Evolução da estratégia comunista no Brasil
Antes de proceder à análise das formulações estratégicas em si, é importante situar as bases teóricas e conceituais sobre as quais elas se assentam, dentro da tradição do pensamento comunista brasileiro e mundial (1). O fato é que há uma forte analogia entre a abordagem da estratégia pelos autores “clássicos do movimento comunista (tanto nos conceitos, quanto no vocabulário) e as formulações do pensamento militar.
Não por acaso, o pensamento comunista incorpora (retomando sobretudo, observações anteriores de Engels que se dedicou ao estudo das questões militares) a concepção básica do teórico militar prussiano, Carl von Clausewitz, da “guerra como continuação da política por outros meios”. Já que havia uma continuidade entre as políticas e a guerra, seria possível incorporar à análise política formulações militares. De fato, as análises políticas de Lênin, Trotsky, Stalin, Gramsci etc estão repletas de imagens, raciocínios e formulações militares (basta lembrar a célebre distinção entre “guerra de movimento” e “guerra de posição” na reflexão política gramsciana).
O movimento comunista se constitui no Século XX sob o impacto mundial da revolução soviética e tomando como referência a trajetória do Partido Bolchevique russo. Nesta base, o texto mais importante que passou a servir de “guia” para as formulações dos partidos que passaram a integrar a III Internacional foi um artigo de Stalin, publicado em 1923, intitulado “A Questão da Estratégia e a Tática dos Comunistas Russos” (2). Como bem observou João Quartim de Moraes, as formulações contidas nesse artigo penetram tão profundamente na tradição do pensamento comunista, que mesmo os pensadores mais visceralmente anti-stalinistas, oriundos dessa tradição, acabam por incorporá-las nas suas próprias reflexões estratégicas (3).
As formulações do texto se apóiam num “tripé” de conceitos sobre o Programa, a Estratégia e a Tática de um partido proletário revolucionário. O Programa deveria se apoiar numa análise com base na teoria marxista, da formação social onde o partido atua, sobretudo da sua “estrutura social” e das relações de classe a ela associadas. Essa análise deveria abarcar, também, a inserção desse país nas transformações econômicas, sociais e políticas em curso em nível mundial.
Estratégia deve se apoiar nos processos objetivos e nos fatores subjetivos
A Estratégia indica o “golpe Principal” (ou “golpes principais”) a ser desferido pelo movimento revolucionário em cada etapa do processo de desenvolvimento dessa formação social (note-se, uma vez mais, o emprego de terminologia militar). Ela deve determinar as transformações estruturais que se impõem na fase histórica em curso que, por sua vez, devem nortear a política de alianças sociais a ser estabelecida visando à ruptura revolucionária com o sistema vigente. Do ponto de vista da luta política, isto implica: tentar isolar e golpear o(s) inimigos(s) principal(ais) de cada etapa: neutralizar o(s) inimigo(s) secundário(s) e as forças mais vacilantes; ampliar ao máximo a aliança de forças e/ou classes sociais que podem ser reunidas na luta pelas transformações indicadas.
Pelo exposto, entende-se que uma das questões fundamentais a ser definida pela reflexão estratégica comunista é o “caráter da revolução” na formação social onde o partido atua. Ao contrário do que afirma Quartim, a definição da “etapa de revolução”, dentro desse pensamento, não se define exclusivamente pelas mudanças no poder político (4). O texto-“guia”, citado anteriormente, indica explicitamente que a formulação estratégica deve se basear no estudo programático dos “processos objetivos do capitalismo no seu desenvolvimento e declínio” (5) (isto é, desenvolvimento de fatores objetivos como a estrutura econômica, o grau de concentração e centralização do capital, o grau de desenvolvimento do capitalismo no campo, o tipo de inserção na economia capitalista mundial, o peso relativo das diferentes classes e frações de classe na sociedade etc.), além das mudanças políticas (abarcando uma série de fatores subjetivos como o grau de organização e consciência das diferentes classes e forças sociais, a sua experiência política, a sua relação com o poder do Estado, as diferentes formas de consciência e sua expressão política etc.)
Cabe ressaltar que isso implica um conceito dinâmico (e não estático) de estratégia, onde cada mudança substancial da configuração destes fatores objetivos e subjetivos deve levar as mudanças nas formulações estratégicas: “A cada reviravolta histórica corresponde um plano estratégico, indispensável e ajustado às suas tarefas” (6).
Já a Tática se relaciona à definição das bandeiras políticas e de mobilização que abrem caminho para os objetivos estratégicos em cada conjuntura de atualização: “a missão mais importante da tática consiste em determinar os caminhos e os meios, as formas e os métodos de luta, que correspondam do melhor modo à situação concreta existente em determinado momento e que preparem de modo mais seguro os êxitos estratégicos” (7). Do ponto de vista político, valem aqui os mesmos objetivos de isolamento/ neutralização/aliança de forças discutidos acima no âmbito da estratégia.
Vamos acompanhar agora, ainda que de forma rápida e sucinta, como evoluiu o pensamento estratégico dos comunistas no Brasil, tendo como referência a base teórico-conceitual que acabamos de ver. O Partido Comunista do Brasil é fundado em 1922, com base no impacto do triunfo da Revolução Soviética sobre setores do movimento anarquista, que tinha grande influência sobre o movimento operário brasileiro do início do século. Ao contrário da maioria das experiências na Europa, portanto, o movimento comunista não se estruturou no Brasil a partir de dissidências de um partido marxista (social-democrata) já constituído e consolidado.
Entre as “debilidades orgânicas” deste tipo de nascimento está a falta de reflexões teóricas e programáticas acumuladas sobre a realidade brasileira, que pudessem servir de base para uma formulação estratégica nos termos indicados acima. A referência para a elaboração eram as orientações da Internacional Comunista (Comintern), estruturada por iniciativa do Partido Bolchevique russo em 1919 (e que impôs, a partir do seu segundo congresso de 1920, as famosas “vinte condições” de diferenciação com os partidos social-democratas para aceitar a filiação de partidos comunistas revolucionários pelo mundo afora).
Primeira reflexão sobre a realidade nacional à luz do marxismo, em 1926
Um primeiro esforço de reflexão teórica e programática autônoma sobre a realidade nacional, publicado em 1926, foi a obra Agrarismo e Industrialismo do então dirigente do partido, Otávio Brandão. Apesar do seu caráter tosco e até mesmo primário, o livro de Brandão representou uma primeira e inédita tentativa de interpretar a evolução nacional à luz de referências teóricas marxistas. Com base nesta análise, a reflexão estratégica dos comunistas brasileiros apontava, em meados dos anos 1920 para uma etapa de “revolução democrático pequeno-burguesa” no país (8).
A partir da sua maior aproximação e integração com a própria Internacional Comunista no final dessa década, as formulações dos comunistas brasileiros passaram a se referenciar nas reflexões do Comintern sobre a questão nacional-colonial nos países dependentes e semicoloniais (9). Isto se materializou, sobretudo no Terceiro Congresso do Partido Comunista do Brasil, realizado em fins de 1928 e início de 1929, que incorporou integralmente as análises sobre a questão desenvolvidas no VI Congresso do Comintern poucos meses antes (10). Mesmo sem uma análise teórica e programática mais profunda da realidade brasileira, o pensamento estratégico desenvolvido sob a égide da Internacional Comunista se apoiava em formulações da teoria do imperialismo de Lênin para apontar o caráter “nacional e democrático” da revolução brasileira, que deveria ser “dirigida pela classe operária” com base na formulação de “sovietes de operários e camponeses” (seguindo a experiência da revolução russa).
A falta de uma formulação teórica e programática própria, e a subordinação acrítica às orientações do Comintern (que, muitas vezes, simplesmente acompanhava as flexões da política externa soviética, inclusive ao aceitar a sua própria dissolução em 1943) levou a uma trajetória errática de “ziguezagues” e guinadas bruscas de orientação nas três primeiras décadas de atuação dos comunistas brasileiros. Isto se materializa em posicionamentos tão díspares e desconexos como a não intervenção na crise nacional da “Revolução de 1930” (por não se enquadrar no “modelo” da revolução soviética), a tentativa insurrecional com características putchistas em 1935 (por influência dos revolucionários tenentistas que ingressaram no partido, como Prestes) e a política de “unidade nacional para a guerra e para a paz” em torno de Getúlio em meados dos anos 1940 (reprodução da política desenvolvida, na mesma época, pelo dirigente comunista Earl Browder nos Estados Unidos).
Deste ponto de vista, um avanço importante na formulação estratégica do Partido Comunista do Brasil é dado com a discussão e aprovação do Programa do IV Congresso do partido, em 1954. Este programa teve grande repercussão no movimento comunista internacional junto com a formulação, na mesma época, do Programa do Partido Comunista da Índia. Representavam, após a dissolução do Comintern, importantes esforços de reflexão autônoma sobre a realidade dos dois maiores e mais importantes países “dependentes do imperialismo no mundo” (11).
Do ponto de vista estratégico, o Programa do IV Congresso mantém a indicação do caráter “nacional democrático” da revolução brasileira e da necessidade da “direção da classe operária” para que ela seja levada adiante com êxito. O Congresso avança, no entanto, na definição das transformações “antiimperialistas” e “antilatifundiárias a serem enfrentadas no Brasil, e aponta a necessidade da conquista de um “novo regime democrático e de libertação nacional” para levá-las a cabo. Do ponto de vista das alianças a serem estabelecidas no plano estratégico, ele já indica a necessidade da construção de uma “aliança nacional” mais permanente, abarcando tanto os trabalhadores urbanos e rurais (operários e camponeses) quanto os intelectuais, setores da pequena-burguesia e a própria burguesia nacional. Apesar desta amplitude no plano estratégico, os posicionamentos táticos assumidos pelo partido no período das discussões do Congresso são marcados pela estreiteza, com destaque para a caracterização do último governo Vargas como um governo de “traição nacional, instrumento dos imperialistas norte-americanos” (12).
Linha de “transição pacífica” do PCUS acelera a cisão do partido nos anos 1960
O esforço de reflexão do IV Congresso colocou a discussão estratégica dos comunistas brasileiros num novo e mais elevado patamar, que virá a se desdobrar na própria cisão do PC nos anos 1960. No pano-de-fundo destas reflexões, estava o caminho de desenvolvimento capitalista adotado pelo país, reproduzindo características da chamada “via prussiana” indicada por Lênin, onde o Estado se mantém como principal articulador e financiador da transição ao capitalismo, sem romper com a estrutura de concentração fundiária (13). Só que no caso do Brasil, esta “modernização capitalista” se dá num período (meados do século XX) em que o grau de monopolização e internacionalização do capital alcança patamares tão elevados que praticamente inviabilizam qualquer “desenvolvimento capitalista autônomo”. Em contrapartida, a formação do “campo socialista” em torno da URSS no pós-guerra gestava um “pólo” alternativo de desenvolvimento no mundo, que poderia estender apoio econômico, militar, político e diplomático para Estados que rompessem com as potências capitalistas, ou dar “margem de manobra” para os que procurassem se manter numa posição de “não-alinhamento”.
As formulações estratégicas do IV Congresso fazem referência explícita às possibilidades abertas pelo quadro de bipolaridade no mundo do pós-guerra:
“A colaboração e amizade com a União Soviética, com a República Popular da China e demais países do campo da paz, constituirá fator importante e decisivo para a segurança do povo brasileiro e para o desenvolvimento independente da economia nacional (…) O regime democrático-popular contará, assim, com a base econômica e com o apoio externo que, juntos, lhe permitirão livrar o povo brasileiro da ação das forças agressivas do imperialismo e assegurar a melhoria radical do nível de vida dos operários, dos camponeses, da intelectualidade e demais camadas trabalhadoras, defender e desenvolver a indústria nacional, dar ajuda aos camponeses, como aos artesões e pequenos e médios produtores” (14). O debate sobre a “estratégia da revolução brasileira” nestas novas condições dominou as discussões dos comunistas brasileiros até a sua cisão no início dos anos 1960. Sob o impacto da nova orientação formulada pela direção do PCUS a partir do seu XX Congresso do PCUS em 1956 (enfatizando a “transição pacífica para o socialismo” e a “competição pacífica com o capitalismo” como pilares da linha geral do movimento comunista) polarizam-se duas visões estratégicas no Partido Comunista do Brasil. A primeira, que torna-se majoritária no partido com a adesão de Prestes após as mudanças na URSS, materializa-se na “Declaração de Março” de 1958 e nos documentos oficiais para o V Congresso, realizado em 1960. Sintonizada com a “onda” nacional-desenvolvimentista que ganha vulto no país a partir da eleição de Juscelino, ela aponta a possibilidade de levar adiante as transformações nacionais e democráticas através da conquista de uma sucessão de “governos burgueses”, cada vez mais nacionalistas e democráticos. Na base desta formulação estava a compreensão de que seria viável e progressista uma etapa de “desenvolvimento capitalista autônomo” no Brasil, já que “se o capitalismo, na arena internacional, é um sistema em acelerada decadência, no Brasil, entretanto, o desenvolvimento capitalista tem por enquanto caráter objetivamente progressista” (15).
A segunda visão estratégica articulou-se em defesa das formulações básicas do IV Congresso, indicando a necessidade da ruptura revolucionária com o Estado para levar adiante as transformações antiimperialistas a antilatifundiárias, e a articulação destas com a transição para o socialismo (em função da impossibilidade de sustentar um “desenvolvimento capitalista autônomo” diante do grau de monopolização e internacionalização da economia capitalista) (16). É em torno destas duas visões estratégicas que se irá cindir o partido no início dos anos 1960, contrapondo o Partido Comunista Brasileiro (PCB) ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
A partir de 1958 surge a defesa do caráter progressista assumido pelo capitalismo
Aqui cabem duas observações que me parecem importantes. A primeira é que, ao contrário do que é veiculado por inúmeros estudiosos e militantes de esquerda, o pensamento estratégico dos comunistas brasileiros nunca se orientou pela defesa explícita de uma revolução “democrático-burguesa” a ser dirigida pela burguesia nacional (17). Esta formulação estratégica só é incorporada implicitamente a partir de 1958, nas reflexões sobre o caráter “objetivamente progressista” do desenvolvimento do capitalismo no Brasil (compondo, assim, a linha estratégica que se aproxima do nacional-desenvolvimentismo, como vimos acima).
A segunda observação é que a cisão dos comunistas brasileiros se fundamenta em divergências internas sobre a estratégia mais adequada para a realidade nacional a partir das formulações programáticas do IV Congresso, e não uma reprodução mecânica da cisão sino-soviética cristalizada no movimento comunista internacional no início da década de 1960. Como bem observa o historiador Daniel Aarão Reis, as relações do PCdoB com o Partido Comunista Chinês só se desenvolvem e consolidam após a cisão dos comunistas brasileiros, ao longo da primeira metade dos anos 1960 (18). Isto ajuda a explicar por que o PCdoB conseguiu se distanciar do fugaz ocaso da influência internacional do maoísmo nos anos 1970 e se afirmar, hoje, como continuidade orgânica da tradição comunista no Brasil, após a própria direção do PCB optar pela auto-dissolução.
O debate sobre o “caráter da revolução brasileira” continuaria no centro das reflexões estratégicas da esquerda ao longo dos anos 1960. A crítica às formulações programáticas e estratégicas dos comunistas brasileiros era conduzida, do ponto de vista teórico, pelas análises desenvolvidas por Caio Prado Junior (sobretudo em seu livro A Revolução Brasileira, de 1966), e do ponto de vista político pelas formulações da recém-formada Polop (Organização Revolucionária Marxista – Política Operária). Ambos apontavam para o caráter imediatamente socialista da revolução brasileira.
O Manifesto-Programa que serviu de base para a “reorganização” do PCdoB em 1962 aprofunda a diferenciação com o pensamento estratégico que passou a predominar no partido em 1958 (19). Procurando incorporar na sua reflexão estratégica características do desenvolvimento capitalista brasileiro que se acentuam nos anos 1950, o PCdoB já aponta para a constituição de grupos monopolistas no empresariado nacional. Estes se somariam ao “capital imperialista” e aos “latifundiários” no “rol” das forças a serem golpeadas pela revolução na etapa em curso, que continua sendo definida como nacional e democrática. As transformações antiimperialistas, antilatifundiárias e antimonopolistas são remetidas, assim, à conquista de um “Governo Popular Revolucionário”. Em vez de uma “aliança nacional” permanente com os setores não-monopolistas da burguesia nacional, as formulações estratégicas do Manifesto-Programa apontam para uma política de neutralização destes setores no processo de ruptura revolucionária. Em contraposição à “opção pelo caminho pacífico” adotado pelo PCB, o PCdoB indica que “as massas populares terão de recorrer a todas as formas de luta que se fizerem necessárias para conseguir os seus propósitos (…) só a luta decidida e enérgica, as ações revolucionárias de envergadura, darão o poder ao povo” (20). O triunfo do golpe militar de 1964 é interpretado pelo PCdoB como a confirmação do fracasso da orientação estratégica “nacional-desenvolvimentista” desenvolvida a partir de 1958. Já em agosto é feito um primeiro balanço do golpe, procurando extrair lições para o pensamento estratégico dos comunistas (21). Este balanço não contém, em si, novas formulações estratégicas, concentrado-se na reafirmação da diferenciação anterior com o pensamento estratégico do PCB.
Já a VI Conferência do PCdoB, em 1966, registra alguns desenvolvimentos importantes no pensamento estratégico. Estes desenvolvimentos se desdobram em duas linhas. A primeira é a defesa da formação de uma “Frente Única Democrática e Patriótica” contra a ditadura militar, orientada por uma plataforma centrada em cinco pontos: defesa da soberania nacional, defesa do desenvolvimento independente da economia nacional (com a implementação de medidas contra a desnacionalização da indústria, de uma reforma agrária que beneficie as massas camponesas, da ampliação dos direitos sociais dos trabalhadores e do povo etc.); defesa da cultura nacional; garantia das liberdades democráticas; e conquista de um governo democrático que convoque uma Assembléia Nacional Constituinte livremente eleita. Note-se que esta formulação estratégica já aponta para um maior entrelaçamento dos objetivos táticos com os objetivos estratégicos, articulando medidas políticas democráticas com medidas progressistas de cunho nacional e social (22).
Influência do maoísmo vem dos escritos militares sobre a guerra popular
Na segunda linha é que se faz sentir com mais peso a influência do maoísmo no pensamento estratégico do PCdoB em meados dos anos 1960. Ela define o “caminho” da luta armada no Brasil referenciada nos escritos militares de Mao Tsetung e na experiência da “Guerra Popular Prolongada” chinesa, indicando o campo como o principal cenário da luta revolucionária no Brasil. Embora não se tratasse de uma formulação “integralmente” maoísta (pois não formula o abandono da atuação partidária nas cidades, em função de uma estratégia de “cerco das cidades pelo campo”) a influência das formulações chinesas é evidente na indicação de bases prioritariamente agrárias para o desenvolvimento do processo revolucionário no Brasil (23). Esta formulação estratégica se materializou na organização do movimento de resistência armada conhecida como “Guerrilha do Araguaia”, no início dos anos 1970 (24).
Com o maior “fechamento” do regime militar a partir do final dos anos 1960 e a própria derrota da Guerrilha do Araguaia em 1974, a discussão estratégica deixa de ocupar o centro dos debates do PCdoB e da esquerda brasileira de uma maneira geral, que se volta para as bandeiras táticas de resistência à ditadura. No caso dos comunistas do PCdoB, isto se materializou, a partir de 1975, em trazer a “questão democrática” para o centro da sua atuação política, estruturada em torno de um eixo de três bandeiras centrais: anistia ampla geral e irrestrita para todos os presos e perseguidos políticos; conquista de amplas liberdades democráticas; convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, Livre e Soberana. Isto se materializava na defesa de uma “ampla frente democrática” abarcando todas as forças oposicionistas que se contrapunham ao regime castrense, independente das diferenças de interesse sociais e projetos políticos futuros. Esta orientação indicava a necessidade de intensificar a atuação dos comunistas no MDB, que se afirmava como expressão mais aberta nessa Frente.
A VII Conferência Nacional do partido, realizada em 1978, consagra este eixo central da luta pelas liberdades e pela democracia, indicando-a como “ponte” para a aproximação de transformações nacionais e democráticas mais “profundas”, relacionadas à etapa do processo revolucionário em curso. A conferência desenvolve, também, reflexões estratégicas importantes, procurando, novamente, incorporar as características do desenvolvimento capitalista brasileiro nos marcos do regime militar.
Aponta-se o grande crescimento do capital monopolista nacional, sob a égide da proteção/financiamento do Estado, bem como a intensificação do desenvolvimento capitalista no campo, ainda que nos marcos da preservação da concentração fundiária. À luz disto, o pensamento estratégico desenvolvido pela Conferência aponta para a crescente aproximação e entrelaçamento das “tarefas nacionais e democráticas” e das “tarefas socialistas” no processo revolucionário brasileiro, embora se reafirme o caráter essencialmente “nacional e democrático” da etapa em curso. Esta mesma evolução do pensamento estratégico do PCdoB é confirmada nas discussões do VI Congresso realizado em 1982 que, como vimos, também procedeu à crítica do maoísmo e da sua influência no próprio partido.
De passagem, é interessante notar que, em termos da constituição e consolidação de uma referência partidária de esquerda no período da transição democrática, tanto os comunistas do PCdoB como os do PCB acabam sendo “penalizados” por terem colocado a questão democrática no centro de suas formulações táticas e estratégicas a partir da década de 1970. Em contraposição à política de “Frente Democrática” preconizada e praticada pelos comunistas, o Partido dos Trabalhadores (PT) surge no início dos anos 1980 secundarizando a luta democrática a afirmando uma “identidade social” oposta às forças de oposição “burguesa”. Um exemplo claro disto é o eixo das suas primeiras campanhas eleitorais – “Vote 3, que o resto é burguês” – em contraposição à política dos comunistas que era de unificar o maior leque de forças sociais possível para impulsionar a transição democrática. O fato é que a tática democrática comunista foi vitoriosa, mas à custa da perda de referência de massas mais ampla, no âmbito da esquerda, para o PDT e o PT (menos consequentes em trazer a questão da transição democrática para o centro de suas formulações). E agora algumas lideranças do PT, muito cultivadas pela mídia, vêm denunciar os comunistas por não abraçarem a democracia como valor universal… De qualquer forma, este desfecho contraditório é uma questão que merece análises, estudos e reflexões mais profundas.
VII Congresso indica um eixo de alianças que leva à Frente Brasil Popular em 1989
O VII Congresso do PCdoB se realiza em 1988, nos marcos de uma profunda frustração popular com os rumos da chamada “Nova República”. Do ponto de vista das suas formulações estratégicas, o Congresso indica que o Brasil se depara com uma “encruzilhada histórica”, fruto da incapacidade de os governos democráticos sob a hegemonia burguesa enfrentarem os entraves estruturais que determinam a crise brasileira (referência ao “tripé” imperialista/monopolista/latifundiário indicado no Manifesto Programa de 1962). O resultado era o agravamento da crise social e nacional, além da não-consolidação de instituições democráticas. Com base nesta análise, o VII Congresso aponta um “eixo” de alianças com forças que permitem vincular a “questão democrática” à implementação de profundas e progressistas transformações econômico-sociais. Isto se materializou na aprovação de um novo Programa que define dezoito objetivos centrais, entrelaçando medidas democráticas, nacionais e sociais de cunho tático e estratégico (25). Este novo desenvolvimento nas reflexões estratégicas se desdobrou, também, na definição de um eixo de alianças mais “à esquerda”, que se materializou na coligação com o PT (ou o PDT) em boa parte das capitais nas eleições municipais de 1988, bem como na montagem da Frente Brasil Popular (com o PT e o PSB) em torno da candidatura de Lula à Presidência da República em 1989.
Toda a discussão, feita acima, sobre a evolução do pensamento estratégico dos comunistas brasileiros nos remete à discussão das implicações, para esse pensamento, do entrelaçamento atual da crise nacional com o colapso do antigo “campo socialista” formado em torno da URSS no pós-guerra. O fato é que este colapso retira da arena mundial um dos pilares que fundamentava toda a reflexão estratégica e programática dos comunistas brasileiros a partir do IV Congresso, como vimos acima. Deixa de existir um pólo mundial que poderia servir de base de apoio (econômico, político, diplomático ou militar) para transformações sociais mais profundas no nosso país. Diminui a margem de manobra para ações mais “independentes” por parte de Estados do chamado “Terceiro Mundo”. O próprio capitalismo se afirma, novamente, como a única economia mundial. Do ponto de vista político e ideológico, o colapso do socialismo no Leste e a crise fiscal do “Estado de Bem-Estar” no Ocidente colocam na defensiva as forças que procuram preservar alguma forma de intervenção estatal como instrumento decisivo de justiça social e soberania nacional. Do ponto de vista da discussão teórico-conceitual feita no início deste texto, trata-se, evidentemente, de uma “reviravolta histórica” que exige a formulação de um “novo plano estratégico” por parte da esquerda, em geral, e dos comunistas, em particular. Não por acaso, praticamente todos os partidos de esquerda no Brasil realizam, agora, seus Congressos nacionais. O PCdoB decidiu antecipar a realização do seu 8º Congresso, que será realizado em fevereiro de 1992 (um ano e meio antes do prazo estatutário), tendo como pontos centrais de discussão a Crise do Socialismo, a “Nova Ordem” em gestação no mundo e suas consequências estratégicas para o Brasil.
Plano estratégico de mais defensiva com o reforço das tarefas nacionais
Não pretendo, aqui, submeter a uma apreciação mais crítica as formulações estratégicas em debate no Congresso, mesmo porque trata-se de um debate em curso no partido. Destaco apenas alguns pontos que marcam o debate a partir das teses de abertura das discussões:
1- A necessidade de redefinir um projeto nacional das forças progressistas diante das transformações ocorridas no mundo, para poder, nesta base, disputar a hegemonia do processo político nacional;
2- definir, nas novas condições, o que seria uma “base econômica efetivamente nacional” dado o avanço da internacionalização do capital e o desmantelamento do “contraponto” socialista gestado no pós-guerra, considerando, sobretudo, o papel das estatais, a reserva de mercado, a política energética e o desenvolvimento tecnológico;
3- indicar transformações urgentes e necessárias no aparelho de Estado, para resgatá-lo como instrumento de justiça social e soberania, visando a sua democratização política e institucional, a preservação e democratização das Forças Armadas e da Justiça, à modificação do sistema de governo etc;
4- rediscutir a perspectiva estratégica anterior de “liquidação imediata” dos monopólios, substituindo-a por uma visão de controle e liquidação progressiva e diferenciada;
5- redefinir a questão da reforma agrária, substituindo a perspectiva da “liquidação imediata e indiscriminada” dos latifúndios pelo estabelecimento de formas de controle sobre a produção agrícola capitalista em grande escala, associada à reforma agrária e cooperativização dos latifúndios improdutivos e/ou de baixa produtividade (26).
São estas reflexões que marcam o debate sobre a estratégia comunista no 8º Congresso do PCdoB. Em linhas gerais, diante do agravamento da crise nacional e da nova correlação de forças no mundo, elas indicam um “plano estratégico” mais defensivo, com o reforço da importância das tarefas nacionais e democráticas (embora redefinidas) no enfrentamento da crise brasileira, e um certo distanciamento da perspectiva socialista. Será isso mesmo? Resta-nos enfrentar o debate ou aceitar, resignados, a barbárie…
* Cientista político, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutorando do IUPERJ.
Notas
(1) Sobre a formulação do conceito de “estratégia” na tradição comunista, ver HARNECKER, M. Estrategia y Táctica, Buenos Aires, Editora Antarca, 1988; MORAES, J. Q. de “A Influência do Leninismo de Stalin no Comunismo Brasileiro”, in História do Marxismo no Brasil – Vol. 1, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991; LÊNIN, V. I. (et al.), Estratégia e Tática, São Paulo, Anita Garibaldi, 1989.
(2) STALIN, J. “A Questão da Estratégia e da Tática dos Comunistas Russos”, in Estratégia e Tática, op. cit.
(3) Quartim sugere que este legado de Stalin “sobrevive nas profundezas do “inconsciente intelectual” de Roberto Freire e seus correligionários”. MORAES, J. Q. de, “A Influência do Leninismo de Stalin no Comunismo Brasileiro”. op. cit., p. 86.
(4) Ele afirma: “como a etapa, para Stalin, define univocamente a estratégia, que lhe corresponde e como o que define a etapa é a mudança do poder político, a base econômica da sociedade não é determinante nem para a definição da etapa, nem para a correspondente dedução da estratégia”, Idem, p . 60.
(5) STALIN, J. V. “A Questão da Estratégia e da Tática dos Comunistas Russos”, op. cit., p. 20.
(6) Idem, p. 28.
(7) Idem, p. 22.
(8) Ver discussão a este respeito em ZAIDÁN, M. “O Grande Tournant: O VI Congresso da Internacional Comunista (1928-1929)”, in História do Marxismo no Brasil, Vol. 1, op. cit.
(9) Sobre a evolução das reflexões da Internacional Comunista a respeito da questão, ver SCHLESINGER, R. La Internacional Comunista y el Problema Colonial, Cidade do México, Ediciones Passado y Presente, 1977.
(10) ZAIDÁN, M. “O Grande Tournant; o VI Congresso da Internacional Comunista (1928-1929)”, op. cit.
(11) Foi dada tanta importância a ambos estes programas que o próprio Stalin teria estudado e comentado os materiais preparatórios, o que foi usado como “argumento de autoridade” para a sua aprovação no Congresso do PC do Brasil.
(12) Ver a caracterização feita, por exemplo, no “Projeto de Programa do PCB”, in CARONE, E. O PCB – 1943 a 1964, Vol. 2, São Paulo, DIFEL; 1982, p. 114-120.
(13) A discussão de Lênin a respeito se encontra no seu texto O Programa Agrário da Social-Democracia da Primeira Revolução Russa, São Paulo, Ciências Humanas, 1980.
(14) “IV Congresso do PCB (dezembro de 1954 a fevereiro de 1955)”, in CARONE, E. O PCB – 1943 a 1964, Vol. 2, op. cit., p. 135.
(15) GORENDER, J. “O V Congresso dos Comunistas Brasileiros”, Estudos Sociais, Vol. 3, n. 9, outubro de 1960, publicado in CARONE, E. O PCB – 1943 a 1964, Vol. 2, op. cit., p. 232.
(16) Seus principais defensores eram dirigentes que compunham o núcleo central da direção do partido até 1958, entre os quais João Amazonas, Maurício Grabois e Pedro Pomar. Para um resumo das posições defendidas por esta corrente nos debates do V Congresso em 1960, ver o artigo de Maurício Grabois, “Duas Concepções, Duas Orientações Políticas”, republicada pela revista Princípios, n. 6, junho de 1983.
(17) Como exemplo mais recente dessa caracterização da estratégia dos comunistas brasileiros, ver os artigos de César Benjamin, “Uma Saída para a Crise” e de Paulo Vannuchi, “Os Caminhos da Esquerda” in BENJAMIN, C. (et al.), Estratégia: Uma saída para a crise, São Paulo, Instituto Cajamar/Editora Brasil Urgente, 1991.
(18) REIS FILHOS, D. A. “O Maoísmo e a Trajetória dos Marxistas Brasileiros”, in História do Marxismo no Brasil, Vol. 1, op. cit., p.125-26.
(19) Ver “Manifesto-Programa do Partido Comunista do Brasil”, in A Linha Revolucionária do Partido Comunista do Brasil, Lisboa, Edições Maria da Fonte, 1974.
(20) Idem, p. 22-23.
(21) “O Golpe de 1964 e Seus Ensinamentos” in A Linha Política Revolucionária do Partido Comunista do Brasil, op. cit.
(22) VI Conferência Nacional do PCdoB, “União dos Brasileiros para Livrar o País da Crise, da Ditadura e da Ameaça Neocolonialista” in A Linha Política Revolucionária do Partido Comunista do Brasil, op. cit., p. 129.
(23) A “autocrítica” em relação a esta influência maoísta é assumida pelo próprio PCdoB na resolução “Estudo Crítico Acerca da Violência Revolucionária”, aprovada no VI Congresso do partido, em 1982.
(24) Ver, a este respeito, o livro de Fernando Portela, Guerra de Guerrilhas no Brasil, São Paulo, Global, 1984.
(25) Para uma discussão das características particulares do novo Programa adotado no VII Congresso do PCdoB ver o informe apresentado por Renato Rabelo, “Sobre o Programa do Partido” in A Política Revolucionária do PCdoB – 7º Congresso do PCdoB, São Paulo, Anita Garibaldi, 1989.
(26) “Problemas Atuais do Brasil e do Mundo”, Documento para Debate do 8º Congresso do PCdoB.
EDIÇÃO 24, FEV/MAR/ABR, 1992, PÁGINAS 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51