Cinema nacional: em busca do espaço perdido
A estética fragmentada do Cinema Novo dominou a cena nacional por duas décadas. Seus personagens libertários, identificados com os ideais terceiro-mundistas, geraram polêmicas e influenciaram gerações de cineastas e pensadores no país e mundo afora. A técnica, que pretendia ser mesmo pobre (a estética da fome) em contraposição ao padrão hollywoodiano, buscava sintetizar, ideologicamente, aquilo que terminou traduzindo uma maneira de se fazer filme e levar adiante uma luta contra o cinema comercial, o chamado “cinemão”. Era, enfim, um “cinema de resistência” enquadrado na luta geral dos povos oprimidos. As lutas de libertação no sudeste asiático, a tentativa do “mil vietnãs” de Che Guevara e a resistência à ditadura militar no Brasil, contribuíam para esta efervescência. O cinema, como representação do olhar do oprimido, deveria, assim, assumir sua função transformadora.
O povo deveria entender o cinema como a arte que refletia suas preocupações. Fazer cinema não estava afastado da militância político-social. O engajamento era conseqüência da visão que o cineasta tinha (ou teria de ter) da dialética do cotidiano: lutar para libertar, libertar para revolucionar. O filme-síntese dessa idéia é Terra em Transe, de Glauber Rocha, que se passa num país fictício, Eldorado, com seus intelectuais, ditadores, visionários, revolucionários. A câmera gira o tempo todo, em grandes planos, com os personagens inquietos, prenunciando a revolução, que estava em cada canto. Era uma emergência, própria daqueles anos, com mudanças bruscas, perseguições, torturas, guerrilha urbana – certezas de que a qualquer momento o povo se ergueria em armas.
Este olhar inquieto, louco para viver tudo rumo à revolução, seja ela político-econômica, sócio-cultural, com as transformações dos últimos 30 anos, foi se modificando, até se tornar um olhar cético, degustativo, sedento de público para se firmar. Os padrões foram mudando; a ferocidade do consumismo, com sua urgência virando fobia, fez surgirem novas mentalidades. O equilíbrio entre os blocos socialista e capitalista se foi. Transformar significa, nesse novo jargão, adotar falsa opção do consumismo. O capitalismo em crise, inundou o mercado de trabalho de desempregados, com a propaganda neoliberal pretendendo tornar o planeta objeto de um único projeto. O controle que os oligopólios e as nações do Primeiro Mundo exercem não é só financeiro, mas também cultural. Este sustenta toda uma visão e idéias que o imperialismo pretende difundir para manter seu poderio. Tudo isso tornou o cinema nacional (e o internacional) a arte exclusiva da classe média, com o povo ficando entregue à TV aberta, tradicional (os canais pagos escapam a seu alcance).
Dessa forma, os novos cineastas brasileiros querem, rapidamente, entrar para as estatísticas de maior produção e maior público. Para isso não opõem mais o cinema comercial ao de autor ou de arte. Ficam loucos para fazer o meio termo. O custo médio de uma produção era de R$ 700 mil; mudou para R$ 1,5 milhão e alcança, em algumas produções, R$ 5 milhões. O produtor Flávio Tambellini (Jenipapo, Capitalismo Selvagem) diz que “é essencial que seja mantido no Brasil, neste momento, o binômio qualidade/baixo orçamento, com filmes baratos e simples. “O que é muito diferente de precários”, ressalta. Mas “considera uma bobagem entrar nessa “praia de megafilmes”, com estética americana, batidas de carros, coisas que não sabemos fazer. “Precisamos descobrir aquilo que sabemos fazer bem; quanto mais brasileiro for o flime, maiores chances no mercado externo” (1).
Busca-se atualmente no país uma produção diversificada com vários gêneros e abordagens, características de grandes cinematografias, mas também do cinema comercial, que precisa manter o consumo do produto cultural. É um caminho, de qualquer forma, a ser trilhado antes de ser fixado um novo parâmetro, agora dentro das novas realidades sócio-político-econômicas. “Eu acho que a diversidade é uma característica muito importante e deve ser garantida com unhas e dentes: que haja filmes distintos espaços para filmes distintos, com diversas cores e sotaques” – sugere a cineasta Sandra Werneck (Pequeno Dicionário Amoroso), em recente debate promovido pela Folha de S. Paulo (2). É uma proposta, que só pode ter base em um cinema industrial, com forte presença de público de todos os níveis.
A velha unilateralidade que permeou a produção do Cinema Novo, embora tivesse vários sotaques, não encontra lugar nas idéias dos novos cineastas. Estes lutam pela emergência de um mercado que comporte todas as latitudes, indo da comédia, drama, até o nordestern (filme de cangaceiro). Para isso precisam, como ocorre na França, Itália, Inglaterra, da forte presença do Estado, como impulsionador da produção cinematográfica. Os mecanismos nestes países estão baseados na cooperação entre cinema e televisão estatais, com proibição dos canais de TV exibirem filmes em prazos curtos, o que aumenta o índice de freqüência das salas de exibição. No Brasil esta tentativa do Estado incentivar o cinema está centrada apenas em duas leis nacionais, uma gestada ainda na época do Governo Sarney, modificada no Governo Collor (a Lei Rouanet, n. 8.313), e a outra no Governo Itamar Franco (Lei do Audiovisual, n. 8.685, modificada pela MP 1.515). Através delas, pessoas físicas e jurídicas podem descontar no imposto de renda o valor investido em um filme (3).
É uma forma de o Estado permitir que sua produção cinematográfica, ainda nascente (ou renascendo), não sofra a concorrência brutal de Hollywood. “É importante ter as leis, ter uma base para que a produção se estenda, mas é importante que também – a nova geografia –, pessoas que moram em Pernambuco, no Pará, no Ceará, estão filmando. A diversidade vem exatamente daí. Não há mais um discurso único, como na década de 1960. Isso é o presente que está acontecendo agora (…)” (4) – explica o pernambucano Paulo Caldas (Baile Perfumado). Esse cinema com várias caras e sotaques é, antes de tudo, um cinema de produto, para atender a vários públicos, visando retorno imediato. Precisa ganhar volume de 100 ou mais filmes/ano, para abastecer as cerca de 1.600 salas existentes no país.
“A obra de arte – e, do mesmo modo, qualquer produto – cria um público sensível à arte e capaz de sentir com prazer com a beleza. Por conseguinte, a produção não cria apenas um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto” (5). Hoje esta busca, desvendada por Marx, fica relegada ao imediato. Mesmo nesse novo cinema nacional, o filme fragmentado, às vezes expressionista, realista à italiana ou estruturado segundo os cânones da Nouvelle Vague, que por sua vez bebia na estética do filme B americano, cedeu lugar à estética puramente horizontal: de princípio, meio e fim. Os personagens são identificados em poucas cenas, a história está ao nível do público e a técnica é impecável. A linguagem, enquanto isso, não se presta a se reinventar ao estilo Glauber, ou mesmo usando a estética do vídeo, para sair da mesmice, e criar um público de gosto mais crítico e exigente.
Segue parâmetros claros, onde o que se vê é o que se pretende mostrar. Nada mais que isso. Quando muito um símbolo aqui e outro ali. A intenção é fazer o espectador ficar sentado na poltrona atento ao que se vê na tela, sem tempo de respirar. Quando há um vai-e-vem nas seqüências e cenas (flash-back) é apenas para dar um tom modernoso, nada de complicar: a televisão virou o padrão atual de cinema.
Terra em Transe de Glauber Rocha é o filme-síntese da idéia do Cinema Novo que, com sua estética fragmentada e seus personagens libertários, influenciou gerações de cineastas e pensadores no país e mundo afora
A impressão é que a força de uma cinematografia está em contar e mostrar seu país, sem apressamento da ação, enquadramentos em primeiro e médio plano, para posterior exibição na TV. O cinema tem seu lugar; a sala de exibição, e se o vídeo e os demais veículos são usados, é por questões mercadológicas ou comodidade do público nesta época de capitalismo avançado, mas a sua estética deve ser preservada. Já o diz a propaganda: “cinema é para se ver no cinema”. A televisão com sua programação dominada por filmes e séries americanas e as novelas nacionais desacostumaram o público a refletir sobre os temas nacionais. A tentativa dos cineastas brasileiros hoje é centrar seus filmes próximos à realidade brasileira. Desde 1993, quando foram produzidos Moça de Fino Trato, de Paulo Thiago, e Lamarca, de Sérgio Rezende, pelo Pólo de Cinema do Espírito Santo, retomando a produção cinematográfica paralisada pelo Governo Collor, que o “olhar” é voltado para as agruras nacionais.
A perplexidade dominou aqueles primeiros instantes. Era como se ver no espelho depois de muito tempo nas cavernas. A recuperação veio através de um modo escrachado de se fazer cinema no Brasil, visto em Carlota Joaquina, de Carla Camurati, lembrando as chanchadas, com Marco Nanini sintetizando Oscarito. Surge Dom João VI mais preocupado com as mazelas familiares e em degustar franguinhos, do que em tecer as estratégias para tirar o país do domínio inglês. As elites viram objeto de escárnio e deboche, dominada por intriguinhas, enquanto os países desenvolvidos saqueiam o povo, com a sua total anuência. Não é diferente do mundo neoliberal povoado de tucanos de penas lavadas por compra de votos, ouvindo o riso sarcástico do presidente que virou uma sigla.
Outros filmes da nova safra também mergulham em várias regiões do Brasil para tirar o país da modorra. A estética ainda é tateante. Às vezes beira o delírio, com cortes rápidos, enquadramentos oblíquos, personagens que tentam encontrar sua identidade, caso de Terra Estrangeira, de Walter Salles e Daniela Thomas. São os tempos de Collor, da desesperança (será que ela voltou?), da diáspora brasileira dos 100 mil jovens, que partiram, em busca do Eldorado. É Paco, personagem do filme, completando a viagem para a qual a mãe espanhola economizou a vida inteira para fazer, mas morreu quando Collor confiscou a poupança do povo. Sua vida se transforma, despreparado para a vida no estrangeiro, povoado de expatriados, iguais aos angolanos, moçambicanos, que habitam os hotéis sujos de Lisboa. Encontra Maria, também exilada, mas que sonha em voltar. Em meio a tudo isso reina o tráfico de drogas, a violência, a morte.
É uma alegoria adversa de Jenipapo, de Monique Gardenberg, em sua vontade de flagrar o Brasil dos sem-terra, dos padres revolucionários, da mídia sem ética. Trata-se do Brasil longe das praias do Rio, dos arranha-céus paulistas. Para não perder o emprego, o jornalista americano forja uma entrevista com o padre francês que apóia a luta dos sem-terra, e provoca a sua morte. O vigário é transformado em mártir. Em alguns momentos lembra o Cinema Novo, com seus temas mais caros, a impossibilidade de uma saída dentro dos padrões normais. E preserva a estética da fome, não mais em sua linguagem, mas em temática: o ver e o entender o Brasil. O país da favela e da juventude entregue ao sangue, passa pelas lentes de Murilo Salles, em Como Nascem os Anjos, o melhor filme dessa nova safra, ao lado de Sertão de Memórias (veja adiante), de José Araújo, vencedor do Festival Sundance, em 1996.
O que vemos são dois adolescentes, vítimas do acaso, se transformarem em sequestradores de um empresário americano, sua filha e empregada. Em um único cenário, uma mansão do alto do morro de onde se avista a Rocinha; Salles nos transporta para o aprendizado da violência, das recaídas no prazer (o garoto dançando rap na sacada da mansão), do querer ser igual a quem lhe parece superior (a menina querendo ver os seios da jovem burguesa), e as desavenças geradas pela imaturidade (os disparos mútuos que os levam à morte). É um Brasil que perde impunemente sua juventude em jogos onde a elite se tranca em condomínio fechado. Atrair o público para esta realidade, embora já repisada pela televisão, os documentários na linha dos que são feitos pelo SBT e Manchete, repõe o cinema nacional em seu lugar.
Por isso não é surpreendente que O Que é Isso Companheiro?, de Bruno Barreto, tenha provocado tanta polêmica e pouco público. Vendeu 240 mil ingressos desde seu lançamento em abril passado. “Nossa meta era chegar aos 500 mil, mas agora esperamos alcançar 350 mil”, conforma-se Luiz Carlos Barreto, produtor do filme (6). Pecou pela falta de ousadia. Cenas mais fortes são vistas todo dia na televisão, como a morte do operário em Osasco, flagrada por uma câmera de vídeo e mostrada no Jornal Nacional. O sequestro do embaixador Charles Burke Elbrick, pela Dissidência Comunista e a ALN, em 4 de setembro de 1969, no Rio de Janeiro, tinha tudo para ser um grande filme, de forte impacto junto ao público. Mas não foi. Gerou polêmica entre os participantes da operação e naufragou, como já visto, na bilheteria.
Sua estética é a do filme americano, com princípio, meio e fim; planos tradicionais (o close é close, o plano americano é plano americano, e assim por diante). Algumas vezes a câmera se movimenta. A única sofisticação, se é que se pode chamar assim, corre por conta das cenas em preto e branco, muitas saídas de documentários produzidos à época da ditadura militar. Bruno Barreto esqueceu que o próprio público já absorve bem os flashes-backs, até gosta que seja assim, pois fica com a impressão de que vêem algo novo. O Paciente Inglês segue esta vertente, com belas imagens do deserto. Mas, mesmo com estas restrições, O Que é Isso Companheiro? tem uma boa estética. As interpretações fogem ao maneirismo e rompantes do velho cinema nacional: tornam os personagens exeqüíveis, não caricaturas. Perdura, entretanto, o vício da gritaria, para demonstrar tensão, mas na média são comoventes. As coisas complicam quando se busca a veracidade da história. O estereótipo, o ranço direitista, o preconceito contra a esquerda, prevalece. E justamente em um episódio em que ela foi vitoriosa sobre seu maior inimigo: o imperialismo americano.
Nos filmes citados, a temática era a realidade nacional, mas o cinema nacional pode ser romancesco, usando o drama para contar uma boa história. O Quatrilho cumpriu esta função. Chegou, depois de muito trabalho de bastidores, à indicação ao Oscar. E fez bom uso do marketing. Falou-se, inclusive, em renascimento da produção brasileira. Produtores e cineastas tentam, ainda, encontrar o perfil que os faça tornar o filme nacional produto de uma indústria, que use toda a extensão de sua infra-estrutura mercadológica (veja o exemplo dos cinemas americano e europeu).
Dessa forma a produção nacional poderia retomar a antiga média de 140 filmes por ano, com a possibilidade de reaver parte de seus custos no mercado interno. Mas o Estado, cuja missão é proteger o renascimento de sua produção e possibilitar-lhe ocupar as salas de exibição, com legislação apropriada, ainda não o fez, salvo pelos mecanismos legais já mencionados. Resta ainda, para completar o ciclo, o incentivo à distribuição e, principalmente, à exibição, levando os donos das salas a equipá-las com projetores modernos, som avançado (dolby/stéreo), poltronas em ambiente que atraiam o público, mas que, sobretudo, não os façam subtrair mais renda das produções nacionais.
Não menos grave é a ausência de obrigatoriedade de exibição do filme brasileiro, como forma de quebrar o monopólio americano. É uma polêmica que, certamente, o governo neoliberal de FHC não irá travar, devido a seus compromissos com o imperialismo e os conglomerados e oligopólios estrangeiros, as maiores incluídas. O que se vê é uma tímida restrição à remessa de rendas obtidas pelo cinema norte-americano e demais países para suas matrizes. As empresas estrangeiras são obrigadas a investir parte da bilheteria de seus filmes em produções brasileiras. Hoje os produtores nacionais usam este mecanismo legal para abrir caminho para suas produções no exterior e ter de volta parte de seus investimentos.
Este esquema tem sido usado em várias produções: Buena Sorte, Tieta, Canudos, o que aumenta as possibilidades de distribuição no exterior (A Colúmbia Pictures/Sony é a mais assídua). Mas o patamar de investimentos começa a ser outro para algumas produções. Os produtores e cineastas, interessados em ter um modelo de produção que recupere os custos no mercado interno, tendo a idéia de alcançar também o externo, já o elevaram para US$ 5 milhões: For all – o Trampolim da Vitória, da dupla Buza Ferraz e Luiz Carlos Lacerda, sobre a ocupação de bases nordestinas por americanos durante a Segunda Guerra Mundial; Canudos, o épico de Sérgio Rezende, sobre a revolução místico-política de Antônio Conselheiro, no sertão baiano (ambos ainda inéditos), e Tieta, de Cacá Diegues.
Tieta, lançado com estardalhaço, com a “possibilidade” de chegar a 5 milhões de pessoas, não passou de 800 mil, ficando longe de ter o capital investido de volta. Seu produtor, Bruno Stropiana, armou tudo de acordo com a fórmula norte-americana, de tema conhecido (novela de Jorge Amado), estrela de Hollywood, Sônia Braga, roteiro de João Ubaldo Ribeiro e roupas de Ocimar Versolato. Mas fracassou. “A crítica mais séria que se pode fazer à Tieta é que o filme, afinal de contas, não ousa. E talvez seja menos cinema que TV. Os atores são da Globo, a fórmula do merchandising – que Hollywood usa – vem sendo aprimorada na Globo e até o fato de antes ter sido novela (sempre da Globo) acentua o gosto de repetição” (7) – esbraveja, com razão, o crítico Luiz Carlos. O filme reacende a obra requentada, com planos de TV, cenas paradas, com La Braga nua, misticismo já superado pelo fundamentalismo e nenhuma emoção.
Em outra escala de produção figuram O Cangaceiro, de Oswaldo Massaini Neto, Sertão de Memórias, de José Araújo e Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, Corisco e Dadá, de Rosemberg Cariry. Inscrevem-se em dois pólos: primeiro o da identificação de mitos e heróis populares caros aos nordestinos, à seca, aos velhos coronéis, ao cangaço, sobremaneira. Em segundo a um gênero que Glauber Rocha chamou de “nordestern”, numa alusão ao farwest, aos filmes de John Ford, principalmente. No primeiro bloco enquadra-se Sertão de Memórias, herdeiro direto de Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, que remexe as condições de vida do nordestino, o sertanejo, o ser humano curtido na espera e no clima árido. O sofrer aqui é estigma. A espera só vira com a ressurreição. O gênero nordestern, um aproveitamento do mito, identidade cultural e social do nordestino com o cangaceiro, mas justiceiro, bebe tranquilamente nos filmes de Carlos Coimbra, esquecido artesão do cinema nacional. É dele o belo e ótimo A Morte Comanda o Cangaço. O novo ciclo do cangaço é uma retomada das produções ao estilo modernizado de Aurora Duarte, vista agora como necessária à identificação de uma cultura massificada pelo produto audiovisual norte-americano, com seus heróis fora da realidade (nacional).
Nesse filão entram os filmes de aventura, onde o herói é herói, e o bandido-bandido, ainda que muitas vezes se confundam. Ou mesmo as comédias, adversa de Carlota Joaquina, com histórias que cativem o público. Dessa nova safra, Ed Mort, de Alain Frenost, tem identidade com “O Amigo da Onça”, imortalizado por Pericles, na revista O Cruzeiro, embora seja criação do gaúcho Luís Fernando Veríssimo. E O Homem Nu, resgata a comédia carioca, com o humor classe média de Hugo Carvana, seu diretor. O público, porém, não os viu da mesma forma que seus produtores. O primeiro conseguiu 30 mil espectadores, e o segundo 60 mil. Só a sofisticada comédia de Sandra Werneck, Pequeno Dicionário Amoroso teve empatia com o público, chegando a 390 mil pessoas nos cinemas desde janeiro passado.
Talvez, uma pesquisa possa desvendar esse mistério, mas o cinema hoje é frequentado pela juventude e casais classe média, interessados em desfilar pelos shoppings, olhar vitrines e curtir fast-food. As salas centrais, que antes garantiam bom público acabaram, o mesmo ocorrendo com os cinemas da periferia. São hoje ou danceterias ou templos dos fundamentalistas tupiniquins. No Brasil hoje são vendidos anualmente 80 milhões de ingressos, correspondendo a 7 milhões de espectadores, a pessoas que vão ao cinema uma vez por mês. Há uma maioria de 148 milhões que não vai ao cinema. O preço do ingresso, segundo os próprios produtores, está alto. A média é de R$ 4, 60, no país, mais alta do que no exterior. Quando um filme chega a casa dos 250 mil ingressos vendidos há foguetes e rojões. Mas a comemoração fica para depois. 50% dessa renda vai para o bolso do exibidor, aquele que mantém as salas com péssimo som, cadeiras quebradas e projeção péssima. O filme nacional é visto por eles como um fardo. O Homem Nu, de Carvana, exibido em apenas uma sala, devido ao boicote do exibidor, terá poucas chances de sair dos 60 mil espectadores que teve até o momento.
O reflexo disso é o círculo que começa em Hollywood. É o círculo do oligopólio, que exige que seu filme seja colocado no mercado. Caso o exibidor não aceite filmes menos expressivos, o filme-bum, aquele para o qual se prevê grande sucesso de bilheteria, será dado para outro exibidor. É uma realidade cruel. O Estado é a solução para contrabalançar esta disputa. De qualquer forma, esta “retomada” da produção brasileira dá-se em moldes diferentes de outros ciclos, como o do Cinema Novo. São os ciclos que caracterizam a cinematografia brasileira, que nunca conseguiu se tornar indústria. Sua única tentativa foi nos anos 1950, com a Vera Cruz, que naufragou por vários problemas, um deles a falta de distribuição. Houve além desse “ciclo industrial”, o da chanchada, nos anos 1930 a 1950, do Cinema Novo, do final da década de 1950 ao início da de 1970, época do Udigrudi e da pornochanchada.
O olhar/câmera não se envergonha de seu presente e de seu passado e flerta com o futuro. É desse jeito que poderá relançar-se ao país e ao exterior. Haja vista as cinematografias da China, do Irã, da Austrália. Durante o cinquentenário do Festival de Cannes vingou um daqueles filmes/idéias, que continuam a ser admirados mundo afora: Terra em Transe. Justo o que representava a estética do fragmento, do movimento contínuo, dos personagens que refletiam e eram símbolos do terceiro-mundo. Os novos cineastas, saídos das faculdades de cinemas, têm um olhar mais debochado, nem por isso menos sérios e descompromissados. Talvez seja um bom começo.
Bibliografia
(1) Beth Nespóli, “Flavio Tambellini comemora ida a Veneza”, O Estado de S. Paulo, 30-06-1997.
(2) Sandra Werneck, Folha Ilustrada, Folha de S. Paulo, 4º Caderno, p. 9, 25-04-1997.
(3) Cultura e Patrocínio, Caderno 2, O Estado de São Paulo, 27-06-1997. Lei do Audiovisual: “A Lei Federal n. 8.685, modificada MP 1.515, permite desconto fiscal para quem comprar cotas de filmes em produção. O limite de desconto é de 3% para pessoas jurídicas e de 5% para pessoas físicas, sobre o Imposto de Renda. O limite de investimento por projeto é de R$ 3 milhões”, idem, idem. Lei Rouanet: “Lei Federal n. 8.313/91 permite às empresas patrocinadoras um abatimento de até 5% no Imposto de Renda”, idem, idem.
(4) Folha de S. Paulo, 25-04-1997, idem, idem.
(5) Marx-Engels, Sobre a Literatura e a Arte, Editorial Estampa, Lisboa, 1971, p. 60.
(6) Luiz Carlos Merten, “Tieta de Diegues acha seu melhor veículo”, O Estado de S. Paulo, 07-03-1997.
(7) Idem.
EDIÇÃO 46, AGO/SET/OUT, 1997, PÁGINAS 56, 57, 58, 59, 60, 61