Formoso e Trombas: a luta do partido e dos posseiros
A proposta deste artigo é levantar algumas questões sobre a luta pela posse da terra em Formoso e Trombas e a política revolucionária do Partido Comunista no período de 1959 a 1964. Devido às limitações de ordem textual e à polêmica que o assunto desperta, procurarei apontar somente alguns aspectos analíticos sem desenvolver detalhadamente algumas questões, deixando em aberto a continuidade do debate.
O primeiro ponto de fundamental importância é que a luta de Formoso deve ser entendida originalmente como uma intervenção do PCB** na concepção revolucionária de luta armada no campo (cuja estratégia estaria associada à luta de Porecatu), orientada a partir da linha política do Manifesto de Agosto. Para alguns setores do Comitê Central, este deveria ser um foco detonador da revolução brasileira inspirada, teoricamente, na revolução chinesa. Por dificuldades de várias ordens e principalmente pela crise do XX Congresso do PCUS, foi sustado o processo em curso, no qual penso haver decorrido, paralelamente em relação ao movimento e suas lideranças, uma série de impasses, que veio a ser a característica do Partido no tumultuado debate ideológico em curso após 1956 e que foi abortado com o golpe de 1964.
O segundo ponto refere-se às particularidades do PCB em Goiás (e isto aponta para um debate interno), que influenciariam de modo decisivo os acontecimentos locais, particularmente em relação às suas direções. Por esta razão penso que, durante o processo, este aspecto teve como resultado uma relação tensa entre as sucessivas direções estaduais e as bases camponesas no estado. Acredito que o impacto da crise da denúncia ao culto a Stalin foi desproporcional no estado comparado ao restante do país e resultou, por consequência, durante um período, na falta de orientação política no processo de luta em Formoso por parte da direção estadual do Partido. Por esta razão, a luta de Formoso ou foi espontânea em seu desenvolvimento durante algum tempo ou foi politicamente orientada (com debilidades de várias ordens) pelo Comitê Central.
Por fim, a luta armada e a posterior luta política na região não podem ser dissociadas do contexto histórico da época, em Goiás e no país, e da extrema habilidade com a qual o núcleo hegemônico (de origem camponesa) do PCB soube avaliar e conduzir a reivindicação maior dos posseiros: a luta pela posse da terra.
Ocupação e início da luta
Pode-se dizer que o processo de ocupação de Formoso e Trombas teve início com o fluxo de milhares de camponeses sem terra à região ao norte de Ceres, em razão da impossibilidade de a Colônia Agrícola Nacional de Goiás (CanG) incorporar novos colonos. No começo os posseiros instalaram-se com relativa tranquilidade nas matas da região e construíram suas casas às margens dos vários córregos. Contudo, o quadro se altera a partir de 1950, quando alguns fazendeiros iniciam um processo de intervenção com repressão violenta e ocorrem, também, tentativas de deslegitimação das posses das terras por meio de grilagem.
A resistência neste período, que começou em 1950 e durou até 1954, é caracterizada pela tentativa de obter o registro das terras por mecanismos jurídicos, bem como pela mediação dos governos estadual e federal. Neste primeiro momento, destacaram-se dois camponeses em locais diferenciados: na região de Formoso, José Firmino, e pouco mais tarde, na região de Trombas, José Porfírio.
Firmino foi quem teve os primeiros contatos com os quadros do PCB, com a tarefa de fazer uma reportagem de denúncia sobre o que se passava no local e avaliar o potencial de luta na região; por haver sido processado e ter sua família torturada, saiu de Formoso em 1954. A partir deste momento, o Partido na CanG, já com a assistência do Comitê Central, decide enviar alguns quadros para morar na região e preparar a luta. Foram enviados Geraldo Marques, João Soares e, pouco depois, José Ribeiro e Dirce Machado. Com estes quadros, o PCB podia contar com um núcleo inicial atuante, entusiasmado e com uma linha política adequada ao local e às tarefas que se impunham, pautadas nas propostas de luta e revolução do programa do IV Congresso.
Na região de Trombas, José Porfírio procura equacionar o problema por via legal, tentando um acordo com os grileiros, que recusam qualquer tipo de proposta. Por várias vezes também tenta equacionar o problema de forma pacífica junto ao governo estadual. Nesta fase consegue em Goiânia os títulos provisórios de posse e encaminha-os ao Cartório de Uruaçu para serem registrados. Mas o processo é sustado e os grileiros resolvem expulsar os posseiros. Inicia-se assim a fase mais terrível de violências contra os posseiros, e Porfírio volta a Goiânia para tentar a mediação do procurador do estado. Mas o governo admite a impossibilidade de fazer cumprir a lei e propiciar garantias. É dada então aos posseiros a senha para uma nova fase da resistência.
Ao voltar à sua posse José Porfírio encontra-a queimada; pouco depois, em decorrência do fato, sua mulher falece. Na ocasião o PCB já enviara seus militantes para atuarem na região de Formoso.
Luta armada no campo
O período subsequente, de luta revolucionária, situa-se a partir do efetivo trabalho de organização dos militantes do PCB e da luta intensa que se segue até fins de 1957 – no ápice do processo, o confronto por pouco não se materializa com a invasão das tropas do governo do estado em larga escala e a sua posterior retirada face a pressões conjuntas de várias ordens. A entrada dos quadros do PCB na região significou para os posseiros um salto qualitativo no processo de organização e resistência. Militantes do Partido de origem camponesa, escolados pela atividade partidária desenvolvida na CanG, fixaram posse e souberam com habilidade organizar os posseiros a partir das especificidades locais. Paulatinamente foram realizando reuniões nas posses, superando dificuldades de toda ordem.
O encontro deste núcleo com Porfírio também significou uma nova fase de articulação, na qual a resistência e o direcionamento político da luta passaram a uma nova dimensão: a possibilidade de quebra de resistência de boa parte dos posseiros em relação aos comunistas. Porfírio, que tinha grande prestígio na região de Trombas, ainda se mostrava confuso em relação a alguns aspectos levantados pelo programa do Partido. Em Formoso, o trabalho apresentava resultados positivos, com elementos novos e atuantes incorporados decisivamente ao trabalho de resistência; muitos que lá chegaram haviam sido expulsos de outras terras e até eram originários das lutas do arrendo no estado, na década de 1950. Para o núcleo do PCB que se encontrava no local, uma necessidade se impunha: a criação de uma Associação de Lavradores, que foi fundada em 1955, como instrumento de organização dos posseiros e de dinamização partidária. A organização e a participação viriam a ser para os posseiros, face à conjuntura do momento, a única possibilidade de garantia de suas posses.
A via armada foi considerada no momento a melhor tática de luta e, para viabilizar este processo, entrou em cena uma rede de apoio e solidariedade à luta de Formoso. Realizaram-se campanhas de recursos para a compra de armas, e os pontos de apoio do PCB foram mobilizados de toda forma. Apoios que, com o desenvolvimento da luta e a intensificação da repressão, extrapolaram a esfera estritamente partidária e uniram-se à classe política de oposição ao governo de Goiás. Com os acontecimentos na região, a imprensa regional e nacional também foi despertada e provocada para debater o assunto.
“Liderança dos posseiros torna-se clandestina. Formam-se piquetes contra a polícia e os jagunços”.
A posição do Partido era ganhar tempo, tática necessária à acumulação de forças e ao fortalecimento da organização. O estopim da luta em grande escala acontece na posse de Nego Carreiro, ocasião em que o grileiro João Soares (homônimo do quadro do PCB), seus jagunços e a polícia foram cobrar a taxa de arrendo e expulsar os posseiros do local. Mas, face à resistência, com o saldo de um sargento morto com um tiro na testa e um soldado com uma orelha a menos, a região se transforma em um campo de luta. A liderança dos posseiros adota uma forma de atividade clandestina móvel, e piquetes são formados para enfrentar a polícia e os jagunços. Neste contexto, os posseiros bem souberam tirar vantagens do conhecimento da área e das táticas de luta utilizadas, que em geral consistiam em fustigar com alguns tiros o inimigo que se aproximava do piquete e recuar para outro ponto determinado, poupando munição e o confronto contínuo.
Outro elo desta integração foi o estabelecimento organizacional. Uma rede de comunicações foi criada entre as várias áreas de conflito, especialmente para vigiar as entradas de acesso; este aspecto foi fundamental à defesa e ao êxito da luta, apoiada pela participação das mulheres e das crianças. A organização da área foi ganhando impulso, e com o aproveitamento do trabalho comunitário tradicional existente entre os camponeses, formaram-se mutirões para desempenhar várias tarefas. O resultado mais significativo desta interação foi o estabelecimento de uma ação coletiva constante, o que acabou possibilitando a formação, em uma fase posterior, de uma outra esfera de intervenção e trabalho conjunto: os Conselhos de Córregos (1956-1957), que tinham por objetivo principal facilitar a ação da Associação dos Lavradores e dinamizar as tarefas e atividades em toda a área (1).
Como a região era muito grande e de difícil controle, com muitas vias de acesso, pouco depois ocorre o principal confronto armado, a Batalha de Tataira. Apesar de serem poucos, os posseiros, acantonados em um piquete, forçaram o recuo de grande número de soldados. Espalhou-se a notícia de que os posseiros tinham “uma força incalculável”, o que causou forte impacto psicológico nos habitantes da região.
Para o governo e os grileiros a situação era de surpresa, devido ao impasse militar da questão, caracterizado por momentos espaçados de trégua, com várias escaramuças com jagunços e soldados e derrotas em vários embates, processo que teve uma duração aproximada de três anos. No entanto, a partir da aparente vitória dos posseiros, o governo do Estado resolve intervir para colocar um ponto final no problema e envia reforços significativos. Os soldados enviados ficaram aquartelados em Porangatu à espera de uma ordem para invadir a área, o que acabou não ocorrendo.
“Para os comunistas foi um momento de unidade, empenho e concentração numa única tarefa”.
Paralelamente, em Formoso os posseiros tinham alcançado um alto grau de mobilização, luta e conscientização de seu objetivo em permanecer na terra, ainda que com debilidades no controle total da área e desgastados face às dificuldades de toda ordem. No entanto, alguns fatores entraram em cena e a política de intervenção do governo em relação ao caso passou a exigir cautela e prudência.
O primeiro aspecto a considerar foi a firme determinação dos posseiros em resistir. O segundo refere-se à habilidade com que os membros do PCB procuraram centralizar a resistência na figura carismática de José Porfírio. Em Goiânia, Anápolis e outras cidades do estado cria-se uma rede de solidariedade, articulada e impulsionada pelo PCB, com forte apoio da opinião pública, o que faz com que o governo recue na decisão de uma intervenção direta. Tanto a imprensa regional como a nacional fizeram reportagens denunciando a violência por parte do governo e sua postura ambígua. Outro fator importante foi o apoio dos parlamentares estaduais e federais que se opunham ao PSD, que governava o estado, e a mobilização de estudantes, intelectuais e profissionais de várias categorias em que o PCB tinha penetração considerável. Esse fato gerou na sociedade civil um grau de apoio inédito em Goiás.
Ao final de 1957, sob forte pressão da opinião pública, instalou-se uma comissão parlamentar de inquérito conduzida por parlamentares de oposição que visita o local. Com isso, obteve-se algum resultado político, e as tropas do governo foram retiradas logo depois. O impasse criado pela determinação dos posseiros em resistir, pela pressão popular e pública e pela eleições que se aproximavam colocou o governo estadual numa situação delicada. Um confronto seria inoportuno e desfavorável. Penso que também não se pode descartar a interferência do governo federal, interessado em melhorar a imagem do estado de Goiás para superar a forte resistência nacional contra a transferência da capital federal para o centro-oeste goiano (cerca de 200 Km em linha reta de Formoso a Trombas) e possibilitar o prosseguimento do projeto da construção de Brasília.
“Entre 1959 e 1960, os comunistas ampliaram o leque de alianças para consolidar as conquistas”.
Para o PCB foi um momento privilegiado de unidade e de empenho, que possibilitou a convergência programática e de ação de todo o partido em uma única tarefa. É nesse momento que também ocorre no partido certo grau de rearticulação, orientada diretamente do Comitê Central, que se legitima como forte instrumento e canal de negociação na busca de uma solução política para a crise. Foram esses fatores – dialeticamente articulados com a mobilização popular e política conjugada à resistência armada e à atuação do PCB no local e no estado – que forçaram o recuo do governo e a posterior retirada das tropas. No entanto, naquele momento os posseiros de Formoso, ainda que vitoriosos, estavam no limite da sobrevivência. A partir de 1958 a situação política e militar da região de Formoso e Trombas se estabiliza, apesar dos eventuais atritos com os jagunços e a polícia.
Equacionamento político e consolidação
Outra fase do movimento começa quando ocorre um mandato tampão: o governo de José Feliciano, de 1959 a 1960. Este novo governo procurou ignorar a região de Formoso e Trombas, não apenas excluindo a área de qualquer política pública de integração econômica, como também de uma política de intervenção policial por parte do estado. Por essa razão, o quadro político e social da região nos três anos seguintes representou para os posseiros uma “fase de amadurecimento e acumulação de forças”, que constituiu o terceiro momento histórico da luta na região.
Devido ao momento da produção local e aos problemas de escoamento, bem como à articulação política para fazer face às necessidades do cotidiano e ao equacionamento de questões várias da região, os posseiros viveram nesse período um processo de constante debate, que transformou a Associação de Lavradores em governo efetivo do território.
Aproveitando o período de trégua e impasse que se configurava, a Associação (leia-se núcleo hegemônico do PCB) articula um leque de alianças regionais com o objetivo de consolidar as conquistas e propiciar as condições mínimas de apoio infra-estrutural à região. Ocorre uma aliança tática com o prefeito do município de Amaro Leite; com isso a máquina administrativa volta a atender algumas demandas locais. Com a eleição de dois vereadores, membros do PCB, representantes de Formoso na câmara municipal, amplia-se o leque de forças aliadas (ou potencialmente neutralizáveis) da luta na região.
No entanto, como essa conjugação de esforços não supria as necessidades e carências daquela região, a Associação teve de assumir na área várias tarefas que seriam do governo e, paralelamente, aumentar o grau de organização, principalmente no que se refere à vigilância. Este período durou até a eleição de Mauro Borges em 1960.
Os mutirões, que já eram frequentes, resultaram numa nova forma de ação solidária, chamada “traição”: o apoio aos posseiros que chegavam e àqueles que enfrentavam dificuldades de plantio e colheita. O caráter organizacional entre a Associação de Lavradores e os Conselhos de Córregos, já existentes na primeira fase (1955-1957), foi um elo extremamente importante na unificação da luta. Essa organização teve, na segunda fase, de ser dinamizada e reestruturada para adaptar-se à nova situação, atingindo um impulso considerável, que perdurou até 1964.
Em razão de sua eficácia e real controle social, político e até militar em toda a região até 1962, esses elementos originaram no movimento a mística história “República ou Território Livre de Formoso”.
Contudo, o quadro de dificuldades era enorme, e outro período de luta, com outras formas de organização e intervenção, exigiu novas soluções. Tal quadro pode ser apontado como resultado do processo de transformação econômico-social na região: o avanço capitalista no campo, que tem início na metade dos anos 1950 e é acelerado no começo dos anos 1960, com a construção de Brasília e a integração do meio-oeste e norte do estado de Goiás, via Belém Brasília.
Configura-se, assim, de 1960 até o golpe de 1964, o quarto momento histórico da luta de Formoso – a fase de “refluxos e impasses” – que se inicia com a gradual quebra de isolamento da região, as conversações de sua integração político-institucional na vida do estado e a necessidade de equacionamento do problema fundiário. No período o país passa por grandes transformações, o PCB entra num processo de redefinição e outras forças de esquerda tornam-se agentes influentes e intervenientes no campo, particularmente em Goiás.
“Em 1961 os camponeses estavam prontos para agir militarmente em defesa da posse de João Goulart”.
Ocorre então no estado uma ampla renovação política, decorrente da eleição de Mauro Borges ao governo e da redefinição das forças políticas em um leque mais amplo, que incluiria a participação do PCB no governo. Isso se refletiu na condução de um processo de modernização gradual da estrutura do estado e na renovação de grande parte do corpo legislativo estadual (eleito em 1962). É no desafio deste neste novo contexto histórico e político que o núcleo hegemônico do PCB e os posseiros estão inseridos.
Em Formoso, o núcleo do PCB já havia decidido a favor de Mauro Borges, que prometera a titulação das posses na região. É neste curto período de um ano que o Partido de Goiás foi se redefinindo política e organicamente em sua luta interna, e a política e correlação de forças orientadas por setores do Comitê Central já apontavam para uma nova linha de atuação mais intimamente associada aos grupos de base camponesa.
Percebe-se que o primeiro indicativo dessa redefinição foi a eleição de José Ribeiro, de Formoso, como membro suplente do Comitê Central. Ao que parece, a partir daquele momento, as condições objetivas de re-equacionamento político partidário estavam maduras pela inserção e presença de muitos quadros formados no processo de luta e pela experiência acumulada no estado (Formoso, Itauçu etc.). Tais condições foram necessárias para a alteração, elaboração e incorporação de uma nova política, que demandava a alteração do quadro dirigente. É nesse momento que Formoso vem a ser quantitativa e qualitativamente, juntamente com outras lideranças advindas do campo no processo de luta, o eixo hegemônico de, e na, direção do Partido no estado. Uma demonstração da ampla mobilização do PCB na região deu-se na ocasião da renúncia de Jânio Quadros, quando centenas de camponeses mostraram-se prontos a intervir militarmente no movimento popular a favor da posse de Jango. Outro indicativo da renovação do Partido em Goiás foi a conturbada indicação de José Porfírio como candidato a deputado estadual em 1962, à revelia de alguns núcleos partidários urbanos.
Com as eleições, o PCB dinamiza-se internamente. A Associação e os Conselhos promovem ampla mobilização e discussões de base com a população em geral na campanha eleitoral. A tarefa fundamental, diante do novo quadro político, foi visitar os conselhos, discutir e apresentar candidatos às eleições e apontar, para a massa camponesa, a importância de conduzir a luta pela terra. Para o núcleo local do PCB o objetivo era a emancipação do município. O Partido também foi absorvido pela tarefa de receber e assentar os posseiros que chegavam, conduzi-los às novas áreas de posse e procurar estabelecer um debate organizativo nos Conselhos e na Associação. O objetivo era dar continuidade ao processo de conquistas.
Ao que parece, foi esse o ápice do PCB e do movimento de Formoso: o reconhecimento e a tomada de posição do poder público frente ao poder popular, conquistado na luta armada e política, e as eleições de José Ribeiro a membro do Comitê Central do PCB e de Porfírio a deputado estadual.
O nó górdio do Partido e do movimento de Formoso
Os elementos constitutivos do nó górdio (2) de Formoso e Trombas tem as condições propícias de sua germinação neste momento. Percebe-se um razoável grau de desenvolvimento econômico local devido à grande e crescente produção e também ao comércio progressivo originário do processo de normalização política. Tais fatores apontam para o surgimento e aumento das necessidades internas até então inexistentes ou relegadas pelos posseiros a um plano secundário. Por consequência, em Formoso surge uma diferenciação social, que se acentua verticalmente, a passos largos, em decorrência do processo de transformação capitalista em curso em todo o estado de Goiás. O quadro se agrava com o grande número de posseiros que chega à região, com a política de intervenção do governo e com o refluxo do PCB e de seus militantes na elaboração de estratégias para a superação de impasses. Como exemplo, não foi possível incorporar os camponeses conscientemente à luta na sua fase superior à posse e propriedade da terra e às novas relações de trabalho e produtividade originárias desta nova forma de produção.
O movimento de Formoso e o PCB entram num período de “refluxo e de maiores impasses”, já que o processo de desenvolvimento econômico decorrente do período 1962-1964 aponta de forma tensa e paralela a uma posterior autonomia política do núcleo do PCB de Formoso, que articulava diretamente (à revelia de parte da direção estadual) com o governo do estado e até com o Comitê Central.
Nos dois últimos anos, o processo pode ser caracterizado pelo atendimento da principal reivindicação dos camponeses da região, ou seja, a posse da terra, estando o PCB inserido nesse processo de transformação e crise no local, que ocorre dentro de um quadro nacional semelhante. As razões para essa crise foram as dificuldades locais decorrentes do processo de alteração econômica em curso.
Desenvolve-se então uma grave crise no Partido, pela impossibilidade de os novos posseiros se identificarem nesse curto período, com um passado de luta revolucionária recente e se transformarem em quadros para intervir nas novas condições. No entanto, um elemento importante e polêmico de crise partidária veio à tona a partir daquele momento. Devido à tranqüilidade política e aos bons ventos econômicos na região, que prometiam prosperidade, muitos membros e dirigentes do PCB em Formoso se afastaram da militância partidária.
“O movimento entra em refluxo por debilidade da direção do Partido e dificuldades locais”.
De fato, o desafio da continuidade da luta revolucionária em Formoso estava posto. Penso que as tensões latentes acumuladas entre o núcleo do Partido em Formoso e o Comitê Estadual – anteriores às divergências na escolha de candidato a governador e, posteriormente à candidatura única de José Porfírio e aos descompassos da atuação deste com a orientação política, além da crise interna do PCB em Formoso – propiciaram uma definição para a questão. Ao que parece, o desafio e a superação da crise partidária no local começaram a ser questionados a partir do momento em que o secretariado estadual procurou, sob várias alegações, intervir na destituição de Geraldo Marques (sempre tido como ardoroso stalinista) de todas as suas funções no PCB (3). É nesse momento que no núcleo zonal se rearticula politicamente e recusa esta proposição. Penso que aqui ocorre o reencontro do PCB em Formoso, com a finalidade de redirecionar-se politicamente para as tarefas que se impunham e viabilizar estratégias (ainda que tímidas) de intervenção em um movimento histórico de definição.
Na região, o PCB dinamiza o debate interno sobre suas reivindicações mais sentidas: a emancipação política de Formoso e a nomeação do futuro prefeito. Foi a partir desse momento que vieram à tona as tensões entre o núcleo de Formoso e o secretariado estadual que, somadas à autonomia do partido local, apontavam para o crescimento de uma tendência à intervenção orgânica, limitada e direcionada na região. Tudo indica que o processo não tenha tomado esse curso em razão da falta de condições políticas para a sua concretização naquele momento e ficou restrito a algumas esferas do Comitê Estadual, principalmente aos rumos do processo político, que indicavam a possibilidade de um possível compromisso e de uma efetiva rearticulação partidária em um fórum privilegiado: o Encontro Camponês de Goiânia, em fins de 1963.
“Desafio para o Partido: como conciliar as conquistas obtidas de armas na mão com a economia capitalista?”
Em Formoso, na virada de 1963-1964, a estratégia do PCB apontava três linhas de intervenção para os desafios que se impunham, face às alterações sócio-econômicas em curso e às tarefas partidárias que o partido tinha que equacionar politicamente com urgência. A relação de poder entre a associação, os conselhos e o novo poder legalmente instituído com a emancipação do município e implementação da Prefeitura eram o primeiro desafio, mas tudo indicava que essa era uma questão equacionada com a rearticulação do Zonal do PCB e que o partido continuaria sendo o elo dinamizador de todo o processo. Outro ponto seria a relação entre a Associação e o Sindicato rural; também havia indicativos do controle político e partidário, sem grandes conflitos aparentes. Entretanto percebe-se que, devido ao crescente número de trabalhadores assalariados em Formoso, o Sindicato poderia, em um futuro próximo, constituir-se em instrumento de representação e de reivindicação, diferenciado (e talvez autônomo e conflituoso) da Associação, que tinha por perfil de associado o posseiro em vias de tornar-se pequeno proprietário de terra.
Por fim, o debate e a delineação do projeto de uma cooperativa agrícola de produção e consumo constituem o terceiro e maior desafio do PCB em Formoso para equacionar as contradições existentes e superar politicamente, em uma via revolucionária, as conquistas obtidas até então com a posse da terra e a inserção capitalista da região. O projeto visava à incorporação de uma nova e superior cultura de produção e trabalho coletivo e cooperativo, contraditório em relação ao tradicional e característico modo de produção camponês. Ao que tudo indica, este debate interno e embrionário em curso no PCB, propiciado por essa ainda frágil rearticulação política, estaria dialeticamente em processo de definição, com razoável grau de amadurecimento, especialmente o núcleo partidário – mas foi abortado pelo golpe de 1964.
Com o golpe, ocorre um processo de mobilização e expectativa quanto aos rumos dos acontecimentos e o reencontro do grupo inicial de 1954, juntamente com outros quadros do PCB formados no processo de luta em Formoso e outros advindos da capital. Contudo, definida a situação a favor dos golpistas, o debate polariza-se entre Porfírio, que queria resistir, ainda que isoladamente, e o Partido que unitariamente decide pelo recuo face à gravidade dos fatos. Porfírio é isolado e as armas existentes são escondidas na serra. As lideranças caem na clandestinidade e pouco depois a região é invadida.
Penso que aqui terminam a “República Socialista de Trombas” e as lições de todo o processo. Mas ainda hoje a luta ali desenvolvida permanece na memória do povo.
* Sociólogo, professor da Escola Pós-Graduada de Sociologia e Política e diretor do Instituto Cultural Roberto Morena. Este artigo é parte de um trabalho iniciado em 1990, apresentado como dissertação de mestrado na PUC-SP em 1994.
** Desde sua fundação em 1922, até 1961, o Partido Comunista do Brasil tinha como sigla PCB. Após a cisão em 1962, passaram a existir o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
Notas
(1) Persistem algumas polêmicas em relação ao surgimento dos Conselhos e seu caráter organizacional como sendo anterior ou posterior à fundação da Associação dos Lavradores.
(2) “O oráculo afirmara que aquele que conseguisse desatar o intrincado nó do carro conservado no Templo de Górdio dominaria a Ásia. Alexandre cortou o nó com uma espada, cumprindo ou iludindo o vaticínio”, São Paulo, Martins Fontes, 1973, p. 162.
(3) Ainda que seja um assunto polêmico, tudo indica que os conflitos internos decorrentes e existentes não tenham sido objeto de intervenção ou cisão partidária em momentos anteriores a 1956. Prefiro chamar e apontar que as “tensões acumuladas de uma dicotomia rural e urbana” tenham ocorrido e atingido seu ápice entre 1962 e 1963, onde devido à crise interna do PCB de Formoso e sua quase autonomia ocorreram de fato tentativas de controle e orientação política sobre o diretório local.
Bibliografia
AMADO, Janaina, Movimento sociais no campo – 1948-64. Pipsa, 1980
ABREU, Sebastião de Barros. Trimbas – Guerrilha de José Porfírio. Brasilia, Goethe, 1985.
CAMPOS, Francisco Itami. “Questão agrária: bases sociais da política goiana (1930-1964)” (Doutorado). FFLCH-USP, 1985.
GUIMARÃES, Maria Teresa Canesin. “Formas de organização camponesa em Goiás (1954-1964)” (Mestrado). PUC-SP, 1982.
FERNANDES, Maria Esperança Carneiro. A revolta camponesa de Formoso e trombas. Goiânia, UFGO, 1988.
GODOY, José. O caminho de Trombas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966.
MEDEIROS, Leonilde Servolo de. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro, Fase, 1989.
Periódicos e outras fontes
Novos Rumos, Terra Livre, Manchete, O Cruzeiro, O Estado de São Paulo, Jornal da tarde, IPM 02 – Brasil Nunca Mais.
EDIÇÃO 36, FEV/MAR/ABR, 1995, PÁGINAS 56, 57, 58, 59, 60, 61