No dia 7 de dezembro último o ministro Fernando Henrique Cardoso anunciou o Plano de Estabilidade Econômica do governo Itamar Franco, o chamado Plano FHC. Constituído de três fases, o objetivo desse Plano seria eliminar a inflação, alcançar o equilíbrio das contas públicas, criar uma nova moeda estável e fazer voltar a crescer a economia de forma estável e duradoura.

De imediato o que se coloca em discussão é o direcionamento que se quer dar a esse novo crescimento econômico e o custo social desta nova estabilização.

O Plano entende que a inflação brasileira tem por causa fundamental o desequilíbrio fiscal do governo que, gastando mais do que tem, produz repetidos déficits. A partir dessa origem, a inflação seria mantida também pela força inercial, que faz com que “a inflação exista hoje, porque existiu inflação ontem” (1).

O objetivo do Plano é eliminar a inflação, numa primeira fase, através da criação de um novo indexador diário, a Unidade de Valor Real (URV), que refletirá a inflação contemporânea, do dia, eliminando a memória inflacionária e a sua força inercial. Para dar força e este indexador, ele será ancorado no câmbio do dólar, ou seja, ele variará nas mesmas taxas do câmbio, e o Banco Central se compromete a vender o dólar de acordo com a cotação da URV (2). Para dar maior segurança ao mercado, o governo se compromete também a fazer da URV seu indexador fiscal, usando-o para reajustar os impostos e as tarifas públicas.

Este indexador seria de livre adesão para os contratos e preços vigentes. À medida que a adesão for aumentando, pouco a pouco, a sociedade se habituaria a uma estabilidade de preços expressos em URV e se passaria à fase seguinte: a transformação da própria URV em uma nova moeda, eliminando-se o cruzeiro real. Embora nada se adiante na Exposição de Motivos que explica o Plano sobre esta nova moeda, as autoridades monetárias admitem que a sua emissão e seu lastro vão se vincular, de alguma forma, às reservas do País em dólar e ao valor do câmbio com essa moeda. Mas a Exposição de Motivos já adianta a necessidade da existência de um Banco Central independente, “isolado de influências e capaz de assegurar o compromisso do governo com a disciplina fiscal”.

Mas para chegar à fase da adoção da URV, o governo precisava atender a duas condições precípuas. A primeira seria pôr em ordem suas relações com os bancos internacionais, renegociar a dívida externa com os bancos internacionais, renegociar a dívida externa e chegar a um novo acordo com o FMI. A renegociação da dívida com as instituições oficiais de crédito do Clube de Paris já foi concluída. Já a renegociação da dívida externa com os bancos privados, em termos leoninos, está no fundamental concluída. O Senado aprovou o acordo de renegociação em novembro último e o prazo para a implementação do acordo vai até abril deste ano. Um novo acordo com o FMI precisa apenas da apresentação de um plano de estabilização que convença os banqueiros internacionais que seus interesses serão contemplados, o que pode vir a ser, é óbvio, o próprio Plano FHC.

A outra condição prévia é o equilíbrio orçamentário, o fim do déficit público, a ser conseguido com o chamado ajuste fiscal. Este se constitui, de um lado, numa proposta de orçamento para 1994 com fortes cortes de custeio e investimento e, por outro, em um conjunto de medidas fiscais destinadas a aumentar as receitas tributárias e a redividir as receitas entre a União, os estados e municípios, em benefício do primeiro. Todas estas medidas do ajuste fiscal dependem da aprovação do Congresso Nacional, incluindo-se entre elas, emendas à atual Constituição.

Parece evidente que a proposta deste Plano será alcançar a estabilização através de uma dolarização disfarçada, com graves implicações para a soberania nacional e, como demonstraremos, com consequências profundas na distribuição de renda e no nível da produção. Teremos, de imediato, um aumento significativo da recessão, do desemprego e da miséria, e em maior prazo, uma reestruturação do Estado no sentido neoliberal e uma integração maior do País na economia capitalista mundial.

Consideramos, assim, o Plano FHC, no fundamental, uma estratégia para o grande capital financeiro internacional viabilizar seus interesses na economia brasileira. Seja através de uma política de garantias ao pagamento do serviço da dívida externa, seja pela implementação de reformas liberalizantes que aprofundem ainda mais a integração do País no mercado mundial e consolidem sua dependência ao esquema do sistema financeiro internacional, principalmente de matriz americana.
A seguir, pretendemos analisar este Plano, discutindo principalmente as origens de sua matriz, o papel da dolarização, a sua concepção do processo inflacionário e o déficit público, o cenário de criação da URV e os custos sociais que ele implica.

Embora tenha diferenças diversas com os programas de estabilização postos em prática na América Latina desde a década de 1980, a matriz do Plano FHC é a mesma. Assim como no caso de Bolívia, Peru, Argentina, Panamá e outros países, o centro do Plano é a ancoragem da moeda nacional no dólar americano e o tratamento ortodoxo dado ao equilíbrio orçamentário.
“A matriz do plano é a dolarização, como foi em Bolívia, Argentina, Peru e Panamá”.

Em todos estes países a estabilidade foi conseguida graças a uma estratégia de dolarização. Mas houve grande variação no grau em que isto se deu. Desde os casos mais puros da Argentina e do Panamá até formas mais incompletas como as de Peru e Bolívia. O equilíbrio orçamentário foi conseguido através de brutais ajustes fiscais. As consequências em todos eles foram também iguais de imediato: forte recessão, desnacionalização da economia, aumento brutal do desemprego e da miséria, seguido de uma fase de crescimento, muito celebrada por toda a mídia, mas sempre de fôlego curto, que vêm acabando sempre envoltas em problemas relativos a grandes perdas na balança comercial, aumento do fosso entre ricos e pobres, e explosões de violência social, com se vê atualmente no México e na Argentina.

Em dezembro último, o Prof. Paulo Nogueira Batista Júnior publicou um interessante estudo sobre a dolarização, intitulado Dolarização como Mecanismo de Reforma Monetária, em que nos baseamos nos trechos a seguir.

A matriz destes programas de estabilização tem por centro inspirador instituições como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, representantes oficiais do sistema financeiro internacional. Elas vêm exercendo grandes pressões sobre o governo brasileiro, desde o começo da década de 1980 (crise da dívida de 1982), no sentido de o País adotar um programa com essas características. Os termos desse programa, antes mais dissimulados, foram ficando com o passar do tempo cada vez mais explícitos, especialmente quanto à reforma monetária. Isto se pode acompanhar através dos estudos patrocinados pelos Banco Mundial sobre o Brasil, especialmente os de Deepak Lal (1993) e Allan H. Meltzer (1991), que defendem abertamente a dolarização, chegando o primeiro dos citados a defender, além da dolarização, que o FMI administrasse diretamente nossa moeda, através de um currency board (conselho de moeda), em substituição ao nosso Banco Central! (3).3

As atuais propostas de dolarização envolvem quatro aspectos: 1) ancoragem cambial: quando a moeda nacional mantém uma taxa cambial fixa, ou fica variando dentro de uma faixa, com o dólar americano; 2) conversibilidade da moeda: supressão completa ou quase completa dos controles cambiais e das restrições do acesso ao mercado de câmbio; 3) fixação da base monetária a reservas de divisas internacionais: o volume de emissão de moeda nacional fica subordinado à quantidade de moedas fortes de que o País dispunha em reserva; 4) uso interno do dólar: esta moeda passa a ser usada no País seja como indexador de contratos da economia, seja como créditos e depósitos dolarizados.

O Plano FHC, com a sua URV e sua nova moeda, se enquadra, em parte, nos três primeiros aspectos, significando, portanto, uma dolarização, indireta ou incompleta, mas, sem sombra de dúvida, dolarização.

Uma dolarização traz para qualquer economia, principalmente para uma economia continental como a nossa, consequências nefastas, especialmente em longo prazo. Vejamos algumas destas consequências.

A primeira delas é a unilateralidade da decisão de ancorar a moeda nacional no dólar. A vinculação é aparentemente um ato isolado e soberano daquele Estado, não estando associado a nenhum acordo ou compromisso com os Estados Unidos, país emissor. Isto faz com que o Federal Reserve (Banco Central americano) não assuma nenhum compromisso para sustentar a taxa de câmbio fixada. Se o banco central americano resolver valorizar o dólar frente a outras moedas como o marco, o franco ou o yen, nossa moeda seguirá junto, e como apenas 20% de nosso comércio exterior são com os americanos, perderemos competitividade nos 80% restantes de nossos mercados, pois nossos produtos ficarão mais caros naquelas moedas. Com isso, teremos queda nas exportações e aumento das importações vindas daqueles países, causando evidente prejuízo ao Brasil. E não poderemos fazer nada ou reclamar de ninguém!. Porque perdemos a soberania sobre a nossa política de câmbio. O valor externo da nossa moeda passará a acompanhar as flutuações do dólar, convenha isso ou não as nossas contas externas.

Mas a perda da soberania é ainda maior, porque perde-se também a autonomia na condução da política econômica. Renuncia-se a praticar políticas próprias no campo monetário e cambial. Com a atrelação da capacidade de emitir moeda ao volume de divisas que se possua, as condições de liquidez do meio circulante (moeda em circulação) passa a ser função do desempenho do setor exportador e importador e não da economia como um todo. Principalmente numa economia como a do Brasil cujo setor externo é relativamente pequeno, isto é, particularmente, pois pode acontecer de nossa economia interna estar crescendo, mas se nosso saldo comercial ficar deficitário faltará moeda para circular no País, e o crescimento econômico será interrompido.

Do ponto de vista estratégico há consequências ainda mais perigosas. Primeiro porque o processo de dolarização parece ser de difícil reversão, não podendo ser usado para resolver problemas atuais, e depois simplesmente descartado. Segundo, que com a redução de restrições do mercado de câmbio, nossa economia ficará ainda mais vulnerável ao movimento de capitais do sistema financeiro mundial, podendo haver fuga de capitais em massa assim que alguma coisa comece a ir mal na economia ou que o governo pratique alguma política em desacordo com os interesses de bancos e empresas multinacionais.

Por fim, é forçoso entendermos que todo este movimento de dolarização no continente sul-americano está a serviço, sem dúvida, de uma estratégia americana de – frente sua disputa com os imperialistas europeus e japonês – aprofundar ainda mais sua presença no continente, usando sua moeda como uma arma de dominação mais eficiente do que exércitos de ocupação.

“Concepção do plano desconhece o “conflito distributivo” presente no processo inflacionário”.

Com todos estes inconvenientes, a dolarização significa um recurso que, por mais vantajosa que seja a sua adoção em curto prazo para estabilização da moeda nacional, não deve ser utilizado em nenhuma hipótese por um país que queira se manter soberano.

A concepção do processo inflacionário que arma o Plano, a saber, o desequilíbrio fiscal e a inflação inercial, é claramente insuficiente. É verdade que um déficit público gerador de emissão de moeda e a existência de uma inflação inercial são fatores importantes em um processo inflacionário. No entanto, estes fatores não passam de consequências, de manifestações da verdadeira causa de toda a inflação: o chamado conflito distributivo de rendas.

Este conflito distributivo nada mais é do que um aspecto da luta de classes que se trava na sociedade. Nesta forma específica, ela representa a luta pela repartição, no mercado, das rendas provindas do trabalho necessário (salário) e da mais-valia. No processo de fixação dos preços os diversos segmentos do capital, em suas esferas financeiras, produtiva e comercial, travam uma outra batalha pela divisão da riqueza produzida. Através da prática de fixar preços para as mercadorias, representado valores maiores que o valor verdadeiramente encerrado nelas, o capitalista busca garantir para si uma fatia de mais-valia em detrimento seja dos salários dos trabalhadores seja de outros capitalistas. É este o processo mais profundo de criação de toda e qualquer inflação, um fenômeno tipicamente capitalista na história da humanidade. Este processo se tornou mais comum nas economias contemporâneas, à medida que o processo de monopolização foi aumentando e com ele a possibilidade de se administrar preços no mercado. O próprio Estado capitalista exerce papel fundamental de facilitador deste processo, principalmente através da gestão da moeda e da emissão da dívida pública.

O fato de a inflação ocorrer com mais virulência nas economias dependentes e pobres está ligado ao violento processo de transferência de riquezas – e seu consequente repasse para os trabalhadores –, gerado pelo pagamento de dívidas externas colossais ou pela fuga maciça de capitais.

Neste último caso é que se enquadra o Brasil. Assolado por uma dívida externa gigantesca, o seu serviço nos submete, ano após ano, a uma grande sangria. Como o envio do serviço da dívida para o Exterior está na raiz da nossa inflação, discutiremos mais à frente, quando abordarmos a questão do déficit público e na parte final deste artigo ao tratarmos especificamente da dívida externa.

Este processo do conflito distributivo e o papel dos oligopólios podem ser comprovados empiricamente, no Brasil, em uma pesquisa da FIPE. Esta instituição pesquisou separadamente a evolução dos preços dos setores oligopolizados (inclusive financeiros) e dos setores submetidos à concorrência. Esta pesquisa, realizada nos últimos dois anos, constatou o papel relevante desempenhado na inflação pelos preços oligopolísticos, que cresceram muito mais que os preços concorrenciais, denunciando seu papel de capitães da inflação. Isto demonstra de forma prática a principal natureza do processo inflacionário brasileiro, que é o conflito distributivo de rendas, capitaneado pelo capital financeiro, exercendo o seu papel de concentrar riquezas, transferindo-as dos setores competitivos e das rendas dos assalariados, via administração de preços.

Sem levar em consideração, portanto, o conflito distributivo no combate à inflação, especialmente o papel exercido pelos oligopólios na aceleração dos preços, estará apenas se lidando com as consequências e não com as causas. Mas o governo teimosa e convenientemente se nega a enfrentar este fato.

Daí por que nossa convicção de que o Plano contém um erro conceitual básico, que determinará que – mesmo que haja sucesso no programa em zerar a inflação através da adoção de uma nova moeda – estaremos apenas findando um processo inflacionário em cruzeiro, para iniciarmos outro processo de aceleração dos preços, desta vez em URV (ou dólar), como acontece hoje, mais dramaticamente, na Argentina.

Prova contundente disto é outro estudo realizado pela FIPE, que considerou a variação dos preços do segundo semestre de 1993, no Brasil, não em cruzeiro mas em dólar. O estudo concluiu que enquanto no setor competitivo da economia houve uma deflação de 2,4%, houve uma inflação em dólar de 0,8% nas tarifas públicas e de 4,6% no setor privado oligopolizado. O resultado final da inflação, em dólar, neste semestre foi cerca de 2%. Este estudo mostra claramente que a nova moeda já nascerá contaminada pela inflação, que recomeçará, outra vez e imediatamente, sua espiral diabólica.

“A verdade do déficit público está no pagamento dos juros das dívidas externa e interna”.

Este é outro erro conceitual básico do Plano. No Orçamento estão definidos dois tipos diferentes de saldos. O primeiro, chamado de saldo primário, é o resultado da receita dos impostos menos as despesas do governo com o custeio e o investimento, seja da máquina administrativa seja dos serviços públicos prestados à população (inclusive previdenciários), ou seja, as despesas não financeiras do governo. O segundo, chamado de operacional, é calculado depois do saldo primário, aditando-se àquele as despesas financeiras, mais simplesmente, os juros pagos pelo governo pela manutenção de sua dívida pública.

O entendimento do Plano é de que a origem do déficit é primária, ou seja, ocasionada pela queda nas receitas, caracterizada pela “deterioração da capacidade de arrecadação do Estado” (4) e pelo aumento das despesas em custeio e investimento. Daí as propostas de aumento de tributos e um projeto de orçamento contendo violentos cortes nas despesas não-financeiras.

Quanto à queda nas receitas tributárias, isto é uma realidade. Não tanto causada pela estagnação da economia, iniciada na crise da dívida externa de 1982, mas sim pela evasão e sonegação fiscal que alcançaram, nos últimos anos, dimensões espantosas. A Receita Federal estima, oficialmente, que para cada cruzeiro que entra no Tesouro outro cruzeiro é desviado, se evade ou é sonegado.

Mas já quanto à despesa, a história é totalmente diferente. É verdade que existem alguns problemas de adequação nas despesas previdenciárias e que sua forma de financiamento precisa ser reformulada.
No entanto, não é verdade que a despesa pública, mesmo com a receita em queda, tenha gerado déficits. Nos últimos dez anos, em apenas um único ano registrou-se um déficit primário apreciável no Orçamento. Por incrível que pareça, a versão do déficit público tão consagrada pela mídia não é verdadeira.

Sem a pressão da mídia esta versão não passaria pela cabeça de qualquer conhecedor mediano da realidade brasileira. Com um Estado que presta cada vez menos serviços públicos e de qualidade cada vez mais precária, que paga cada vez pior ao seu funcionalismo, que tem, na média dos últimos quatro anos, um déficit de necessidade de financiamento de investimentos nas estatais de apenas 0,5% do PIB 5, poderia gerar déficits repetidos e crescentes, alcançando até seis e 8% do PIB? A explicação não resiste a nenhuma aritmética.

A verdade do déficit público está nos déficits operacionais, resultado do pagamento dos serviços da dívida pública, responsável pelo dispêndio de dezenas de bilhões de dólares na última década, mais de 8 bilhões só em 1993. O maior item isolado de despesa do Orçamento depois dos benefícios da Previdência e da despesa com a folha de pessoal.

O Plano volta a deixar de lado, nesta questão do déficit, o papel primordial desempenhado pela verdadeira sangria dos recursos públicos gerados pela dívida pública interna e externa. A dívida pública cresceu e vem crescendo em bola de neve, alimentada, por um lado, pelos escorchantes juros reais a que está submetida e, por outro, pela administração do volume de moeda em circulação permanentemente inchado pelos superávits comerciais do Brasil com o exterior. Este superávit, por sua vez, é ocasionado pela necessidade de obtermos as divisas necessárias para continuarmos pagando o serviço da dívida externa, já tantas vezes paga. Por este último mecanismo, o ônus do pagamento da dívida externa é transferido, via déficit fiscal e inflação, para o conjunto do povo brasileiro.

Em vez de limitar o pagamento do serviço da dívida, verdadeiro vilão do déficit, sacrificando os lucros parasitários do capital financeiro, o governo prefere, como os seus antecessores, sacrificar o crescimento da economia, os serviços públicos prestados à população, os servidores públicos e as estatais.

Ultrapassada a primeira fase do Plano, que é a do ajuste fiscal, condição para a consecução do equilíbrio orçamentário, o famoso déficit zero, iniciar-se-á a segunda fase do programa com a criação da URV, como indexador diário e contemporâneo da inflação. A adesão à URV por parte das empresas será voluntária, dependendo da confiança que o indexador vier a alcançar e da oportunidade que parecer ao agente econômico mais conveniente. Quando toda a sociedade tiver aderido ao novo indexador, todos os preços e salários estarão estabilizados em URV, passando-se, então, à terceira fase da transformação da URV em uma nova moeda.

“Juntos, URV e cruzeiro real formam cenário para surgir a hiperinflação dos cruzeiros reais”.

Do ponto de vista do Plano o processo de adesão à URV se passará da seguinte forma: à medida que o novo indexador prova que reflete na inflação diária, os empresários passarão a fixar seus contratos e cotar seus preços em URV e, com isto, será vantajoso para todos e desde que se crie essa confiança no indexador, dentro em pouco, toda a sociedade aderirá à URV, com os assalariados negociando livremente novos contratos coletivos de trabalho também indexados, alcançando-se assim a estabilização.

O governo traça para esta segunda fase, como é óbvio, um cenário róseo, onde não existe conflito distributivo nem diferença de poder econômico entre os diversos agentes em cena: os vários tipos de empresas, as categorias de trabalhadores, os pensionistas da Previdência etc. No entanto, a realidade de uma sociedade de classes é bem dura e diversa. E este cenário da segunda fase deverá ser bem diferente: um cenário de forte conflito distributivo, com o parto da nova moeda dando-se em meio a uma verdadeira hiperinflação do cruzeiro real, como veremos a seguir.

Os pressupostos do Plano para a segunda fase são: um equilíbrio fiscal entre a receita e a despesa não-financeira da União; e uma taxa de juros alta o suficiente para desencorajar qualquer tendência a estocagem (uma queda dos juros só está prevista “para uma fase mais avançada do Plano”) (6).

Mesmo que se alcance de imediato o equilíbrio fiscal proposto na primeira fase, ainda continuarão atuando duas fortes pressões – não previstas pelo Plano – sobre a emissão de moeda e de quase-moeda (títulos da dívida pública). A primeira advém da emissão de títulos para retirada de circulação do montante, correspondente em cruzeiros, ao saldo da Balança Comercial (algo pelo menos correspondente anualmente a 3% do PIB). A segunda pressão virá da necessária emissão de dívida para enxugar os ingressos de divisas oriundos, e atraídos, do alto diferencial entre os juros internos e os juros internacionais, tanto sob a forma de empréstimos do tipo eurobônus, como de inversões diretas em fundos de investimentos (montante no mínimo igual a 2% anual do PIB).

Outro componente fundamental do cenário será a presença do principal fator do processo inflacionário, o conflito distributivo. E este conflito distributivo tende a se agravar em momentos – como a segunda fase – de cristalização relativa de preços.

O cenário previsível, então, para a segunda fase do Plano pode ser dividido em dois momentos. O primeiro, que antecede esta fase, começou com o anúncio da criação da URV. Anunciado o novo indexador, premidos pelo conflito distributivo os diversos agentes econômicos passaram a elevar rapidamente seus preços, e assim continuarão a agir na tentativa de, ao ser criada a URV, poderem a ela aderir em melhor condição relativa do que seus concorrentes ou fornecedores. Este fenômeno já começa a acontecer e explica a súbita alta da inflação em dezembro para 38% e a expectativa da taxa de janeiro para 41%.

Só por este motivo a inflação continuará em forte ascensão durante este primeiro momento, independente de qualquer outro fator ou acidente de percurso.

O segundo momento se dará quando da criação da URV e do processo de adesão voluntária. Aí temos que observar o papel de dois elementos básicos que estarão a compor o cenário. Um, conjuntural, diz respeito à persistência de fortes desníveis nos preços relativos, ocasionado principalmente pela forte aceleração inflacionária do primeiro momento. O segundo, estrutural, são as diferenças de poder de barganha no processo inflacionário, de um lado, entre os setores econômicos oligopolizados ou monopolísticos e os setores concorrenciais, como, de outro, entre estes e os assalariados e demais detentores de rendas fixas (pensões etc.).

“Brutal transferência de rendas de trabalho para o capital, este será o resultado do Plano FHC”.

Neste segundo momento, o mecanismo de livre adesão beneficiará os setores economicamente mais fortes, que escolherão o melhor momento para converter seus preços em URV. Assim, já no início da URV, o processo inflacionário sofrerá nova e forte aceleração. Este processo de adesão dos preços à URV será desigual com os setores concorrenciais ficando para trás, em cruzeiros, ou aderindo com forte perda em relação aos preços relativos, enquanto os salários e pensões tenderão a ficar congelados por mais tempo até quase o final da segunda fase.

A coexistência de preços oligopolizados em URV e preços concorrenciais em cruzeiros será inevitável e incontornável. Esta coexistência dará novo e forte impulso à espiral inflacionária do cruzeiro. O mecanismo desta aceleração se dá da seguinte forma: os preços em URV, corrigidos diariamente, exercerão forte pressão de custos sobre os preços em cruzeiros praticados no varejo de livre concorrência que, por sua vez, reduzirá o intervalo de suas remarcações para fugir da forte pressão dos custos. Como isto se refletirá no índice geral dos preços e a URV, como um índice contemporâneo, será extremamente suscetível a qualquer pressão altista, acelerará sua correção diária, aumentando ainda mais a pressão dos custos sobre o varejo, que voltará a responder com nova e maior desvalorização do cruzeiro, em círculo vicioso e perverso. Este processo tenderá a ocasionar, em um curto espaço de tempo de poucos meses ou semanas, uma hiperinflação em cruzeiros que só afetará, é claro, os detentores desta moeda. Quem estiver na URV, estará protegido. Isto poderá levar à antecipação da terceira fase do Plano pela total e completa destruição da moeda velha.

Os salários e outras rendas fixas como a dos pensionistas da Previdência estarão, neste cenário, evidentemente, em situação muito desfavorável. Numa conjuntura recessiva de juros altos e inflação em cruzeiros altíssima, as categorias assalariadas estarão, com raras exceções, com pouco ou nenhum poder de barganha. Por isso tenderão a permanecer com seus salários e pensões em cruzeiros por todo o processo hiperinflacionário da segunda fase.

Todo este processo da segunda fase levará a duas consequências: primeira, uma brutal transferência de rendas do trabalho para o capital e, dentro deste, o setor concorrencial para o setor oligopolizado; e segunda, pela liquidação do poder de compra dos salários, especialmente dos mais baixos (os médios e altos salários poderão se defender em parte das perdas através de aplicações no mercado financeiro em URV), com uma consequente supressão da demanda de bens populares, haverá uma forte quebradeira nestes setores, restando como ilhas de prosperidade os setores ligados á exportação e a certos bens de consumo de luxo ou duráveis.

Poderíamos exemplificar todo este processo com o seguinte caso hipotético. Imaginemos uma padaria. Criada a URV, ela passará a comprar seus principais insumos, o trigo e o fermento, já reajustados e em URV. Estes dois produtos são objeto de oligopólios que não vacilarão em ajustar seus preços para aderirem à URV em boas posições. O dono da padaria não poderá entrar imediatamente na URV, que corresponderia a reajustar o preço de seu pão diariamente em cruzeiros, seja porque seus consumidores continuarão a ganhar em cruzeiros, seja porque sua concorrência poderá, provavelmente, continuar utilizando o cruzeiro. No entanto, tanto ele como seus concorrentes, obrigatoriamente, terão de reduzir seu prazo de reajustes para poder continuar comprando seu trigo e fermento (que estarão subindo diariamente). Como estes reajustes mais frequentes repercutirão imediatamente na inflação, já no outro dia a URV tornará o preço de seus insumos ainda mais altos, fazendo com que a padaria aumente ainda mais a frequência dos reajustes, entrando num círculo vicioso. Ao mesmo tempo que seus preços sobem astronomicamente, o dono da padaria perde freguesia pela perda de poder de consumo. Enquanto isso seus padeiros pressionam pela transformação de seus salários em URV, o que ele, evidentemente, resistirá o mais que puder para não o fazer.

Ao dono da padaria, já em meio da hiperinflação, só restará dois caminhos: ou aderirá à URV com seu preço em baixa, perdendo parte de seus ativos para os oligopólios e diminuindo sua produção; ou permanecerá fora da URV e quebrará definitivamente, inviabilizado pelos custos (7).

Este exemplo ilustra de forma simples um processo complexo, que resultará, em última análise, na concentração das perdas inflacionárias por parte dos assalariados e do setor concorrencial da economia para o grande capital, principalmente financeiro. Em um breve espaço de tempo, haverá uma espécie de hiperinflação controlada, uma hiperinflação para os pobres, que deixará de fora e protegidos aqueles que sempre ganharam até agora com o processo inflacionário. Esta hiperinflação de proveta, de quebra, ainda arrasará setores da economia mais ligados ao mercado interno do consumo popular, esterilizando parte do capital produtivo nacional.

“140 bilhões de dólares de serviços da dívida. É o que pagaremos em 7 anos, pelo Plano FHC”.
Caso tudo ocorra como o previsto, a terceira fase do programa iniciar-se-á num cenário arrasado pela hiperinflação, com miséria e recessão, mas com uma economia dispondo de grandes excedentes exportáveis e com os setores exportadores intocados e em uma condição favorável à expansão. Com a adoção de uma nova moeda, de alguma forma ancorada no dólar, a economia brasileira estará entrando em uma nova fase de dependência e vulnerabilidade a fatores externos.

Um cenário de uma economia extremamente sensível aos movimentos do capital internacional e voltada para a geração de divisas capazes de assegurar as condições de pagamento da dívida externa, não é por acaso um cenário favorável aos interesses dos credores externos e ao grande capital internacional. Será apenas a consequência lógica e o cumprimento do objetivo estratégico do Plano.
Ao contrário do que prega o pensamento econômico oficial e liberal a questão da dívida externa não é um assunto resolvido, equacionado, na economia nacional.

O acordo de renegociação fechado com os bancos, além de eternizar nossos compromissos com a dívida, prevê pesadas remessas anuais com o seu serviço, por trinta anos. No período 1988-93, que sucedeu a moratória parcial de 1987 para uma dívida de cerca de US$ 120 bilhões, à época, o Brasil dispendeu em juros e amortizações US$ 82,5 bilhões, restando ainda a dever, em fins de 1993, um saldo de cerca de US$ 126 bilhões. Com o acordo de renegociação, que irá, segundo a propaganda oficial, aliviar nosso balanço de pagamentos, estão previstos, apenas para os próximos sete anos (até o ano 2000), desembolsos com o serviço da dívida no total de US$ 141,3 bilhões! Representando a transferência anual, para o exterior, de cerca de 4% do nosso PIB! (ver tabela).

Como estes compromissos são muito pesados, prevê-se a entrada de novos financiamentos para cobrir o déficit resultante, que acrescentarão, afora o saldo da dívida atual, um aumento do nosso endividamento externo em mais US$ 72,8 bilhões. Ou seja, mesmo com este brutal nível de compromisso continuaremos a dever, ano 2000, muito mais do que devemos agora.

A geração de tal capacidade de transferência de riquezas para o Exterior, mesmo para uma economia de dimensão como a nossa, não é fácil. Por isso significa uma grande preocupação para o sistema financeiro internacional. Daí a sua política estratégica de interferir na nossa economia, monitorando nossa política econômica, e a insistência de sugestões de planos de estabilização – como o Plano FHC – que venha, em curto e longo prazos, direcionar a capacidade de nossa economia para este esforço de criar excedentes exportáveis.

O Plano FHC representa a alternativa do capital financeiro internacional e de seus aliados internos para o futuro do Brasil. Além de ser um programa de estabilização, ele se encaixa na estratégia de manter e aprofundar a subordinação do País. Entender sua importância e opor-se a sua implementação é tarefa das forças políticas nacionais e populares.

Neste momento, é lamentável que forças políticas como o PT e o PDT venham se portando na área sindical, pela omissão, e no Congresso Nacional como forças coonestadoras do Plano, numa posição política de aceitação de suas medidas, reivindicando apenas mudanças secundárias, em atitude às vezes de franca colaboração, levados, quem sabe por cálculos eleitorais de curto prazo.

O Brasil vive um grande momento de crise e de definição de seu futuro. Nenhum programa pode nos tirar desta crise, nem garantir um futuro próspero para o nosso povo, sem enfrentar os problemas fundamentais aqui abordados: a dívida externa, os grandes oligopólios, a dívida pública interna, a concentração da renda. Construir concretamente este programa é uma tarefa que começa a se impor às forças socialistas e populares.

Uma solução que venha de baixo para cima, não dos gabinetes dos ministérios ou do Banco Central, mas que venha das massas de trabalhadores, tanto do campo como da cidade, e represente os anseios deste enorme exército de deserdados do capitalismo, dos que sempre perdem.

O regime capitalista foi criado e sempre mantido pela violência do Estado das classes dominantes. O último grande estágio do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, começado nos anos 1960, iniciou-se com a tomada violenta do Estado por um golpe, e o modelo implantado manteve-se pelo terror da Ditadura. Não caiu do céu nem nasceu pronto. E criar alternativas a ele é tarefa dos socialistas e de todos aqueles amantes da justiça social.

Sendo este sistema tão poderoso, sairmos dos seus liames não será fácil, e poderá custar tanta violência como a empregada para o criar e manter. Mas aos deserdados deste mundo parece não haver nem outra saída nem outra esperança.

* Economista.

Notas
(1) Exposição de Motivos do ministro da Fazenda 395/93, do Programa de Estabilização, parágrafos 2 e 115.
(2) Exposição de Motivos citada, parágrafo 126.
(3) Citado por BATISTA JR, Paulo Nogueira., em “Dolarização como Mecanismo de Reforma Monetária”, publicado na revista Boletim de Conjuntura Internacional. SEPLAN-PR, novembro de 1993.
(4) Exposição de Motivos citada, parágrafo 14.
(5) Ver tabela. Necessidade de Financiamento Líquido das Empresas Estatais 1989-94, Ministério da Fazenda, Secretaria de Política Econômica, Coordenação de Política Fiscal. Novembro/1993.
(6) Exposição de Motivos citada.
(7) Ver Relatório Preliminar da Subcomissão Especial de Política Monetária da Câmara dos Deputados, janeiro/1994.

EDIÇÃO 32, FEV/MAR/ABR, 1994, PÁGINAS 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11