DE VOLTA ÀS CATEDRAIS DO LIBERALISMO
No final de abril, o Caderno Idéias publicou um artigo do deputado federal do PCB, Roberto Freire, defendendo a renovação do pensamento socialista em geral (e comunista em particular). Renovar o ideário socialista, ajustando-o aos desafios do mundo contemporâneo, é uma perspectiva que só pode despertar sentimentos de simpatia e concordância. Sobretudo para aqueles que nutrem um espírito crítico, aberto e dialético. Afinal, quem, em sã consciência, pode se sentir atraído pela proposta de "envelhecimento" do socialismo? Ainda mais depois da débâcle do Leste nos últimos anos. Mas renovar exatamente o que, com que concepção, e em que direção? É este o verdadeiro terreno da discussão, que deve romper com o superficialismo dos rótulos fáceis e do senso comum para se situar no debate teórico e político sério.
Como se depreende de outra matéria publicada no caderno principal do Jornal do Brasil no mesmo dia, o artigo de Roberto Freire era, na verdade, uma defesa de posição relacionada com os debates do congresso do seu partido, onde o deputado despontou como principal defensor da mudança do nome (comunista) e dos símbolos (foice e martelo) da agremiação – decisão que foi protelada para contornar as divergências surgidas. Enquanto membro de outra organização política, não me cabe entrar na polêmica interna de posições e propostas do congresso pecebista. Mas os temas levantados por Freire dizem respeito à crise mais geral em que se encontra o pensamento de esquerda e progressista como um todo.
E neste sentido, enquanto intelectual marxista e ativista político de esquerda, senti-me tentado a entrar no debate. Entro pela porta "formal" da polêmica sobre a nomenclatura comunista (sem trocadilho), para discutir, em seguida, sua relação com os temas substantivos do debate. Cabem, de início, alguns esclarecimentos factuais. A adoção do nome "comunista" para caracterizar a(s) corrente(s) do movimento socialista que se baseia(m) nas idéias marxistas não foi uma iniciativa original de Lênin no início deste século. Ela remonta, na verdade, a Marx e Engels. Em meados do século passado esse nome estava associado a duas correntes distintas no movimento operário europeu que foram precursoras diretas da intervenção política marxista – a dos que se referenciavam nas idéias políticas defendidas por Babeuf na sequência da revolução francesa ao final do século XVIII (e defendiam, portanto, uma espécie de "comunismo igualitário" a ser conquistado por sociedades secretas conspirativas) e a dos que seguiam as idéias do alfaiate revolucionário alemão Wilhelm Weitling (que buscava fundamentar seu comunismo em princípios cristãos e identificava no lumpen-proletariado o grande agente da transformação social).
Marx e Engels assumiram o termo "comunismo" para caracterizar a corrente política formada em torno das suas teorias, argumentando que ela havia superado as limitações das correntes comunistas anteriores. Ao longo de suas vidas, sempre manifestaram a sua discordância com a designação "socialista" ou "social-democrata" assumida por diversos partidos proletários (inclusive os que se assumiam como marxistas). Segundo eles, o nome comunista era mais apropriado pois refletia os objetivos maiores do seu programa revolucionário – do ponto de vista econômico, a socialização dos meios de produção como base para a construção de uma sociedade sem classes ou diferenças de classe; do ponto de vista político, a superação do poder de Estado junto com os antagonismos de classe (e, portanto, a superação da própria democracia enquanto forma de organização do Estado).
Em discussão os objetivos para emancipação social indicados por Marx
O debate atual no âmbito da tradição marxista sobre a manutenção (ou não) dessa designação remete, assim, à discussão da validade e/ou atualidade destes objetivos maiores indicados por Marx como base para a emancipação humana. Mesmo sem o assumir, a proposta de Freire de mudança do nome "comunista" se fundamenta justamente na negação destes objetivos. A visão de "renovação do socialismo" desenvolvida no seu artigo se baseia em dois eixos centrais que apontam em direção diametralmente oposta ao "programa máximo" marxista indicado acima – a aceitação da economia de mercado e a renúncia a qualquer estratégia de confronto com o Estado (capitalista) moderno.
O conceito de "economia de mercado" se refere a uma economia regulada pelo mercado. Ou seja, a regulação da economia (e da sociedade) pela concorrência de interesses privados, orientados pela "racionalidade instrumental" de maximizar seu(s) lucro(s) particular(es). Trata-se, portanto, de uma economia baseada na propriedade privada (em geral burguesa) onde a forma mercadoria penetra em todos os poros da sociedade. Pela ótica da teoria marxista, isto faz com que a humanidade permaneça subordinada a forças (de mercado) que não domina, e por isso mesmo não seja livre. Isto se expressa, concretamente, na incapacidade de esta economia de mercado resolver problemas básicos como o desemprego, as crises cíclicas, a inflação, a polarização social etc, apesar dos gigantescos avanços tecnológicos e científicos.
Ao renovar o pensamento socialista temos de perguntar se o capitalismo contemporâneo superou esta realidade. Um exame mais objetivo revela que não, nem nos países centrais e muito menos no chamado terceiro (ou quarto) mundo. No artigo de Roberto Freire, no entanto, não há uma referência crítica sequer à instituição da propriedade privada, embora abundem críticas ao "estatismo". Já no século passado Marx indicava (e a experiência socialista do nosso século confirma) que a transição socialista tem de conviver por um longo período histórico com relações de mercado, ampliando progressivamente os mecanismos de regulação social da economia à medida que se avança na socialização da produção. O artificialismo nesta questão só conduz (como conduziu) a becos sem saída. Afinal, trata-se de superar e não de abolir o mercado. Mas simplesmente aceitar, em nome do socialismo, a regulação da economia e da sociedade pelo mercado também não leva a lugar nenhum. Ou melhor, leva à prostração diante das relações de exploração e alienação próprias do capitalismo, que passam a ser concebidas como perpétuas e imutáveis.
Freire tenta eludir estas questões com a proposta de uma "economia de mercado regulado". A idéia é mais ou menos a seguinte: a economia seria regulada pelo mercado que, por sua vez, seria regulada pelo Estado (democrático). O que esta abordagem teria de "novo" seria a substituição da proposta marxista clássica de "abolição da propriedade privada" (indicada pelo próprio Marx no Manifesto Comunista como o "resumo da sua teoria") pela perspectiva da regulação democrática do mercado, via Estado. Na verdade, não se trata propriamente de uma abordagem nova. Foi exatamente essa perspectiva teórica e política que serviu de base para o casamento da social-democracia com o keynesianismo na década de 1930.
A exigência de liberdade implica superar o Estado, mesmo o socialista
Esta abordagem esbarra na crítica fundamental dirigida por Marx ao liberalismo ainda no século passado, e que me parece inteiramente atual: a de que, sem superar a propriedade privada que fundamenta a divisão da sociedade em classes, os mecanismos e instituições democráticas – preconizados teoricamente pelo autores liberais e gestados historicamente pela trajetória de ascensão política da burguesia – acabam marcados por um "viés de classe" que favorece a dominação desta mesma burguesia. Se é fato que o Estado é permeável à influência e à pressão de diferentes interesses (e que ele próprio é composto por interesses contraditórios), não é menos verdadeiro que os diferentes interesses têm influência desigual sobre o Estado.
E, aqui, o viés de classe é determinante. Basta pensar na influência do "poder econômico" sobre os processos eleitorais brasileiros e o peso da pressão das "elites" (como definiu a própria ex-ministra Zélia na sua demissão) sobre a ação do governo. É neste sentido que Marx (e não Lênin) chegou à conclusão original de que o Estado, mesmo na sua forma moderna mais democrática, era um "órgão de dominação" de classe. Por isso, na sua concepção, o horizonte da verdadeira liberdade teria de ser o horizonte da superação do poder de Estado (mesmo o socialista)! Em nome da "renovação do socialismo", Freire simplesmente passa ao largo desta crítica central formulada ao liberalismo pela teoria política marxista. Ela se dirige não apenas às versões do pensamento democrático-liberal clássico do século XVIII (como Rousseau) que concebia a liberdade e a igualdade como metas a serem realizadas através do Estado (Freire se refere a estas no seu artigo), mas também a outras versões (como a dos utilitaristas seguidores de Bentham no século XIX) que concebiam a ação estatal apenas como "corretora" dos desvios gerados pelo mercado, de forma a garantir "o máximo de felicidade para todos". Estas últimas compõem a verdadeira matriz teórica e política da proposta de Freire, que se limita a defender, em nome do socialismo, uma economia de mercado associada à uma ação social preventiva e regulatória do Estado.
A redefinição do socialismo em termos liberais também não é nova ou original. Já no século passado esta perspectiva foi assumida por diferentes pensadores no seio do movimento marxista, começando por Bernstein na Alemanha, servindo de base para toda a evolução da social-democracia ao longo do século XX. Estes autores argumentavam que a incorporação de organizações "de massas" (como os Partidos e Sindicatos) às instituições representativas haviam conferido uma "elasticidade" aos estados democráticos (capitalistas) modernos que tornava anacrônica a sua caracterização como "órgãos de dominação de classe". Esta "socialização" da política teria alterado (ou cancelado) o seu "viés de classe".
O interesse é que os autores que se assumiram (e assumem) como herdeiros do liberalismo fora da tradição marxista no século XX não caíram nesta mesma idealização dos mecanismos democráticos do Estado moderno. Os chamados "teóricos das elites" no início do século (Pareto/ Mosca/ Michels) destacavam que a incorporação das organizações modernas nas instituições representativas do Estado só aprofundava o processo de formação e consolidação de uma elite, oligarquia ou classe dominante. A suposta "representação popular", segundo eles, não passaria de "fingimento".
Já a "linha de recuo", adotada pelos autores pluralistas, foi a de redefinir o próprio conceito de democracia, retirando de sua fundamentação qualquer referência substantiva à soberania popular, para situá-la como mero modus procedendi – um processo mais eficiente para contrapor e compor interesses diversos na formulação de políticas. É neste sentido que Norberto Bobbio afirma inexistir uma teoria política marxista, já que esta não centra sua discussão do Estado no que ele considera a questão fundamental da teoria política – a problemática de "como se governa". Mas mesmo as reflexões mais recentes dos teóricos clássicos do pluralismo norte-americano (como Robert Dahl) reconhecem que a desigualdade econômica acaba produzindo um corte de classe na interferência e influência dos diversos grupos de interesse sobre a agenda política do Estado.
Resta saber se a débâcle do socialismo no Leste altera esta realidade essencial dos estados capitalistas no ocidente. Acredito sinceramente que não. É bom lembrar que a perspectiva do "keynesianismo progressista" da social-democracia também se encontra em crise hoje, diante da ofensiva do neoliberalismo. Crise esta que tem levado os partidos social-democratas no poder a optar, cada vez mais, pela regulação da economia e da sociedade pelo mercado, em detrimento da ação social preventiva e regulatória do Estado.
A renovação não se faz com o abandono da crítica ao capitalismo
Com estas reflexões, não pretendo subestimar a gravidade da crise que hoje assola o ideário marxista/ comunista. O lado mais dramático desta crise, e que revela toda a sua profundidade, é o fato de nenhuma das diversas alternativas que se gestaram no âmbito do antigo campo socialista ter conseguido enfrentar e superar, dentro das suas condições e particularidades históricas, os desafios da transição a uma sociedade sem classes.
Isto revela que as contradições estruturais que golpearam (e golpeiam) estas experiências se situam além do horizonte de respostas geradas até aqui pelo ideário socialista. A renovação do socialismo é hoje uma questão da sobrevivência. Só não acho que este desafio seja resolvido simplesmente trocando as "catedrais do socialismo" pelas "catedrais do liberalismo", enfraquecendo a própria crítica às contradições, iniquidades e limitações do sistema capitalista.
Espero, sinceramente, que os congressos dos partidos de esquerda, marcados para este ano, no Brasil (PCB, PT e PCdoB) ajudem a encontrar respostas socialistas para esta crise, superando explicações superficiais e apressadas baseadas apenas no senso comum. Afinal, como dizia Hegel, se aparência e essência se confundissem, não haveria necessidade da ciência…
Luís Fernandes é professor da Universidade Federal Fluminense – UFF e doutorando do Programa de Ciência Política do IUPERJ.
EDIÇÃO 22, AGO/SET/OUT, 1991, PÁGINAS 27, 28, 29, 30