"Esta terra ainda vai cumprir seu ideal! ainda vai tornar-se um imenso Portugal" – estes versos do Fado Tropical, de Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra, foram escritos no começo da década de 1970. Após a Revolução dos Cravos, em Portugal, que acabou com a ditadura salazarista, passaram a ser entendidos por muitos, no Brasil, como a promessa de um caminho que, semelhante ao percorrido nas ruas e praças de Lisboa, Porto e outros lugares, levaria também os brasileiros a um futuro de democracia, liberdade, de ampliação dos direitos políticos e sociais.

Aqueles versos também faziam referência à herança lusitana que os brasileiros trazem – herança de bonomia, sentimentalismo, uma postura compreensiva, maleável, perante os problemas que a vida coloca, mas também de inflexibilidade, dureza e brutalidade. Ambiguidade registrada em versos como:
"E se a sentença se anuncia brutal mais que depressa a mão cega executa / pois que senão o coração perdoa".

No passado, as relações dos brasileiros com essa herança não foi simples. Uma espécie de jacobinismo pouco desenvolvido fez do português o alvo de ataques da plebe, e o grito "mata marinheiro" ecoou em todos os levantes populares no século passado – da Cabanagem, no Pará, entre 1835 e 1840, à Praieira, em Pernambuco, de 1848 a 1852, até a revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, já em 1904.

Consciência de classe e de Nação pouco desenvolvida, esse jacobinismo não sabia enxergar seu inimigo verdadeiro na aliança entre banqueiros, latifundiários e grandes comerciantes de importação e exportação, com os agentes políticos e econômicos do imperialismo – e que estava personificada em homens de diferentes nacionalidades: brasileiros, portugueses, ingleses, franceses, norte-americanos c, mais tarde, italianos, espanhóis, sírio-libaneses etc.

Daí a fúria com que se voltava contra o comerciante varejista, o proprietário de casas aluguel, o pequeno empresário que, embora nascidos em outras terras, aqui agiam e trabalhavam. Exploradores do trabalho do povo, é certo, mas igualmente explorados (embora em outra escala) pelas elites brasileiras e estrangeiras que dominavam o País.

Mais tarde, nas primeiras décadas deste século, esse antilusitanismo feroz foi se arrefecendo, transformando-se no antilusitanismo intelectual de algumas áreas. Como o escritor Manoel Bonfim, que atribuiu à "transmissão, à Nação brasileira, do deletério Estado Português", os males do país. "O Brasil que recebemos trouxe um passado enraizado nos sedimentos podres de quase dois séculos de bragantismo" (1). Raymundo Faoro, escritor mais moderno, sofisticou o argumento, e vê na história comum de Portugal e Brasil as raízes de um patrimonialismo na sua opinião característico da herança ibérica, que confunde o público e o privado, torna o Estado onipresente, subordina a ele todas as atividades sociais e econômicas, impede o livre funcionamento do mercado, cria relações cartoriais e de favor entre as empresas e o governo e, assim, gera as condições políticas onde o atraso prospera e se mantém (2).

O modelo capitalista anglo-saxão já era então erigido em modelo a ser imitado.
Forjou-se assim a lenda de que um dos principais fatores do atraso brasileiro é a herança ibérica – lenda que fundamentou outra compreensão distorcida mas muito comum em algumas esferas intelectualizadas no Brasil – a tese de que a colonização anglo-saxônica teria sido mais “benéfica”, capaz de levar os povos à senda da civilização e do progresso. Ao contrário da colonização ibérica.

Basta, entretanto uma avaliação, mesmo superficial, do destino das nações colonizadas, sejam quais forem os colonizadores, para que se destruam os fundamentos desse mito. Hoje, quando “modernidade” tornou-se sinônimo de rendição incondicional aos padrões de pensamento e comportamento e aos interesses dos países imperialistas dominantes, principalmente os Estados Unidos, convém questionar a que é mesmo que se deve o atraso que ainda persiste no Brasil. Os ideólogos do neoliberalismo retomam temas que, pelo menos desde os anos 1950, estavam fora de circulação, como a persistência da herança ibérica e católica, em detrimento das pretensas virtudes anglo-saxãs de valorização dos interesses individuais. da predominância do mercado, e da ética protestante. Atribuem o atraso a traços culturais e psicológicos dos brasileiros, e não à continuidade de estruturas sociais arcaicas na sociedade brasileira e sua articulação subordinada a uma ordem mundial dominada pelos interesses colonialistas, no passado, e imperialistas em nosso tempo.

Um exemplo da sobrevida fantasmagórica da lenda que atribui o atraso à influência ibérica é a obra de dois acadêmicos norte-americanos, Lawrence Harrison, do Massachussetts Institute of Technology, e Stephen Haber, da Universidade de Stanford (3). Eles explicam o atraso da América Latina, e do Brasil em especial, pela ação de causas internas de natureza cultural e psicológica. Harrison é particularmente incisivo, e vê a raiz dos problemas na tradição ibérica e católica cujos traços seriam o autoritarismo, a injustiça e a aversão ao mercado. Suas teses configuram um caso típico de apologia do domínio norte-americano e de ideologia no sentido de falsa consciência sua finalidade é justificar a situação atual e convencer os brasileiros e os latino-americanos de que só vão evoluir se romperem com sua tradição cultural e histórica, e adotarem modos de ser e pensar anglo-saxões, particularmente norte-americanos.

A reação contra esse pensamento é antiga, e a obra de Gilberto Freyre – autor da tese do lusotropicalismo – radicaliza o argumento em sentido oposto. O "certo é que
os portugueses", escreveu em 1933, "triunfaram onde outros europeus falharam: de formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com características nacionais e qualidades de permanência" (4).

O argumento de Gilberto Freyre ainda está no campo da cultura, o mesmo dos detratores da int1uência ibérica. Escritor ligado às oligarquias pernambucanas, Gilberto Freyre edulcorou as relações sociais no Brasil. Para ele, a escravidão aqui foi benévola – o mito do senhor bondoso – e teria existido uma espécie de “democracia senhorial” onde as relações sociais seriam harmônicas e os conflitos sociais, mesmo agudos, seriam resolvidos pela negociação e acomodação. Uma sociedade, enfim, onde não existe luta de classes.

Dessa forma, Gilberto Freyre inventou outro mito – o do colonizador que, ao contrário do anglo-saxão e outros do Norte da Europa, misturou-se “democraticamente” com o colonizado. Uma igualmente lendária atração do português por mulheres de outras raças estaria na base dessa relação “democrática”. Por essa razão, Gilberto Freyre e seu lusotropicalismo foram louvados por Antônio Salazar e pelos ideólogos do salazarismo, que encontraram nele novos argumentos para justificar o império colonial português na África.

As teses que explicam a história pela cultura ou pela psicologia falseiam o conhecimento do processo histórico real

Essas teses, que explicam a história pela cultura ou pela psicologia, falseiam o conhecimento do processo histórico real. Sua capacidade de convencimento decorre do fato de se basearem em alguns aspectos verdadeiros. A parte verdadeira da tese falsa dos autores norte-americanos é a idéia de que o atraso não se deve só à dominação estrangeira mas também à dinâmica interna das sociedades latino-americanas.

Já a falsidade das teses de Gilberto Freyre está ancorada na verdade de que a repressão brutal característica do colonizador era por vezes amenizada pelo sentimentalismo paternalista na relação com os subalternos que os serviam diretamente.

No caso mais antigo da lusofobia popular e, depois, intelectual, a rejeição deriva, primeiro, do fato histórico de Portugal ter sido a metrópole colonial; depois, do processo de Independência do Brasil, que manteve – na figura do príncipe D. Pedro e da permanência da Casa de Bragança à frente da monarquia brasileira – estruturas jurídicas e institucionais legadas pelo Estado português quando se deu a ruptura, em 1822. As Ordenações do Reino, por exemplo, ficaram em vigor no Brasil até 1917, quando um novo Código Civil foi adotado para regular o cotidiano dos brasileiros.

Finalmente, a lusofobia foi também uma forma de ideologia que, ocultando os conflitos de classe, desviou o ímpeto da ira popular de seus verdadeiros alvos, as classes dominantes brasileiras e seus aliados estrangeiros, principalmente os banqueiros londrinos.

Não é sem razão que a lusofobia e as explicações de natureza cultural ou psicológica para o processo histórico entraram em colapso quando as lutas sociais passaram a assumir, no Brasil, o caráter moderno da luta de classes aberta e crescentemente consciente, uma tendência que cresceu após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o modo de produção capitalista se tornou hegemônico no país, e uma classe operária moderna, vigorosa e combativa emergiu no cenário político, construindo seus instrumentos coletivos de luta política e social.

Os moderados aliam-se ao povo mas, obtida a vitória, traem os compromissos assumidos
Essa situação nova condicionou uma compreensão mais profunda do processo histórico brasileiro, baseada não nos desejos ou fantasias intelectuais dos analistas, mas na dinâmica real dos conflitos e
ajustes entre as várias forças sociais em ação.

O desenvolvimento da luta de classes no Brasil tem uma característica marcante, ainda à espera de seu historiador – aqui, as revoluções não se completam. "As revoluções no Brasil", diz o historiador Hélio Silva, "tiveram sempre uma marcha claudicante: uma perna mais comprida, alcançando o porvir, representando a tendência renovadora; outra, mais curta, fincada no pretérito, pesada de preconceitos como o enxerto, no corpo da política, de tudo aquilo que era para ser abandonado" (5).

Alguns setores das classes dominantes brasileiras desenvolveram, ao longo dos séculos, uma singular capacidade de, nos momentos em que a mudança é inevitável, unir-se aos partidários do novo, participar do processo renovador, assumir seu controle, manter-se no topo da sociedade e conservar, junto aos novos donos do poder, seus privilégios e interesses. Essa situação decorre, primeiro, da situação de dependência do país, que exige sempre, nos momentos de crise mais aguda, a união de todos os brasileiros em defesa da integridade da Nação, como no período da consolidação da Independência, entre 1822 e 1831. Ou de defesa da República contra as ameaças de restauração monárquica, entre 1889 e 1898. Mais tarde, frente à ameaça do descontrole de uma revolução que, em seu desenvolvimento, poderia ameaçar o domínio das classes proprietárias – como ocorreu na década de 1920, culminando na revolução de 1930 – o instinto político dos setores mais sagazes das elites levou-as a antecipar-se às mudanças e assumir sua direção.

Esta é uma tese que só um estudo aprofundado poderá desenvolver. Ela se fundamenta na percepção da continuidade histórica do comportamento de setores das classes dominantes em momentos de mudança revolucionária. Essa habilidade política é secular. Ainda antes da Independência política formal, os temores da corte de D. João VI, instalada no Rio de Janeiro desde 1808, aconselhavam aos ministros a permanência do príncipe D. Pedro no Brasil, no caso do retorno da Corte para Lisboa.

Segundo Silvestre Pinheiro Ferreira, ministro e importante interlocutor do monarca, o principal encargo do príncipe seria evitar que rebentassem "os germes da revolução" cuja existência – dizia – é "impossível dissimular", pois "existem e fermentam em mais de um sentido" (6). O príncipe cumpriu seu papel, a ponto de liderar os partidários da autonomia e, em aparente contradição com seus interesses nacionais e dinásticos, passar para a história como o autor da independência brasileira.

Aquele embate não foi, entretanto, o desquite harmonioso e amigável registrado nos livros da história oficial. O grito do Ipiranga, de 7 de setembro de 1822, culminou um processo autonomista que já tinha alguns meses. Já em junho de 1822, num ato de autonomia política, o príncipe convocou, por exemplo, uma assembléia nacional constituinte para deliberar sobre a forma de organização política do Brasil. E as tropas de Portugal só saíram de vez do Brasil depois de derrotadas em batalhas memoráveis na Bahia, no Maranhão e no Piauí, em 1823.

O tenentismo foi um movimento revolucionário que receava mobilizar os trabalhadores

O capítulo tempestuoso da história brasileira que foi o Primeiro Reinado terminou com a abdicação do imperador D. Pedro I, em 7 de abril de 1831, fato encarado na época, com razão, como a consolidação da independência e o abrasileiramento do governo e do Estado.

Naqueles anos, radicais (os “exaltados”), moderados e absolutistas engalfinharam-se no processo político. Os radicais eram republicanos, federalistas, queriam substituir a escravidão pelo trabalho livre. Muitos eram contra o latifúndio. Preconizavam um desenvolvimento autônomo para o país, com proteção estatal para o desenvolvimento de indústrias locais, principalmente a siderurgia. Mesmo um partidário de D. Pedro I, que jamais apareceria com as cores do radicalismo, como José Bonifácio, conhecido como o Patriarca da Independência, defendeu um programa como este, com distribuição de terras a colonos que a quisessem para trabalhar, a imigração e o fim da escravidão (7).

Os absolutistas foram partidários de D. Pedro I até 1831 e, depois, da restauração, até a morte do monarca em 1834. Os moderados, por sua vez, queriam apenas mudanças jurídicas e institucionais, mas nunca sociais. Defendiam a monarquia constitucional, o parlamento com o voto censitário (portanto, apenas para os proprietários), a centralização como forma de manter o liberalismo nas relações comerciais do País com o mundo, e as velhas relações de produção escravistas e coloniais dentro do País. Foi o programa dos latifundiários, dos traficantes de escravos, dos grandes comerciantes de importação e exportação, dos agentes do imperialismo inglês que, rapidamente, substituíam os portugueses na parceria externa das elites brasileiras.

Na luta aberta entre estas facções, os moderados em muitas ocasiões aliaram-se aos exaltados e, depois de conseguido o objetivo, esforçaram-se para fazer os acontecimentos voltarem ao leito confortável da luta institucional. Um exemplo desse comportamento foi o de Evaristo da Veiga, um dos animadores do levante que levou à abdicação de D. Pedro I, em 1831. Imediatamente após o sucesso da rebelião, ele assumiu o controle do movimento para evitar que a revolução fosse até o fim. "Faça-se tudo quanto é preciso, mas evite-se a revolução", escreveu ele em seu jornal Aurora Fluminense, que tinha enorme prestígio (8). Em 1834, nas vésperas da morte do antigo imperador, ele confessava temer mais a democracia que o despotismo real: "não temo que o Brasil se despotize, temo que se anarquize; temo mais hoje os cortesãos da gentalha que aqueles que cheiram a capa do monarca" (9).

Nesse sentido, mais radical que Evaristo foi Bernardo Pereira de Vasconcelos, um deputado liberal que se destacou na luta contra o absolutismo real mas que, derrotado o rei, tornou-se campeão dos latifundiários, dos traficantes de escravos e dos grandes comerciantes. Em 1829, ainda sob Pedro I, ele advertiu na Câmara dos Deputados contra as revoluções: "Uma rebelião em centelhas cresce rapidamente em lavas; e suas lavas costumam trazer de envolta a dissolução social". Na sessão legislativa de 1834, disse que cabia à Câmara "fechar os abismos da revolução, estabelecer e firmar verdadeiros princípios políticos, consolidando a monarquia constitucional" (10). Defendeu assim a consolidação do domínio das elites escravistas da terra, do dinheiro e do comércio, impondo uma interpretação da Constituição imperial profundamente antidemocrática que permitiu, mais tarde, na opinião do historiador Caio Prado Jr., a trajetória reacionária que se inicia em 1837 (11).

Em 1838, Vasconcelos fez uma confissão, notável pela sinceridade, do abandono dos compromissos liberais e seu envolvimento naquela política que, muito corretamente, ficou conhecida na história brasileira como o regresso, da qual foi um dos principais promotores. Disse: "Fui liberal; então a liberdade era nova no país, estava nas aspirações de todos, mas não nas leis, não nas idéias práticas; o poder era tudo: fui liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade: os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram; a sociedade, que então corria risco pelo poder corre agora risco pela desorganização e pela anarquia. Como então quis, quero hoje servi-Ia, e por isso sou regressista. Não sou trânsfuga, não abandono a causa que defendo no dia de seus perigos, da sua fraqueza: deixo-a no dia em que tão seguro é o seu triunfo que até o excesso o compromete" (12). Mais sinceridade, só na afirmação, feita em 1844, de que o objetivo do regresso era "parar o carro revolucionário" (13).

Foram políticos conservadores dessa espécie que lançaram as bases da monarquia brasileira e da manutenção do latifúndio e do escravismo, cuja abolição precisou esperar até o final do século, em 1888, fazendo do Brasil a última nação independente do Ocidente a eliminar esse regime nefando de trabalho. E não foram diferentes deles os políticos da elite que conseguiram controlar o processo de mudança cristalizado na proibição da escravidão e na proclamação da República, em 1889.

Na luta abolicionista e propaganda republicana novamente voltaram a chocar-se as forças voltadas para a mudança revolucionária com aqueles que pretendiam que a transformação ocorres sob controle da elite, e sem traumas.

Não é na rua, mas no parlamento, que a causa da liberdade deve ser decidida, pregou Joaquim Nabuco

O grupo antiescravista mais radical era formado por elementos da pequena burguesia urbana e por trabalhadores livres (ferroviários, cocheiros, tipógrafos, mascates, artesãos). Seus métodos de luta iam desde a propaganda pelo jornalismo até táticas insurrecionais. No Rio de Janeiro, liderados por Luiz Carlos de Lacerda, insultavam os escravos à fuga, gerando cont1itos que muitas vezes resultavam em incêndios de canaviais e linchamentos de escravos. Em São Paulo, Antônio Bento liderou o movimento dos caifazes, que organizava fugas de escravos das fazendas, com apoio da população das cidades, dos ferroviários e muitas vezes até mesmo de autoridades. Eles eram também republicanos e queriam, com a Abolição, acabar com o latifúndio, dividindo as terras entre os trabalhadores rurais (14).

Mas não foram eles, nem a massa escrava, que prevaleceram na luta contra aquele estatuto iníquo do trabalhador – foram políticos ligados à elite que, como Joaquim Nabuco, pensavam que "é no parlamento, e não em fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade" (15).

Aqueles setores radicais associavam a Abolição à República, e esperavam que a nova forma de governo trouxesse a igualdade dos cidadãos e o fim do domínio das oligarquias que, enraizadas no passado colonial, controlaram o poder durante todo o Império. Seu campeão, Silva Jardim, advertiu premonitoriamente, em 1888, para o risco de que a República viesse a ser "a Monarquia sem o Imperador". Sua opção era clara: "a República precisa ser feita nas ruas e em torno dos palácios do imperante e de seus ministros (…) Nada pode dispensar, portanto, um movimento francamente revolucionário" (16).

Eles foram deslocados pelas idéias e pela ação muito mais moderadas de Quintino Bocaiúva, que queria uma "revolução, mas no sentido moral" (17). Seus antecedentes eram bem fortes, como já vimos. E manifestaram-se cedo: em 1879, na Câmara dos Deputados, Saldanha Marinho disse que, sendo a revolução inevitável, cabia às dites adiantar-se a ela, de forma pacífica e controlada (18).

Nessa linha de pensamento, Quintino Bocaiúva defendeu um caminho evolutivo para a República, mesmo que fosse lento, e condenou a via revolucionária como temerária. Em 1881, numa assembléia do Partido Republicano, opôs-se aos que "procuravam encaminhar a causa republicana para uma solução violenta e inoportuna" dizendo que, se há republicanos que pretendem levar o partido "do campo da discussão e da propaganda pacífica, para o campo da revolução armada, fazendo-o abandonar as armas da persuasão e da int1uência moral para substituí-Ia pelo facho incendiário da discórdia civil e da guerra fratricida, então assuma quem quiser, não eu, essa responsabilidade perante o País e perante a história" (19).

Nos dramáticos momentos que antecederam a proclamação da República, Silva Jardim e os republicanos radicais, como Lopes Trovão, foram deliberadamente postos à margem pela liderança moderada. Eram homens que pretendiam pôr o povo na rua para derrubar o Imperador. Mas os moderados, liderados por Quintino Bocaiúva e Benjamin Constant, preferiram o caminho do golpe militar, evitando o levante popular, e entraram em entendimentos com os principais líderes do Exército que, desgastados com intermináveis querelas com o governo (a chamada “Questão Militar”), moviam-se rapidamente para a oposição, animados inclusive pela doutrina positivista de Augusto Comte e Pierre Lafitte, da qual Benjamin Constant era um dos principais propagandistas nas academias militares.

Proclamada a República, Silva Jardim não conseguiu sequer ser eleito para a Assembléia Constituinte Republicana de 1891, uma eleição que foi estritamente controlada pelos novos donos do poder. FHC repete um papel velho e gasto, o daqueles que lutaram para evitar o progresso do país, o bem-estar e a liberdade de nosso povo

A coalizão de militares positivistas e fazendeiros de café, principalmente de São Paulo, pouco. Em 1891, quando o primeiro presidente, o marechal Deodoro da Fonseca, renunciou, parecia que finalmente os herdeiros dos radicais dos tempos da independência controlariam o poder central e imporiam ao País um programa de desenvolvimento capaz de eliminar os resquícios coloniais. Os jacobinos e os setores radicais das camadas médias uniram-se em torno do novo presidente, o marechal Floriano Peixoto, mas seu domínio foi fugaz e, na eleição presidencial de 1894, os grandes cafeicultores voltaram a controlar o governo com Prudente de Morais. Floriano consolidou a República, derrotando levantes navais no Rio de Janeiro e no Sul do País, mas coube a Prudente organizar o novo sistema de poder, recolocando em seu centro as velhas oligarquias que haviam dominado durante o império. Era a concretização do temor de Silva Jardim, de uma "monarquia sem o Imperador".

Nos anos 1920, a resistência antioligárquica, que nunca deixou de existir desde o início da República, cresceu com a multiplicação dos levantes militares (o “tenentismo”) iniciados em 1922. Eles proliferaram ao longo da década, e seu ponto alto foi a “Coluna Prestes”, liderada por Luís Carlos Prestes e Miguel Costa. Ela percorreu cerca de 25 mil quilômetros pelo interior do país, entre 1925 e 1927, pregando a revolução e enfrentando as forças do governo e dos grandes fazendeiros. Dissolveu-se em território boliviano, sem ter sido derrotada.

Mas o tenentismo foi um movimento revolucionário cujos limites estritos foram revelados pela recusa em mobilizar o povo e os trabalhadores. Everardo Dias, um importante líder operário daquela época, conta por exemplo como o general Isidoro Dias Lopes, chefe do levante de 1924 em São Paulo, negou-se a aceitar a adesão dos operários paulistas e dar-lhes armas (20) para – teria alegado – não desvirtuar o movimento. Coube a Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, governador de Minas Gerais, descendente do patriarca da Independência e um dos articuladores da revolução de 1930, registrar a velha e matreira sabedoria da elite brasileira. Ele é o autor da frase "façamos a revolução antes que o povo a faça" (21), que sintetiza os séculos de aprendizado político de sua classe.

O exame da história social e política do País, embora superficial, é suficiente para demonstrar a inconsistência da tese que atribui o atraso brasileiro à psicologia, à cultura, ou à tradição ibérica ou católica. O Brasil fez a Independência sem romper radicalmente com as formas de poder anteriores, e as mesmas elites escravistas, latifundiárias e mercantis cujo domínio se constituiu no período colonial, aliadas ao dominador estrangeiro, mantiveram-se à frente do governo e do poder político efetivo do País. Com a Abolição e a República, no final do século XIX, novamente a ruptura foi incompleta, e as mesmas elites cujo mando já era secular conservaram o poder e a aliança com os mesmos antigos parceiros estrangeiros, deixando intocada a velha estrutura social e o latifúndio. Em 1930, quando a revolução burguesa deu seu maior passo nesta parte do mundo, o resultado foi nova acomodação entre as elites dirigentes que emergiam e aqueles que, derrotados pelos partidários da mudança, foram apelidados de “carcomidos” – e assim o passado continuou contemporâneo do presente, comprometendo a conquista definitiva do futuro.

Essa situação persiste até nossos dias. Não é novidade, na história do País, setores da elite aliarem-se circunstancialmente com setores populares avançados e, depois de derrotado o inimigo principal, traírem os partidários do progresso. A luta contra a ditadura militar de 1964 foi o exemplo mais recente desse enredo tradicional. O esforço para derrotar o regime dos generais exigiu a união de todos os setores antifascistas, do proletariado e dos trabalhadores do campo, aos intelectuais, profissionais liberais, classes médias e setores antiautoritários da burguesia. Na desagregação final da ditadura, até mesmo setores oligárquicos dissidentes juntaram-se a esse arco de forças. Com a derrota da ditadura militar e o início da consolidação democrática, algumas forças repetiram o desempenho de seus antecessores históricos. No lugar de Bernardo Pereira de Vasconcelos, Fernando Henrique Cardoso e seu Partido da Social Democracia Brasileira, o PSDB, assumiram a tarefa de deter o avanço da democracia e do desenvolvimento. Abandonaram os compromissos antigos ("esqueçam o que escrevi", recomendou o sociólogo presidente) e, a pretexto de modernizar o País e evitar que os setores populares e progressistas, “atrasados” , chegassem a controlar os poderes da República, aliaram-se aos inimigos do passado, a Antônio Carlos Magalhães e às oligarquias encasteladas no Partido da Frente Liberal, o PFL, numa aliança alimentada por um projeto de atualização do domínio de classe no País, projeto conservador, neoliberal, antidemocrático, antipopular e antinacional, que representa a repetição do mesmo velho enredo histórico que se sucede desde a Independência.

Essa é a receita para a criação e perpetuação do atraso, que se fortalece como conseqüência dessas situações em que conciliação e reforma se juntam, gerando conjunturas em que os movimentos revolucionários não se completam. Ao contrário do que diz a lenda, o atraso resulta das revoluções pela metade, e não da tradição cultural do País ou da psicologia dos brasileiros. O Brasil de hoje é uma combinação singular de modernidade e atraso, e isso decorre de sua própria história, da forma como os conflitos sociais foram sendo resolvidos. O esforço e a criatividade dos brasileiros resultaram nos aspectos progressistas e avançados da formação social brasileira, como o maior parque industrial entre os países do antigo mundo colonial, capacidade industrial que coloca o Brasil entre as dez maiores economias do planeta. Esses traços progressistas convivem, porém, com o arcaísmo que significa a sobrevivência do latifúndio, da dependência externa, de relações sociais profundamente autoritárias, marcas hierárquicas deixadas pelos séculos que durou a escravidão no País.

* Jornalista.
** A versão original deste artigo foi preparada para ser publicada em uma edição especial sobre as relações Brasil/Portugal da revista Vértice, do Partido Comunista Português.

Notas
(1) BONFIM, Manoel. O Brasil na história, Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1930, p. 71-72.
(2) FAORO, Raymundo. Os donos do poder e formação do patronato político brasileiro, Globo, Porto Alegre/Rio de Janeiro, 1985 (a edição original é de 1957).
(3) Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 10-08-1997. Harrison é autor do The Pan American Dream, e Haber, de How Latin America Fell Behind, recentemente publicados nos EUA.
(4) FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala, Livraria José Olympio, Rio de Janeiro, 1966, (a primeira edição é de 1933).
(5) SILVA, Hélio, 1889: A República não esperou o amanhecer, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1972, p. 133.
(6) FERREIRA, Silvestre Pinheiro, “Cartas sobre a revolução do Brasil”, in FERREIRA, Silvestre Pinheiro, Idéias políticas, Textos Didáticos do Pensamento Brasileiro, vol. VII, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura e Editora Documentário, Rio de Janeiro, 1976, p. 36. As cartas foram escritas no período anterior à volta da corte de D. João VI a Portugal; o autor foi ministro do Exterior e da Guerra sob D. João VI. Viveu de 1769 a 1846.
(7) SOUSA, Octávio Tarquínio de. História dos fundadores do Império do Brasil, vol. I, A vida de José Bonifácio, José Olympio, Rio de Janeiro, 1960.
(8) NOGUEIRA, Marco Aurélio. As desventuras do liberalismo – Joaquim Nabuco, a monarquia e a república, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1984, p. 25.
(9) SOUSA, Octávio Tarquínio de, idem, vol. VI, Evaristo da Veiga, idem, p. 161.
(10) SOUSA, Octávio Tarquínio, idem, vol. V, Bernardo Pereira de Vasconcelos, idem, p. 100 e 160.
(11) PRADO JR., Caio, Evolução Política do Brasil, Brasiliense, São Paulo, 1961, p. 80.
(12) SOUSA, Octávio Tarquínio, vol. V, p. 202.
(13) SOUSA, Octávio Tarquínio, vol. V, p. 148.
(14) COSTA, Emília Viotti da, Da senzala à colônia, Ciências Humanas, São Paulo, 1982.
(15) NOGUEIRA, Marco Aurélio, idem, p. 125.
(16) QUEIROZ, Maurício Vinhas de, Paixão e morte de Silva Jardim, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967, p. 65 a 67.
(17) Idem, p. 60.
(18) "Se as coisas continuarem como vão, a revolução é inevitável. Porque não havemos nós de dirigi-la pacificamente, adotando já o que o país impacientemente reclama e que afinal, perdida a esperança, se verá na necessidade de impor usando de sua soberania?" – citado por HOLANDA, Sérgio Buarque, História Geral da Civilização Brasileira, tomo II, O Brasil monárquico – 5° volume, Do Império à República, Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1972, p. 258.
(19) SILVA, Ciro, Quintino Bocaiúva, o patriarca da República, Editora da Universidade de Brasília, Brasília, 1983, p. 45 e 46.
(20) DIAS, Everardo, História das lutas sociais no Brasil, Edaglit, São Paulo, 1962, p. 138.
(21) MALTA, Octávio, Os “tenentes” na revolução brasileira, Civilização Brasileira.

EDIÇÃO 49, MAI/JUN/JUL, 1998, PÁGINAS 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52