Talvez seja ainda preciso ressalvar que muitos dos exageros e erros presentes na máquina estatal brasileira, apontados no documento da Fiesp, são reais e, mais do que isto, evidentes – empreguismo, desperdícios, ineficiências, gerados pelo tráfico de influências; aspectos, aliás, há muito criticados pelas forças progressistas do país.

Daí, porém, a afirmar que a crise deriva do "esgotamento" do Estado e do modelo de desenvolvimento que, segundo os autores do livro, teria sido impulsionado principalmente no período de JK (quando, na verdade, abriu-se a temporada de investimentos estrangeiros); sofrido um breve interregno nos anos menos dóceis da ditadura militar; e novamente retomado, ainda na ditadura, por Geisel, isto é forçar demais a barra. E não só é pouco convincente, como também não corresponde à realidade histórica.

A crise brasileira da atualidade não pode ser compreendida abstraindo o seu entrelaçamento com a realidade econômica mundial, os graves desequilíbrios da economia americana e, como sua extensão, do sistema financeiro internacional. Dentro disto, está expressa, na parte que nos cabe, a já consagrada crise da dívida externa – que afeta a quase totalidade dos países considerados em desenvolvimento ou subdesenvolvidos ou, melhor dizendo, dependentes, em todo o Globo.

Neste sentido, a crise é carregada de particularidades novas e sequer tem paralelo em nossa história: uma década (a de 1980) de estagnação, transferências colossais de recursos ao exterior, de riquezas subtraídas à poupança (cerca de 40%) e ao consumo, tudo isto refletindo numa queda substancial da taxa de investimento (estimada em mais de 20% do PIB na década de 1970 e em torno de 16% na seguinte) e numa crônica incapacidade de desenvolvimento econômico. São os efeitos da dívida externa.

A literatura sugerindo, e a meu ver evidenciando, tais laços, é vasta. Contudo, se o óbvio contraria interesses, a conveniência recomenda ignorância. O "documento Fiesp", embora mencione, faz vistas grossas acerca deste fator (o fundamental) da crise, quando por exemplo enumera as razões da drástica redução das importações (página 50), no início dos anos 1980 e cala, olimpicamente, sobre o "ajuste interno" determinado pelo FMI com a elementar finalidade de gerar saldos comerciais para pagar juros aos credores externos. Há outras mais vergonhosas omissões na obra a respeito, na "política para a dívida externa" (página 202) o essencial é não contrariar o imperialismo.

Afinal, as propostas da Fiesp, hoje em voga e em aplicação, são no sentido de internacionalizar ainda mais a economia, satisfazendo interesses de credores multinacionais; reduzir as dimensões do Estado privatizando e liquidando estatais, eliminando reservas de mercado, liberalizando…

É inegável que o novo liberalismo ganhou notável força com os acontecimentos no Leste europeu, desencadeados a partir da perestroika de Gorbachev e ainda em curso, mesmo porque nos países daquela região assiste-se inegavelmente a uma crise do Estado, especialmente no campo econômico (dado pela carência de liberdade e democracia). Entretanto, as analogias simplistas que se fazem atualmente atendem mais a razões ideológicas do que científicas. Mesmo porque sequer o Leste europeu esteve (ou está) alheio à crise do sistema financeiro mundial (Romênia, Polônia, Hungria e mesmo URSS são países atolados em dívidas externas e com graves crises nos balanços de pagamento).

Na apresentação da obra, o presidente da Fiesp, Mário Amato, argumenta que no passado os empresários paulistas mostraram "sintonia" com "sua época". Pode ser. Mas na atualidade, o remédio que receitam contempla, entre outras coisas, como o fim do ensino público e gratuito nas universidades (o pretexto é eliminar o elitismo em nossas universidades, como se os miseráveis tivessem maior acesso ao ensino pago no terceiro grau), o retorno à jornada de 48 horas semanais de trabalho (sugerido na página 259) e "progressos" parecidos tendo em vista principalmente a revisão constitucional prevista para 1993.

Em que pesem diferenças, a verdade é que, pela própria procedência, as idéias expostas no livro Livre para crescer constituem o arcabouço da ideologia dominante em nosso país. Vale dizer que são as do poder, com maior força no atual governo, de Fernando Collor (que recentemente desencadeou ampla campanha contra as universidades públicas).

Mais do que argumentos das oposições, os critérios da história já estão expondo as feridas, misérias e falsidades de tal pensamento. A vida, que fala mais alto que os livros, também sugere que esgotou-se um modelo de desenvolvimento econômico – aquele sustentado na dependência econômica. Aprofundá-lo, como propõe a Fiesp e Collor, não será a salvação.

Umberto Martins, jornalista.

EDIÇÃO 20, FEV/MAR/ABR, 1991, PÁGINAS 81