O surgimento do marxismo como vertente teórica própria, a partir das reflexões de Marx e Engels nos anos 40 do século passado, teve como base objetiva o deslocamento do centro do movimento revolucionário mundial da França para a Alemanha, deslocamento que se acentuou ainda mais ao longo da segunda metade do século XIX. Na Alemanha, o refluxo da onda revolucionária que sucedeu a derrota militar na Segunda Guerra sufocou (nos sentidos figurado e literal) a alternativa política que estava se constituindo na ala esquerda do Partido Social-Democrata ao redor das figuras de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht (fundadores, em seguida, do Partido Comunista alemão).

A partir deste refluxo, a evolução geral da social-democracia (na Alemanha e no mundo) foi marcada pela progressiva incorporação do revisionismo de Bernstein e, consequentemente, pela "recomposição" com o liberalismo (como vimos no artigo da edição anterior da Princípios). A outra alternativa política e teórica de esquerda desenvolvida nos marcos gerais da social-democracia – o austro-marxismo – tampouco sobreviveu ao esmagamento da experiência da "Vienna Vermelha" (governada pelo Partido Social-Democrata austríaco) e à anexação da Áustria pela Alemanha nazista.

Além destes desenvolvimentos, os diversos autores (sobretudo alemães) que se alinharam com as formulações da chamada "Escola de Frankfurt" (de Horkeimer e Adorno, no seu início, a Habermas e Claus Offe, nos dias de hoje) resvalaram, basicamente, para uma crítica cultural do capitalismo, sem muita consequência política (pelo menos política revolucionária).

A partir de Lênin, surge um tronco da teoria política marxista alternativo à social-democracia fora da área geográfica dos países europeus de língua alemã. A base objetiva para isto foi o deslocamento do centro do movimento revolucionário mundial da Alemanha para a Rússia na passagem do século XIX para o século XX. A Rússia, nesta época, conjugava um desenvolvimento altamente concentrado do capitalismo nas principais cidades com sobrevivências do regime de servidão feudal no campo. As contradições deste desenvolvimento geraram três revoluções no espaço de apenas doze anos – as revoluções democrático-burguesas de 1905 e fevereiro de 1917, e a revolução socialista, dirigida pelo Partido bolchevique de Lênin, em outubro de 1917.

“Gerar dirigentes proletários intelectualmente capazes é um grande desafio”.

Boa parte da produção teórica de Lênin acerca do Estado tratou de resgatar as formulações clássicas da teoria política de Marx e Engels (sobretudo a sua caracterização do Estado como órgão de dominação de classe contra os novos enfoques dessa questão introduzidos pelos autores e correntes revisionistas no âmbito da social-democracia). Este enfoque está presente já nos primeiros escritos, como o texto de polêmica com o "marxismo acadêmico" O Conteúdo Econômico do Narodismo e a sua Crítica no Livro do Sr. Struve (O Reflexo do Marxismo na Literatura Burguesa), escrito em 1894, quando tinha apenas 24 anos de idade. Seus trabalhos teóricos mais sistemáticos sobre o Estado, no entanto, foram elaborados nos períodos imediatamente anterior e posterior à revolução soviética. Estes incluem obras como o célebre O Estado e a Revolução, escrito em agosto e setembro de 1917, o livro A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, de novembro de 1918, a conferência Sobre o Estado, proferida em julho de 1919. Nesta última, Lênin enfatiza a necessidade de estudar a fundo a teoria marxista do Estado, questão complexa que, segundo ele, havia sido "embrulhada e complicada ainda mais pelos eruditos e especialistas burgueses" por "afetar os interesses das classes dominantes mais do que qualquer outra questão" (fora os fundamentos da ciência econômica) (1).

Apesar da sua importância, estes trabalhos não chegam a configurar uma contribuição original de Lênin à teoria política marxista, a não ser pela discussão das suas consequências e desdobramentos para as revoluções proletárias no começo do século XX. A preocupação do principal dirigente da revolução soviética, aqui, era a de recolher, recuperar e sistematizar as extensas (e, muitas vezes, dispersas) reflexões teóricas de Marx e Engels sobre o Estado, para as situar nas grandes polêmicas teóricas, estratégicas e táticas que sacudiam o movimento social-democrata na Rússia e no mundo. Esta sistematização da teoria marxista do Estado já seria, em si, uma importante contribuição (embora não original). Mas Lênin, na verdade, vai muito além e formula uma série de desenvolvimentos criadores e originais da teoria política marxista.

Sem dúvida, uma das maiores contribuições leninistas foi o aprofundamento e sistematização da teoria do partido proletário-revolucionário (suas bases teóricas, políticas, organizativas e programáticas). As bases teóricas deste partido foram discutidas por Lênin no seu famoso livro Que Fazer?, de 1902. As questões organizativas do partido formaram o tema central do livro Um Passo em Frente, Dois Passos Atrás, de 1904. Já as suas bases políticas e programáticas foram examinadas na sua obra Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática, de 1905.

Uma discussão mais aprofundada e detalhada destas bases teóricas da concepção leninista de partido é algo que foge ao escopo deste artigo (2). Tratarei resumidamente, aqui, apenas da sua conclusão fundamental – a de que a consciência socialista não brota espontaneamente da luta econômica do movimento operário. O raciocínio de Lênin a este respeito se apóia na seguinte reflexão teórica de Kautsky:

"O socialismo e a luta de classes surgem um ao lado do outro e não derivam um do outro; surgem de premissas diferentes. A consciência socialista moderna não pode surgir senão na base de profundos conhecimentos científicos (…) Porém, o portador da ciência não é o proletariado, mas a intelectualidade burguesa (sublinhado por K. K.): foi do cérebro de alguns membros desta camada que surgiu o socialismo moderno e foram eles que o transmitiram aos proletários intelectualmente mais desenvolvidos, os quais, por sua vez, o introduzem da luta de classe do proletariado onde as condições permitem. Deste modo, a consciência socialista é algo introduzido de fora na luta de classe do proletariado e não algo que surgiu espontaneamente no seu seio" (3).

Ao contrário do que afirmam muitas críticas apressadas e superficiais, nem Lênin, nem Kautsky argumentam, neste raciocínio, que os operários devem ser dirigidos por intelectuais no "seu" partido revolucionário. O que o argumento acima evidencia é que, dado o agravamento progressivo da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual nas sociedades divididas em classes antagônicas (e aprofundada ainda mais no capitalismo), a defesa científica do socialismo não surgiu historicamente do seio do próprio proletariado, mas da produção teórica de intelectuais que se identificaram com a "causa operária" (no caso, Marx e Engels). Isto diz respeito, portanto, à gênese histórica da "moderna teoria socialista", e não a uma relação social a ser preservada e perpetuada nos partidos socialistas. O desafio do partido proletário-revolucionário é justamente gerar dirigentes proletários (tanto do ponto de vista teórico, quanto de origem social) intelectualmente capacitados para conduzir a luta da sua classe pelo poder.

“A política une a “minoria” consciente com as grandes massas operárias”.

Justamente por se apoiar no domínio de um método científico e dialético de análise, que vai além do "mundo das aparências" onde os homens espontaneamente se movem, Lênin indicava que os partidos proletários-revolucionários sempre se constituiriam em destacamentos organizados de uma minoria mais consciente da classe. Isto é agravado pelo fato, já indicado por Marx e Engels, de a ideologia dominante de cada sociedade ser, de maneira geral, a ideologia da(s) classe(s) dominante(s) dessa sociedade. Assim, no capitalismo, predominam, mesmo no seio da classe operária, valores burgueses ou até mesmo pré-capitalistas. Por isto, Lênin concluía que:

"Com efeito, na época do capitalismo, quando as massas operárias são submetidas a uma incessante exploração e não podem desenvolver suas capacidades humanas, o mais característico para os partidos políticos operários é justamente que só podem abarcar a uma minoria de sua classe, uma vez que os operários verdadeiramente conscientes em toda sociedade capitalista não constituem senão uma minoria de todos os operários" (4).

Esta é a base do conceito de "partido de vanguarda" , de Lênin, que desenvolve formulações elaboradas por Marx e Engels no próprio Manifesto Comunista, onde afirmam que:
"Praticamente, os comunistas constituem, pois, a fração mais resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que impulsiona as demais; teoricamente tem sobre o resto do proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições, da marcha e dos fins gerais do movimento proletário" (5).
A política une a minoria consciente com as grandes massas operárias

"Os comunistas combatem pelos interesses e objetivos imediatos da classe operária, mas, ao mesmo tempo, defendem e representam, no movimento atual, o futuro do movimento" (6).
Mas, como levar adiante a revolução socialista proletária se apenas uma minoria do proletariado é "verdadeiramente consciente"? Muitos adversários de Lênin no movimento social-democrata consideravam que sua formulação de "partido de vanguarda" era basicamente "blanquista" (7), já que conceberia a revolução feita por uma minoria em nome do proletariado, e não pelo proletariado (contrariando, assim, o preceito marxista de que a emancipação do proletariado é obra do próprio proletariado). O próprio Trotsky, na sua polêmica com Lênin a respeito dos princípios organizativos do Partido Operário Social-Democrata da Rússia argumentava, em 1904, que as concepções do dirigente da ala bolchevique gerariam uma situação onde "a organização partidária substituirá o Partido, o Comitê Central substituirá a organização partidária, e, finalmente, o 'ditador' substituirá o Comitê Central (…) Os comitês se encarregarão da 'direção' enquanto o povo fica quieto" (8).

Para Lênin, a chave para a resolução deste dilema era a política. Caberia ao partido revolucionário proletário encontrar, em cada momento, as bandeiras políticas capazes de despertar e mobilizar o conjunto da classe operária e das amplas massas trabalhadoras (ou de uma parte substancial de ambas) para a ação política revolucionária. Aprofundando os termos da ruptura política de Marx e Engels com os anarquistas (tanto na Primeira Internacional como na Segunda), Lênin polemizou com os economicistas russos destacando a importância fundamental da luta política para a emancipação do proletariado. Justamente por ser o instrumento central da luta pelo poder político, caberia ao Partido romper com o desenvolvimento espontâneo do movimento de massas, promovendo (pela luta política) a fusão deste com a ciência socialista:

"Tudo o que seja inclinar-se perante a espontaneidade do movimento operário, tudo o que seja diminuir o 'elemento consciente', o papel da social-democracia significa, independentemente da vontade de quem o faz, fortalecer a influência da ideologia burguesa sobre os operários" (9).
Coerente com esta formulação leninista, as teses do II Congresso da Internacional Comunista lançava um alerta contra o "corporativismo estreito" no movimento operário:

"O proletariado só se torna revolucionário se não se fecha no âmbito de um estreito corporativismo, e se penetra e atua em todas as manifestações e em todos os domínios da vida social, como chefe de todas as massas trabalhadoras e exploradas" (10).

Contudo, Lênin sabia que não bastava a vontade subjetiva da "vanguarda consciente" para despertar o proletariado para a luta política revolucionária. De fato, uma das contribuições essenciais de Lênin à teoria política marxista é mostrar que a revolução não ocorre em qualquer momento do desenvolvimento social. Mesmo com um brutal antagonismo entre as forças produtivas e as relações de produção na base econômica da sociedade, ela só pode irromper com o surgimento de uma situação política propícia. Não compreender isto seria uma das bases para o predomínio de uma nova versão do economicismo nos partidos da Segunda Internacional, a começar por seu principal dirigente Karl Kautsky. Em resposta a esta orientação economicista limitada, mecanicista e estreita (que achava que a simples força numérica do proletariado seria o fator central e decisivo para a sua conquista do poder, sem maiores rupturas), Lênin formulava o conceito de "situação revolucionária" para elucidar as condições políticas necessárias para o advento de qualquer revolução:

"Quais são, de maneira geral, os traços distintivos de uma situação revolucionária? Seguramente, não cairemos em erro se apontarmos três traços principais:

1) A impossibilidade de as classes dominantes manterem imutável a sua dominação; uma crise no 'alto', uma crise na política da classe dominante, que provoca uma fresta por onde irrompem o descontentamento e a indignação das classes oprimidas. Para que estale a revolução não basta que 'os de baixo não queiram', é necessário, também, que 'os de cima não possam' continuar vivendo como antes.
2) Um agravamento, superior ao habitual, da miséria e dos sofrimentos das classes oprimidas.
3) Uma intensificação considerável, por estas causas, da atividade das massas que, em tempo de 'paz', se deixam espoliar tranquilamente, mas em épocas turbulentas são empurradas a uma ação histórica independente, tanto pela situação de crise quanto pelos mesmos que estão 'em cima'.

Sem estas mudanças objetivas, não só independentes da vontade dos diferentes grupos e partidos, como também da vontade das diferentes classes, a revolução é, de uma maneira geral, impossível. O conjunto destas mudanças compõe precisamente o que se chama de situação revolucionária" (11).

Esta descrição da "situação revolucionária" feita por Lênin retrata um desenvolvimento objetivo, que independe da vontade individual das personalidades ou dos grupos afetados por ela, e é válida para as revoluções em geral, e não apenas para a revolução proletária. Dependendo do contexto histórico, ela pode ou não se materializar em tentativas efetivas de tomada do poder pelas classes em contenda.

Muitas vezes, estas situações nem mesmo levam a revoluções políticas, limitando-se a rebeliões difusas ou reivindicações imediatas mais limitadas. O que determina se situações revolucionárias desembocam (ou não) em tentativas efetivas de tomada revolucionária do poder, segundo Lênin, seria a presença, nessas sociedades, dos fatores subjetivos da revolução – isto é, de forças políticas em condições de mobilizar amplas massas para a ação revolucionária. Quando este é o caso, a situação revolucionária evolui para uma crise revolucionária (também chamada por ele de "crise geral nacional").

No caso da revolução proletária, é aqui que o conceito de "partido de vanguarda" joga um papel determinante. Atuando de forma ampla e flexível, no curso dos acontecimentos políticos que marcam a crise, a "minoria consciente" pode mobilizar em torno de si parte substancial do proletariado. O desafio do Partido leninista, nestas condições, é justamente o de se enraizar no conjunto da classe operária e conduzir sua luta política de tal forma que esta assuma a direção do processo revolucionário na sociedade, estabelecendo alianças com todas as classes e forças sociais que possam compor um movimento político geral voltado para depor a(s) classe(s) proprietária(s) que domina(m) o poder de Estado. Assim, um dos desafios centrais do partido proletário-revolucionário é o de determinar bandeiras políticas gerais que consigam mobilizar amplas forças sociais para a luta revolucionária contra o Estado central. Na verdade, a luta revolucionária tende a se materializar em reivindicações de reformas (estruturais ou não) que as classes dominantes são incapazes de atender, e não na idéia genérica de "revolução" (12). Isto revela como é simplista e esquemática a contraposição absoluta entre Reforma e Revolução, como era feito nas polêmicas do movimento social-democrata na época, e continua sendo feito nos debates atuais da esquerda no Brasil e no mundo.

“Vanguarda é um conceito essencialmente político para Lênin”

É nestes termos que Lênin formula outra contribuição fundamental para a teoria política marxista – o conceito de hegemonia. Na tradição da social-democracia russa, desde as primeiras formulações feitas por Axelrod em 1901, o conceito de hegemonia se relacionava à conquista pelo proletariado, através do Partido Social-Democrata, da direção geral da revolução democrática contra o absolutismo (13). Lênin desenvolve este conceito para abarcar a disputa pela direção política de processos revolucionários em geral (com coalizões mais ou menos amplas de interesses de classe e forças sociais, dependendo das condições históricas particulares de cada processo). Esta noção foi incorporada às teses dos primeiros congressos da Internacional Comunista que afirmaram a necessidade de o proletariado manter, a partir das próprias instituições soviéticas, sua hegemonia política sobre os demais setores explorados e oprimidos com quem se aliou na luta contra o Estado burguês (14). Assim, os que acusavam (e continuam acusando) Lênin de preconizar uma "revolução das minorias" certamente não compreenderam a riqueza, complexidade e profundidade da sua teoria da revolução, e tampouco a sua resposta teórica original ao dilema de como viabilizar a revolução socialista tendo como ator das mudanças um proletariado ainda dominado por valores burgueses. Mas são igualmente infundadas as formulações, eivadas de arrogância e auto-suficiência, dos que se auto-proclamam "vanguarda" pelo simples fato de fazer uma "profissão de fé" marxista-leninista.

O conceito de "partido de vanguarda" de Lênin (como vimos até aqui e como ele mesmo fez questão de enfatizar no seu célebre livro O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, de 1920) é essencialmente político, e não definido a priori por uma filiação teórica geral. Mesmo porque, é na ação política concreta que se materializam as orientações teóricas que efetivamente predominam na prática política dos indivíduos e dos partidos (15). Ou seja, o partido tem de acertar na política (com uma ação ampla e flexível no curso dos acontecimentos do seu país) para se constituir efetivamente em força de "vanguarda" do processo revolucionário.

Outra grande contribuição de Lênin para a teoria política marxista foi a sua análise das consequências, para o movimento revolucionário mundial, da passagem do capitalismo para a fase do predomínio dos monopólios (fase em que ele chamava de imperialismo). As formulações originais de Marx se apoiavam na noção de que as primeiras revoluções socialistas vitoriosas eclodiriam nos países de maior concentração de capital e produção – onde a contradição da propriedade capitalista e o caráter social da produção nas empresas modernas estariam mais aguçados. Por eclodir nos países capitalistas mais desenvolvidos, a revolução proletária tenderia a se espalhar rapidamente pelo restante do mundo.

Segundo Lênin, a passagem do capitalismo para a sua fase monopolista na virada do século XIX para século XX, com a divisão de todo o Globo em esferas de dominação e hegemonia de um punhado de potências imperialistas, forçava uma revisão teórica deste prognóstico marxista original que se baseava na realidade do capitalismo no século passado. A obtenção de lucros extras nos países dependentes e coloniais (a partir da exportação de capital excedente) teria permitido aos grandes grupos monopolistas praticar uma política de corrupção de determinadas camadas do proletariado nos seus países de origem. Isto levou ao surgimento de uma camada social do proletariado nesses países que Lênin chamava de "aristocracia operária" (e que se constituiu na base objetiva para a consolidação de idéias políticas reformistas no seio da classe como um todo). Por outro lado, a integração de todo o Globo num sistema capitalista único, dominado pelos monopólios, teria transformado as lutas de libertação nacional em "aliadas naturais" da luta proletária-revolucionária nos países centrais.

Assim, o processo revolucionário mundial passaria a ser composto por duas vertentes básicas que se reforçam mutuamente – o movimento revolucionário do proletariado contra a burguesia nos países capitalistas mais desenvolvidos e os movimentos revolucionários antiimperialistas dos povos das nações dependentes, coloniais e semicoloniais. Dado o inevitável desenvolvimento desigual das diversas nações no imperialismo, uma situação política revolucionária poderia eclodir em países que constituíssem "elos fracos" da cadeia imperialista, sem que, necessariamente, estes fossem os de produção capitalista mais concentrada. Por isso, os partidos operários em cada país deveriam ter a maior preocupação em estabelecer amplas alianças com outras classes e forças sociais que pudessem ser mobilizadas para a ruptura revolucionária com o poder de Estado existente. Especial atenção, segundo ele, deveria ser dada para a aliança com os camponeses pobres nos países centrais, e com o campesinato como um todo nos países dependentes.

“Explicar o processo de débâcle do campo socialista é crucial para o marxismo”.

Foi o correto entendimento destas questões que possibilitou ao Partido Bolchevique conduzir a revolução socialista de outubro de 1917, mesmo nos marcos de uma Rússia que, embora compusesse o "rol" de potências imperialistas da época, mantinha um acentuado atraso econômico e social em relação aos países capitalistas mais adiantados. A partir do triunfo da revolução soviética, formou-se em torno do Partido Bolchevique a Terceira Internacional (Internacional Comunista), que procurou congregar todas as correntes marxistas revolucionárias que se destacavam dos partidos sociais-democratas, em desacordo com a sua "virada revisionista" (sobretudo a sua descaracterização do Estado democrático moderno como órgão de dominação classista da burguesia).

As orientações teóricas de Lênin e a experiência histórica da revolução soviética serviram de fonte de inspiração para toda a evolução do movimento comunista. Este tomou grande impulso como alternativa histórica à Social-Democracia com a formação do campo socialista no fim da Segunda Guerra.

Referenciado no "modelo de desenvolvimento soviético", este chegou a abarcar cerca de um terço da humanidade. Ao mesmo tempo, a compreensão teórica do desdobramento do processo revolucionário mundial em duas vertentes permitiu aos partidos comunistas encabeçarem diversos movimentos de libertação nacional, orientando-os na direção do socialismo (como na China, Coréia do Norte e Vietnã).

O movimento comunista pôde acompanhar, assim, um novo deslocamento do centro do movimento revolucionário mundial no pós-guerra – da Europa para os países da África, Ásia e América Latina.
Esta afirmação histórica foi golpeada, no entanto, por um novo surto revisionista (agora nos marcos do próprio movimento comunista) tendo como marco fundamental as formulações de Kruschev a partir do XX Congresso do PC soviético em 1956. Este novo surto se materializou, de início, na substituição dos conceitos de partido-proletário e ditadura do proletariado pelos de Partido e Estado de todo o povo. Estas reformulações acabaram deflagrando um processo geral de cisão e retrocesso no movimento comunista internacional, que culmina na atual débâcle do sistema socialista no mundo (coroada pelas mudanças dos últimos dois anos no Leste Europeu).

É interessante notar que essa débâcle atinge, inclusive, todos os países do campo socialista que procuraram, em algum momento, se apresentar como "paradigmas alternativos" de desenvolvimento no âmbito do movimento comunista – URSS, Iugoslávia, China, Albânia, Romênia etc. (a única exceção, pelo menos por enquanto, é Cuba). Isto revela que os problemas estruturais que golpeavam essas experiências estavam situados além do horizonte de alternativas políticas que surgiam do debate no próprio movimento.

A questão mais crucial para a teoria política marxista é compreender o processo pelo qual, nestas sociedades, um instrumento concebido para servir à luta de emancipação do proletariado – o partido leninista – acabou se transformando no seu contrário: um instrumento gerador e preservador de uma nova casta, dominante e privilegiada, completamente afastada do proletariado e do povo, e absolutamente descompromissada com os desafios mais gerais da transição para uma sociedade sem classes. O desfecho disto no Leste foi uma espécie de "crise geral contra-revolucionária" (por essa Lênin não esperava… ).

A matriz deste processo se encontra no desenvolvimento tomado pelo Estado e o Partido na URSS, sobretudo no período em que era dirigido por Stalin, já que este arranjo serviu de "modelo" para todos os demais componentes da "comunidade socialista". Não pretendo ir a fundo nesta discussão, aqui, por absoluta falta de espaço e tempo (16). As obervações que se seguem não são conclusivas. Devem ser encaradas como hipóteses de orientação de pesquisa.

Como vimos no primeiro artigo desta série, a questão de como organizar um poder de Estado (a ditadura do proletariado), que tem como meta fundamental a sua própria extinção, é algo respondido apenas parcialmente pela teoria marxista, com base na experiência histórica da Comuna de Paris. A teoria leninista introduz um segundo complicador para esta questão – como organizar um Estado socialista tendo como base para o exercício do poder um proletariado ainda profundamente impregnado de valores burgueses ou mesmo pré-capitalistas (e, por isso, não tende espontaneamente para o socialismo, mesmo após o triunfo da revolução socialista). No caso concreto da revolução soviética, estes "dilemas estruturais" do Estado socialista eram agravados por outro – a própria composição social inicial da URSS, de esmagadora maioria pequeno-burguesa (sobretudo camponesa). O proletariado russo, assim, era uma classe inteiramente minoritária na sociedade no momento do triunfo da sua revolução.

“Os órgãos do poder soviético foram esvaziados pela direção do Partido”.

Estas contradições estruturais geravam uma tensão na montagem do Estado de ditadura do proletariado entre a adoção de formas radicais de democracia e de controle do Estado pelo povo trabalhador (com base nas lições da Comuna), de um lado, e o papel dirigente do "partido de vanguarda" (concebido como "portador" da consciência socialista e do futuro do movimento proletário), de outro.

A chave para a resolução desta tensão, com base no pensamento de Lênin, está na política, isto é, na necessidade de o "destacamento organizado da minoria consciente do proletariado" encontrar, em cada fase e momento, as bandeiras capazes de mobilizar o conjunto da classe e demais setores do povo trabalhador no enfrentamento dos desafios estratégicos gerados pela transição socialista. Enfim, o partido proletário-revolucionário tem de continuar disputando a hegemonia política da sociedade e a própria direção do Estado. Fora uma primeira fase do processo revolucionário, onde a questão central do Estado é defender a sobrevivência das conquistas da revolução diante da reação armada da contra-revolução (e, portanto, o Estado proletário é forçado a assumir formas ditatoriais), o centro decisório do Estado socialista tem de se constituir efetivamente nos órgãos de soberania popular (de poder popular – democracia no sentido etimológico). É justamente a ampliação e radicalização da democracia proletária, na concepção de Marx, que serve de base para a progressiva superação do Estado.
O fato, no entanto, é que na totalidade das experiências deste primeiro (e, até aqui, único) ciclo de revoluções socialistas no mundo (que ora se encerra), esta tensão acabou sendo enfrentada de forma burocrática e administrativa. O papel dirigente do partido proletário-revolucionário era concebido de forma apriorística e não-política, evidenciado na sua “proclamação constitucional". Os órgãos do poder soviético ou da democracia popular foram esvaziados e substituídos pelo dirigismo partidário. O desenvolvimento social era marcado por uma super-centralização a partir da cúpula dirigente do Partido. Proliferavam relações sociais baseadas na corrupção, no clientelismo, no favorecimento e nos privilégios do sistema da "nomenclatura partidária". Em vez de uma opção revolucionária, a adesão ao Partido passava a ser o canal para ascensão social individual, atraindo toda espécie de oportunistas e puxa-sacos. Proliferavam as ações de repressão política e ideológica, violando as normas da legalidade do Estado socialista, e gerando um clima de medo e intimidação.

O que fica claro na evolução do Estado nestas primeiras experiências socialistas é que, ao invés de caminhar para a sua extinção com base na ampliação do auto-governo do povo, ele se fechou e centralizou como um órgão cada vez mais destacado da própria sociedade. A teoria política marxista critica a essência do pensamento político liberal revelando que, ao não questionar as bases da divisão da sociedade em classes antagônicas com base na propriedade privada, sua defesa dos princípios da Liberdade e da Igualdade é meramente formal. Mas, hoje, somos forçados a reconhecer que a montagem do poder nas primeiras experiências socialistas também resvalou para uma contradição fundamental entre órgãos meramente formais de poder soviético ou popular e a concentração do exercício real do poder nas mãos do Partido.

Desta forma, relações sociais de degeneração (no sentido de progressivo afastamento dos objetivos iniciais) acabavam envolvendo o Partido-Estado e triunfando sobre a "firmeza" ou "pureza" ideológica do seu núcleo dirigente. Esta montagem do Estado socialista teve a sua eficácia histórica no período do grande esforço de industrialização extensiva da economia. Porém, quando esta se esgota, impondo o desafio de uma nova fase de desenvolvimento intensivo (calcado na elevação da produtividade das empresas já instaladas), esse tipo de Estado se torna um estorvo para o desenvolvimento econômico da sociedade, que entra num processo de estagnação.

“Em certo ponto Gramsci deu um passo atrás na teoria do leninismo”.

Do ponto de vista político, isto gera fatores de crise, pois a fonte de legitimidade deste Partido-Estado altamente centralizado reside na sua capacidade de produzir resultados econômicos superiores aos dos países capitalistas (o que era factível na fase de desenvolvimento extensivo, mas deixa de o ser na fase intensiva). Assim, apesar da preservação de uma gama de conquistas sociais que seriam inconcebíveis no capitalismo, o descontentamento se alastra. Esta insatisfação assume contornos (reais ou potenciais) anti-socialistas, já que se volta diretamente contra o Partido no poder que, em nome do socialismo, centraliza tudo e se responsabiliza por tudo. Assim, a plataforma política do retorno aberto ao capitalismo acaba conquistando a hegemonia política da sociedade.

O fato de não ter gerado respostas teóricas práticas para estas contradições estruturais é um dos componentes centrais da atual crise do marxismo. Considero ter contribuído decisivamente para isto certos "efeitos perversos" (isto é, resultados não previstos nem desejados) da luta contra o revisionismo social-democrata no movimento comunista. No esforço feito para recuperar e resgatar a teoria marxista clássica, surgiram certas tendências dogmáticas que tratavam a teoria marxista como "escrituras sagradas” que continham respostas prontas para tudo. Isto gerou uma certa estagnação teórica, tendo como base um "congelamento conceitual" que não permitiu que a teoria se desenvolvesse no grau necessário para dar respostas socialistas aos novos problemas e desafio, impostos pela vida. Basta dizer que, apesar de passarem por décadas de profundas transformações revolucionárias, não surgiu nenhuma grande obra teórica sobre o Estado nos países do campo socialista. Nenhum esforço foi feito, sequer, para preencher as lacunas que o próprio Marx e Engels reconheciam existir na sua teoria política. Se isto criou problemas profundos e sérios para o movimento como um todo, para os partidos no poder foi fatal, já que não puderam identificar a tempo os novos desafios gerados pelo esgotamento da primeira fase da transição socialista centrada, fundamentalmente, na construção (extensiva) da sua base econômica.

Nos partidos comunistas fora do poder, o desenvolvimento teórico mais original da teoria política marxista foi feito pelo dirigente comunista italiano Antonio Gramsci. Intelectual de grande envergadura, Gramsci procurou situar sua reflexão sobre o Estado no tronco da teoria política marxista plantado por Lênin. Preso pelo regime fascista de 1928 até a sua morte em 1937, produziu uma extensa reflexão política e filosófica nos seus Cadernos do Cárcere. Destes cadernos surgiram diferentes livros de teoria política, entre os quais se destacam Maquiavel, a Política e o Estado Moderno e Os Intelectuais e a Organização da Cultura, já publicados no Brasil. Boa parte do esforço teórico gramsciano se dedica ao desenvolvimento de novas fundamentações para as teorias leninistas, como na sua comparação do "partido de vanguarda" ao "Príncipe Moderno" da unificação nacional italiana. No entanto, naquilo que é tido como a sua grande contribuição à teoria política marxista marxista – a incorporação da noção de hegemonia ao conceito marxista de Estado – a minha opinião é que as formulações de Gramsci dão um passo atrás em relação a Lênin. Vimos anteriormente como a teoria política clássica de Marx e Engels tem como uma das suas grandes conclusões a caracterização do Estado como órgão de dominação de classe, que se baseia, sobretudo na violência e coerção (é o que Cados Nelson Coutinho chama de "conceito restrito de Estado"). Gramsci amplia este conceito de Estado para abarcar, também, os órgãos e funções de direção cultural e ideológica da sociedade, situando neste âmbito a problemática da hegemonia. O Estado moderno, assim, assumiria cada vez mais a forma de um "minotauro", com uma metade composta pela sociedade política (aparelhos coercitivos e repressivos como as forças armadas, prisões etc.) e a outra metade pela sociedade civil (aparelhos "privados" de hegemonia como as escolas, imprensa, partidos, sindicatos etc).

“Órgãos e funções de direção cultural não são elementos do próprio Estado”.

Na verdade, a teoria política marxista clássica não ignora a existência de órgãos e funções formadores de consenso na sua discussão do Estado. O que não significa que estes tenham de ser incorporados no próprio conceito de Estado. Em seu livro Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Engels examina o surgimento do Estado (baseado na violência e na coerção) justamente em função da inviabilização da direção consensual da sociedade pela sua divisão em classes antagônicas irreconciliáveis. É neste sentido que ele afirma que os antigos patriarcas das clãs primitivas (como os caciques das nossas tribos indígenas no Brasil) tinham mil vezes mais autoridade do que as gigantescas máquinas de repressão do Estado moderno, já que sua direção da sociedade se apoiava nos mecanismos da tradição e não da violência. A existência de órgãos e funções de direção da sociedade, portanto, é anterior à própria existência do Estado. O entendimento mais profundo do surgimento deste exige justamente a compreensão dos fatores que impediram que aqueles continuassem produzindo o consenso na sociedade (basicamente, o surgimento da divisão de classes). Igualmente, a proposta marxista de superação do Estado não prevê a extinção dos órgãos e funções de direção da sociedade, e sim dos aparelhos coercitivos e repressivos de origem classista, que se tornam progressivamente desnecessários e supérfluos à medida que se consolida uma nova cultura política baseada na erradicação das diferenças de classe.

Assim, do ponto de vista da teoria política clássica marxista, não há como conceber os órgãos e funções de direção cultural e ideológica da sociedade como elementos constitutivos do Estado. Althusser radicaliza e aprofunda ainda mais esta (in)compreensão gramsciana ao apontar a "simbiose" no poder de Estado de "aparelhos repressivos" e "aparelhos ideológicos" de Estado (17). Assim, para Althusser, as Igrejas, as escolas (mesmo as privadas), as famílias, os diferentes partidos, os sindicatos, a imprensa etc. são todos "aparelhos ideológicos" de Estado. Resta perguntar – e o que fica fora desta caracterização do Estado?

A ampliação gramsciana do conceito marxista de Estado, com a inclusão da dimensão da hegemonia cultural na sociedade, tem duas implicações negativas muito concretas para a orientação teórica das revoluções proletárias:

1. Ela ignora que no terreno da produção de valores e cultura, sobretudo no período de monopolização das sociedades capitalistas, a superioridade da burguesia é completa e, assim, conduz a luta revolucionária do proletariado a um beco sem saída.
2. Ela ignora os dilemas e contradições gerados pelo predomínio de valores culturais burgueses ou pré-capitalistas no proletariado mesmo após o triunfo político da sua revolução e, assim, não ajuda a encontrar respostas para os desafios políticos da transição socialista.

O fato, já indicado por Marx e Engels, é que o proletariado (ou melhor, a sua "minoria consciente") justamente por não deter propriedade, não tem instrumentos ao seu alcance que lhe possibilitem se contrapor globalmente à direção cultural e ideológica da sociedade pela burguesia. A chave para enfrentar isto, tanto em Marx como em Lênin, era a luta na esfera política (onde podia-se gerar uma "crise geral" do Estado burguês, apesar do seu predomínio cultural). A abordagem alternativa a esta era conceber, como Bernstein e os liberais em geral, que as instituições da direção burguesa da sociedade não contêm um "viés" classista e podem ser apropriados pelo proletariado e usados em seu próprio benefício. Esta é, aliás, a abordagem que serve de base para o surgimento do "euro-comunismo", com base nas formulações de Palmiro Togliatti que, já em 1958, afirmava abertamente no seu livro O Caminho Italiano para o Socialismo:

"Marx e Engels, primeiro, e depois Lênin, afirmaram que o aparelho de Estado burguês não pode servir para construir a sociedade socialista. Este aparelho deve ser quebrado e destruído pela classe operária, substituído pelo aparelho do Estado proletário" (18). Essa posição continua plenamente válida hoje? Com efeito, quando nós afirmamos que é possível um caminho de avanço para o socialismo não apenas no terreno democrático, mas também utilizando formas parlamentares, é evidente que corrigimos algo dessa posição, levando em conta as transformações que tiveram e continuam a ter lugar no mundo.

“Poulantzas combate a visão do Estado como instrumento de opressão de classe”.

As formulações teóricas de Poulantzas vão no mesmo sentido ao combater (sobretudo na sua polêmica com Ralph Miliband) a visão do Estado como instrumento de dominação de classe. Segundo a visão desenvolvida por Poulantzas, o Estado, enquanto tal, não teria poder próprio algum – seria um mero "terreno" onde se desenvolve a luta de classes (19). Seria uma "condensação das relações de classe" na sociedade. Parece-me evidente que, levada às suas últimas consequências, esta abordagem leva à não-problematização da natureza do aparelho de Estado e de suas instituições e à impossibilidade de conceber a existência de interesses estatais com relativa autonomia em relação às classes.

A substituição da abordagem política da questão da hegemonia em Lênin por outra essencialmente
cultural e ideológica aproxima Gramsci da tradição de pensamento da chamada Escola de Frankfurt e cria sérios problemas teóricos e práticos para a luta política revolucionária. Ao contrapor as condições para o desenvolvimento do movimento revolucionário, no "Ocidente" e no "Oriente", Gramsci abordava a questão da hegemonia nos seguintes termos para as sociedades ocidentais:

"Um grupo social pode e, aliás, deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental (essa é uma das condições principais para a própria conquista do poder); depois, quando exerce o poder, e mesmo que o conserve firmemente nas suas mãos, torna-se dominante, mas deve continuar a ser também dirigente" (20).

Entendida do ponto de vista político, esta formulação gramsciana é correta e coerente com a teoria leninista. Só que, como sabemos, a discussão da "direção" em Gramsci é essencialmente cultural e ideológica. Nestes termos, a formulação acima restringe, na verdade, o partido proletário-revolucionário a uma atuação reformista sem maiores consequências, já que esbarra no "viés classista" das instituições do Estado e dos principais órgãos de (re)produção ideológica e cultural na sociedade (isto não exclui o reconhecimento teórico e prático da possibilidade de o proletariado e seus aliados explorarem, a seu favor, contradições existentes no âmbito destas instituições e órgãos, mas não gera ilusões de que isto possa vir a alterar o seu caráter de classe). É verdade que o próprio Gramsci nunca chegou a estas conclusões reformistas. Sua atividade como dirigente comunista foi marcada pela sintonia com as posições gerais da direção da Internacional Comunista, inclusive nas grandes polêmicas que sacudiram o movimento na sua época (como, por exemplo, a polêmica contra o "trotskismo"). Mas, essas conclusões estavam contidas, pelo menos "em germe", na sua teoria da "ampliação do Estado".

Assim, o principal esforço teórico de desenvolvimento e inovação da teoria política marxista após Lênin acabou entrando numa "contramão" que não nos ajuda a enfrentar e superar a crise teórica atual do marxismo nesse terreno. Nosso alento, nesta questão, é que os dilemas e contradições surgidos da experiência histórica do socialismo e do capitalismo são passíveis de ser solucionados nos marcos gerais da teoria marxista (mas são insolúveis nos marcos do liberalismo, como vimos no primeiro artigo desta série). Para superar a sua crise atual, surge como "necessidade histórica" para o marxismo o resgate do seu "espírito" dialético, aberto e criador. É nesta base que precisamos conduzir um esforço de reflexão, pesquisa e estudo, não só para cobrir áreas da teoria do Estado deixadas em descoberto por Marx (como o exame mais detido das formas histórico-concretas de articulação do poder de Estado com a dominação de classe), mas sobretudo para aprofundar a compreensão teórica de questões como a crise atual do Estado capitalista e o dilema crucial da institucionalidade democrática no socialismo. Mãos à obra…

Luís Fernandes é professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutorando do Programa de Ciência Política do IUPERJ.

Notas
1. LÊNIN, V. I. "Sobre o Estado", publicado nas suas Obras Escolhidas, Vol. 3, Lisboa, Edições Avante, 1979, p. 177.
2. Como referência para o combate teórico mais recente sobre o conceito leninista do Partido, sugiro a leitura do artigo de Rogério Lustosa, "O Canto de Sereia de um Partido para Todos", publicado na revista Princípios, n. 19, novembro de 1990, São Paulo, Anita Garibaldi.
3. KAUTSKY, K. Neue Zeit, ano XX, vol. I, n. 3, 1901-1902, p. 79.
4. LÊNIN, V. I. "Discurso sobre o Papel do Partido Comunista no II Congresso da Internacional Comunista – 23 de Julho de 1920", publicado na sua coletânea de textos O Trabalho do Partido entre as Massas, São Paulo, Ciências Humanas, 1979, p. 169. Pode-se perguntar – o que seriam, afinal, "operários verdadeiramente conscientes"? Do ponto de vista da teoria marxista, a resposta é que seriam operários conscientes da necessidade histórica de superar o capitalismo através da revolução política do proletariado.
5. MARX, K. e ENGELS, F. "Manifesto do Partido Comunista", publicado nas suas Obras Escolhidas, Vol. 7, São Paulo, Alta-Ômega, s/d, p. 31.
6. Idem, p. 46.
7. Referência ao dirigente revolucionário francês do século XIX, Louis Blanqui, criticado por Marx e Engels por conceber a revolução como consequência de uma conspiração secreta ou de um golpe de Estado.
8. TROTSKY, L. Nossas Tarefas Políticas, citado no livro de Tariq Ali, Trotsky for Beginners, New York, Pantheon Books, 1980, p. 28. Tradução minha (L. F.).
9. LÊNIN, V. I. "Que Fazer?", publicado nas suas Obras Escolhidas, Vol. 7, Lisboa, Edições Avante, 1977, p. 106.
10. Documentos – Os Quatro Primeiros Congressos da Internacional Comunista, Vol. 7, Lisboa, Edições Maria da Fonte, s/d, p 136.
11. LÊNIN, V. I. “La Bancarrota de la II Internacional”, publicado na sua coletânea Contra el Revisionismo, Moscou, Editorial Progresso, s/d, p. 228-29.
12. Na Comuna de Paris, por exemplo, a bandeira da revolução proletária foi simplesmente a defesa militar de Paris. Na revolução soviética foi o lema "Paz, Pão, Terra e Liberdade" que, em si, não tinha nada de socialista. Na China, a revolução popular foi conduzida pela bandeira da independência nacional. Na Albânia e Iugoslávia, pela libertação dos invasores nazi-fascistas. Em Cuba, pela derrubada do regime corrupto de Fulgêncio Batista etc.
13. Uma discussão interessante a respeito pode ser encontrada no artigo de Perry Anderson, "As Antonomias de Antonio Gramsci", publicado na revista Crítica Marxista, n. 1, 1986, SP, Joruês.
14. Idem, p. 19.
15. Faz parte da abordagem dialética e materialista de Marx não julgar os indivíduos, os partidos ou mesmo as sociedades pelo que eles pensam ou afirmam de si mesmos, e sim pela sua prática social.
16. O artigo de João Amazonas, "A Teoria Enriquece na Luta por um Mundo Novo", publicado na revista Princípios, São Paulo, Editora Anita Garibaldi, contém um exame inicial da trajetória de montagem do Estado socialista na URSS com inúmeras observações críticas. A importância destas observações é acrescida pelo fato de terem sido feitas por uma personalidade que desempenhou papel de destaque no movimento comunista no período em questão, tendo, inclusive, residido por dois anos na própria União Soviética.
17. Ver ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos de Estado, RJ, Graal, 1983.
18. TOGLIATTI, P. "La Via Italiana al Socialismo", publicado nas suas Opere Scelte, Roma, Editori Reuniti, 1974, p. 758.
19. Ver, por exemplo, POULANTZAS, N. O Estado, o Poder e o Socialismo, Rio de Janeiro, Graal, 1990.
20. GRAMSCI, A. Quaderni del Carcere, Turim, Einaudi, p. 2010-11. Citado por Carlos Nelson Coutinho no seu livro A Dualidade de Poderes: introdução à teoria marxista de Estado e revolução, São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 66-67.

EDIÇÃO 21, MAI/JUN/JUL, 1991, PÁGINAS 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69