burguesa". O documento é claro nesta opção: "a classe operária sofre muito menos da exploração capitalista do que da insuficiência do desenvolvimento capitalista e do atraso técnico de uma indústria pequena e primitiva". Por isso, "o que convém agora à classe operária é a liquidação dos restos feudais, de maneira que se tome possível o desenvolvimento o mais amplo, o mais livre e o mais rápido possível do capitalismo no país". A liquidação dos restos feudais, traduzida por uma reforma agrária que acabasse com o latifúndio, era encarada como condição essencial daquele desenvolvimento; ela permitiria ampliar o mercado interno para a indústria brasileira, fornecer alimentos mais baratos para os trabalhadores, e matérias primas para as fábricas nacionais. O documento citava inclusive o relatório anual de 1943 das Indústrias Reunidas F. Matarazzo para comprovar que a proposta comunista era aceitável para o setor da burguesia nacional que via na ampliação do mercado interno o caminho do fortalecimento da economia brasileira (Carone, 1982).
Idéias como estas passaram a ser difundidas amplamente pela imprensa comunista desde 1945, estavam presentes nas Teses do IV Congresso do Partido Comunista do Brasil, divulgadas em 1947 (Barriguelli, 1981), e figuraram nas resoluções deste Congresso, finalmente realizado em 1954, que reafirmaram o "caráter semi- feudal e semi -escravista da sociedade brasileira", e a natureza "democrático-popular, de cunho anti-imperialista e agrária antifeudal" da revolução brasileira. O imperialismo e o latifúndio são os inimigos principais, adversários do desenvolvimento da economia nacional e fatores que determinam o atraso do país e a miséria e pauperização "das grandes massas camponesas que constituem a maioria da população brasileira". A burguesia, por sua vez, é aliada do proletariado na luta antiimperialista, posição defendida naquele documento de forma enfática: "O partido não só não ameaça seus interesses como defende suas reivindicações de caráter progressista, em particular o desenvolvimento da indústria nacional", pois a burguesia nacional não é inimiga, e "por determinado período pode apoiar o movimento revolucionário contra o imperialismo e contra o latifúndio e os restos feudais" (Problemas, 1964; Carone, 1982).
As resoluções do IV Congresso foram desenvolvidas depois por autores comunistas, entre os quais se destacam Alberto Passos Guimarães, cujo Quatro séculos de latifúndio se tomou referência obrigatória nos estudos sobre a propriedade da terra no Brasil, e Leôncio Basbaum, cuja História Sincera da República constituiu uma primeira abordagem sistemática e panorâmica da história da República, escrita sob o ponto de vista marxista (Guimarães, 1964; Basbaum, 1957). Basbaum, para quem o proletariado é a classe que "deve reescrever a história do Brasil", formulou uma hipótese original sobre a colônia: nela existiu, escreveu, um "novo tipo de feudalismo", misto do feudalismo medieval, do escravismo romano e do capitalismo mercantil. Segundo ele, a escravidão impediu o desenvolvimento do mercado interno no Brasil no passado; hoje, esse entrave é representado pelo latifúndio. E, de seu ponto de vista, a ausência do mercado interno é a "causa fundamental do atraso do Brasil" (Basbaum, 1957).
Entretanto, o autor que desenvolveu de forma mais conseqüente e acabada as teses sobre a formação social brasileira apresentadas nas resoluções do IV Congresso foi Nelson Werneck Sodré. Comunista e nacionalista, tentou compreender as contradições do Brasil de seu tempo a partir do estudo da formação da nação brasileira, da luta contra o colonialismo e o imperialismo, apresentando em suas conclusões as qualidades e os limites daquelas conclusões.
Nelson Werneck Sodré foi, entre os historiadores marxistas brasileiros, o autor da obra mais ampla e abrangente, no tempo e na variedade de temas abordados. Além da literatura, da história e da crítica da cultura, seus assuntos preferenciais, ele tem livros temáticos, exaustivos, sobre classes sociais, militares, imprensa, geografia, etc.
Militar cassado pelos generais golpistas de 1964, foi um dos pioneiros no uso do marxismo no estudo da formação social brasileira, tendo sido militante comunista ligado ao Partido Comunista do Brasil e, depois de 1961, à expressão organizativa que assumiu a denominação de Partido Comunista Brasileiro.
Oficial de destaque entre os militares nacionalistas, nas décadas anteriores ao golpe militar de 1964, ele foi um dos criadores do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), órgão do Ministério da Educação e Cultura que, nos anos 50 e 60, dedicou-se ao diagnóstico dos problemas brasileiros de um ponto de vista nacionalista e democrático. Sua obra esteve comprometida com a luta política, nacionalista e democrática, ligada à necessidade de se aprofundar a consciência crítica sobre os problemas brasileiros, intervir e influir no debate e na ação política transformadora.
Assim, foi um historiador clara e assumidamente militante, praticamente à margem da universidade, mas próximo às forças (o Partido Comunista e os militares nacionalistas e democráticos) que davam suporte ao projeto nacional desenvolvimentista do qual Nelson Werneck Sodré foi um dos mais influentes autores. Um exemplo dessa militância foi a elaboração da História Nova do Brasil, em 1963, que coordenou, um projeto de revisão da história de nosso país. Depois de 1964, a História Nova foi destruída pela ditadura dos generais, e seus autores presos, torturados e exilados, pela ousadia de escrever um relato da trajetória de nosso país que fugia ao figurino conservador aprovado pelas classes dominantes (Sodré, 1993).
Em posição oposta à de Caio Prado Ir., Nelson Werneck Sodré partiu das teses comunistas, inspirando-se amplamente em Marx, Engels e Lênin e nos autores soviéticos. "A história é uma ciência social, seu objetivo é o conhecimento do processo de transformação da sociedade ao longo do tempo", escreveu no capítulo inicial de Formação Histórica do Brasil (Sodré, 1976). "As relações que se estabelecem na produção são relações sociais: constituem objeto da História. Elas definem a sociedade sob três aspectos:
– forma de propriedade sobre os meios de produção, que é uma relação determinante;
– situação social conseqüente, com a divisão da sociedade em classes;
– formas de distribuição da produção, estabelecendo os nexos entre a produção e o consumo".
Identificou, no Brasil, a presença dos cinco estágios, "diferentes regimes de produção", que a sociedade conhece em seu desenvolvimento (comunismo primitivo, escravismo, feudalismo, capitalismo e socialismo). Aqui, escreveu, pode-se observar a vigência, "da descoberta aos nossos dias, de cada um daqueles regimes de produção, salvo o último, como sua coexistência ao longo do tempo e ainda hoje".
Para ele, a defesa da tese capitalista baseava-se na confusão entre a existência do capital mercantil e a vigência do modo de produção capitalista. Recusava assim as formulações que se assemelhavam (e se inspiravam e baseavam) às teses weberianas que identificam o capitalismo com a busca do lucro.
Ao contrário, autor marxista mais consequente, ele partiu das análises do próprio Marx, em O Capital, para distinguir a mera existência do capital (que, como mostrou Marx, pode estar presente em outras formações históricas, na forma de capital mercantil) da presença do modo de produção capitalista. "A confusão deri va da caracterização como capitalista de formas anteriores ao modo de produção capitalista, o capital comercial e o capital usurário" (Sodré, 1976a). Confusão que, diz, levou à identificação da formação social dominante, em Portugal na época das navegações, ou no Brasil colonial, como capitalista. Sua conclusão tinha um fundamento preciso: "onde não há trabalho assalariado, não há burguesia, não há capitalismo", escreveu (Sodré, 1976).
Ao contrário daquela visão simplista da sociedade colonial, Nelson Werneck Sodré indicou três traços fundamentais para caracterizar a produção colonial: "grande propriedade, modo de produção escravista, regime colonial" (Sodré, 1976). A partir do esquema básico inspirado pela Internacional Comunista para compreender a evolução das sociedades (os "cinco estágios"), ele chegou a uma formulação própria a respeito da evolução da sociedade brasileira, no qual a colonização começa sob inspiração da legislação feudal portuguesa, mas logo se transforma num modo de produção escravista. Ele destaca a complexidade da formação social brasileira, com a convivência já nos tempos coloniais de modos de produção distintos: o escravismo dominante em uma área geográfica própria, o litoral, a região da grande produção exportadora; e o feudalismo, presente nas áreas pastoris, e nas regiões vicentina, amazônica e sulina. Na segunda metade do século XVIII, a crise da Colônia faz o feudalismo estender-se, como regressão, ao Nordeste açucareiro e na região da mineração. Mais tarde, no século XX, relações feudais subsistem subordinadas ao modo de produção capitalista, sendo o latifúndio responsável por elas (e também pelo atraso do capitalismo brasileiro e de sua característica mais forte, a dependência).
A análise de Nelson Werneck Sodré escapa ao simplismo dependentista da visão de Caio Prado Ir., para quem a Colônia foi capitalista por estar inserida na expansão capitalista mundial, e fazer parte dela. Sua elaboração é mais rica de determinações. Em primeiro lugar, porque recusa-se a aceitar o domínio mundial do capitalismo já nos séculos XVI e XVII, antes portanto da revolução industrial inglesa de meados do século XVIII. O que havia antes disso era o movimento do capital comercial que se espalhava pelo mundo e explorava diferenciais de produtividade decorrentes dos níveis diferentes de desenvolvimento das nações.
Em segundo lugar, a acumulação primitiva do capital se beneficiou dessa desigualdade do desenvolvimento entre as nações, contribuindo para mantê-Ia e aprofundá-la depois, sob o modo de produção propriamente capitalista, baseada na exploração assalariada de trabalhadores livres e despossuídos dos meios de produção, donos apenas da força de trabalho que vendem aos capitalistas. Assim, ao mesmo tempo em que o modo de produção capitalista se afirmava inicialmente na Inglaterra, e se tomava mundialmente hegemônico, no Brasil, o modo de produção escravista continuava dominante, convivendo ao lado da regressão feudal das regiões cuja economia, em crise, havia estagnado.
Este era o quadro brasileiro quando ocorreu a Independência. Ele explica a vitória da facção conservadora no processo emancipacionista, no qual a classe dominante escravista e latifundiária, agro-exportadora, aliou-se à burguesia européia para manter a mesma estrutura social e econômica da Colônia: a produção, baseada no trabalho escravo, voltada para a exportação, o livre cambismo que abriu o mercado brasileiro às mercadorias européias (principalmente inglesas), e o recurso aos empréstimos estrangeiros para financiar os déficits na balança comercial. Fortalecia-se assim aquela aliança de grandes proprietários que, ao longo da história, deu fundamento à manutenção do atraso e do subdesenvolvimento, e que tomou grandes setores da elite brasileira em sócios menores da espoliação colonial (e, mais tarde, imperialista) do país. Isso se traduziu, inicialmente, na manutenção do escravismo, do monopólio da propriedade da terra, e do papel subordinado do Brasil na divisão internacional do trabalho, como fornecedor de produtos agrícolas e matérias primas, e consumidor de bens industrializados importados de outras nações.
O capitalismo que se desenvolve neste quadro terá a mesma marca da dependência e subordinação típica do passado colonial, influindo em toda evolução histórica brasileira posterior, traduzindo-se inclusive no caráter incompleto da revolução burguesa, cuja principal limitação Nelson Werneck Sodré identifica com argúcia ao comentar o golpe de estado de Vargas em 1937. A ditadura então implantada, diz, "correspondia a uma tentativa de realizar a revolução burguesa sem o proletariado" (Sodré, 1976).
Apesar dos limites, e do esquematismo, das teses da Internacional Comunista , como hoje se reconhece, a filiação de Nelson Werneck Sodré a elas foi fértil, sendo um dos méritos de seus estudos. Partindo delas, e de sua insuficiência explicativa para o caso brasileiro, ele procurou dar concreticidade à análise estudando a luta de classes e as relações de produção no Brasil numa profundidade e coerência até então desconhecidas.
É certo que muitas vezes deixou-se levar pelo esquematismo daquelas teses. Mas a busca da compreensão da natureza dos modos de produção aqui vigentes, de sua especificade, das relações de produção que os caracterizaram, e da luta de classes que se desenvolvia, levou-o a desvendar aspectos importantes da formação da nação e do povo brasileiro. Ajudou também a compreender de forma mais precisa a articulação entre as classes dominantes agro-mercantis brasileiras e os banqueiros e grandes financistas que dominavam a economia mundial, el aborando descrições empíricas minuciosas e de grande valor para o esclarecimento de muitos aspectos de nossa história.
Nelson Werneck Sodré teve clara consciência do viés político do debate sobre o feudalismo e o capitalismo. Escrevendo muitos anos depois, em 1980, disse que o problema "do feudalismo brasileiro importou sempre uma singular mistura entre ciência e ideologia", tendo o debate uma motivação mista, científica e política.
Lembrando "que os documentos políticos do partido do proletariado sempre se referiram até algum tempo atrás a relações feudais ou semi-feudais cuja superação se fazia necessária", diz que aqueles que divergiam dessa posição, afirmando a tese capitalista, tinham uma posição política travestida de divergência científica. Por outro lado, aceitar a existência de relações feudais ou semi-feudais, ou de restos feudais, e defender uma "política que as eliminassem, como condição preliminar para passar a uma nova etapa, mais avançada", significava "admitir a necessidade histórica de realizar ou completar a revolução burguesa aqui, antes de colocar a reivindicação socialista". Esta tese, "que foi bandeira do partido", preconizava também um papel progressista para "uma parcela da burguesia, dita nacional, que poderia desempenhar papel entre as forças interessadas no acabamento da revolução burguesa e, por isso mesmo, na superação dos restos feudais ou relações feudais ou relações semifeudais" (Sodré, 1980).
Aqui está o mérito e o defeito da contribuição de Nelson Werneck Sodré. O mérito está na compreensão clara do caráter político daquele debate, e a intervenção do autor nele, não de forma acadêmica ou apartidária, mas científica e militante, colocando o rigor do conhecimento e da elaboração teórica a serviço da luta pelo progresso social.
O defeito está no nacional reformismo, do qual foi campeão, que enfatiza a nação e a luta antiimperialista e coloca a luta de classe do proletariado em segundo plano.
Nesse sentido, Nelson Werneck Sodré ajudou a implantar os alicerces do revisionismo dentro do velho PCB e das ilusões sobre o papel democrático e transformador que a burguesia brasileira e algumas facções militares poderiam ter. Escrevendo no início da década de 1960, afirmou que "nas condições atuais do desenvolvimento brasileiro, já não é possível sem luta o domínio do capital estrangeiro sobre o capital nacional, do capital comercial sobre o capital industrial, do latifúndio sobre o desenvolvimento.
Há uma disputa pelo poder entre as forças do progresso e as forças do atraso" (Sodré, 1976).
Identificava se concretamente a contradição entre a nação e o imperialismo, dando-lhe a ênfase necessária, Nelson Werneck Sodré tinha uma confiança, claramente revisionista (e que dominava os setores reformistas que depois de 1958 tomaram de assalto a direção do Partido Comunista do Brasil), na capacidade da burguesia brasileira (então chamada de burguesia nacional), de liderar a nação num amplo movimento contra o imperialismo e seus aliados internos. Ele acreditava, com razão, na existência de fatores (abundância de terras, mão-de-obra, recursos naturais) capazes de servirem de base a uma "autêntica política de desenvolvimento", e relativizava a sempre alegada necessidade de capitais estrangeiros para promovê-Ia (Sodré, 1976).
Ora, na época em que escreveu isso, já ia avançada a transformação na aliança entre as classes proprietárias. Nelson Werneck Sodré a registrou, sem compreender que seus desdobramentos eliminavam a base de seu argumento, a crença na existência de uma contradição insolúvel entre o capital estrangeiro e o capital nacional. Essa mudança consistia na associação, dependente e subordinada, entre os industriais brasileiros e o capital estrangeiro que se aprofundava, impulsionada desde a política econômica do governo de Juscelino Kubitschek. Alguns meses depois, a aliança dos proprietários destruiu, pela força das armas, no golpe militar de 1964, essas ilusões reformistas.
Nos anos seguintes, o debate sobre a formação histórica brasileira aprofundou-se, ganhando novas dimensões. A chamada "escola de São Paulo", formada pelos estudiosos que se reuniram em torno de Florestan Fernandes, na Universidade de São Paulo, trouxeram o escravo, o negro e a abolição, para o centro da discussão.
Escritores como Clóvis Moura, nos anos 50, e Jacob Gorender, nos anos 70, foram autores de importante contribuição sobre a dinâmica histórica interna à formação social brasileira no período escravista. Entre as próprias organizações da esquerda, foi se aprofundando o entendimento dessa dinâmica, de tal forma que, desde então, as formulações oriundas, ou inspiradas, nas teses da Internacional Comunista puderam ser ultrapassadas, no sentido dialético do termo: incorporando a parte racional de suas contribuições, e descartando aquilo que o conhecimento dos fatos desautoriza. Este é o tema do próximo artigo.
José Cartas Ruy é jornalista.
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