LIBERDADE: DOIS PASSOS À FRENTE – DEZ ATRÁS
"A Liberdade é Questão humana", afirmou Emmanuel Kant (1724-1884). Reflexão que o Homem se atribui desde a antiguidade. Kant entendia a liberdade como pensamento idêntico a si mesmo, imanente ao Homem abstrato, uma idéia a priori.
Hoje, num texto publicado em 1989, o filósofo e sociólogo soviético Piotr Fedossiev "redescobre" esse conceito, uma idéia descolada de realidade do Homem no geral, alheio à História!
Retorna por esse caminho, não só a Kant, mas às idéias do movimento liberal humanista do séc. XVII, superadas pelo humanismo político francês do séc. XVIII, por Hegel e pelo materialismo dialético e histórico de Karl Marx e Friedrich Engels. O autor em questão apresenta "suas idéias" como uma grande novidade teórica.
Hegel e Marx entendem a liberdade como reflexão humana histórica e situada. Cada um com seu método, resgata a concretude (cada qual entendendo-a de uma forma) do pensamento do Homem sobre a liberdade, buscando nos franceses revolucionários a inspiração: "A Liberdade só é alcançada quando se sabe as causas de sua não existência"; "A Liberdade é a consciência da necessidade". A consciência, tanto para um quanto para outro, é História.
Hegel, um racionalista dialético, atribuiu à liberdade uma trajetória absoluta como idéia, mas relativa também como consciência, expressa na racionalidade humana através da História. E, assim, através da História, supera-se sempre como idéia. É desta relação e entendimento que Hegel deriva toda sua filosofia do Direito, explicando o Estado, a sociedade, através da contradição dialética entre indivíduo e coletivo. Contradição esta superada pela elevação do indivíduo ao coletivo.
Marx, materialista dialético, contrapõe-se a Hegel e objetiva esta reflexão, buscando nas bases materiais e econômicas da sociedade humana a raiz de toda idéia e consciência e, portanto, de toda idéia e consciência sobre a liberdade. Desmonta no pensamento hegeliano a Idéia Absoluta. Concretiza o Homem na História, um homem que não existe como Homem no geral, mas como Homem concreto e situado. Desvenda a relação entre Liberdade, Estado e Sociedade. Mostra que a relação Estado e Liberdade, e suas formas específicas de explicitação, reside na sociedade de classe e, como tal, o Estado de classe determina no seu movimento contraditório a contradição da questão da liberdade em cada momento. Explicita e explica a luta de idéias também neste campo, e transforma neste percurso esta reflexão em reflexão situada. O Homem não existe como categoria abstrata, senão como situado e fazendo História, numa sociedade concreta. Só assim, segundo Marx, pode-se compreender a relação coletivo-indivíduo e desvendar o movimento dialético e materialista do pensamento humano. Pensamento que não possui categorias a priori, mas categorias que revelam uma contradição entre o a posteriori e o a priori surgida na História. Marx desenvolve e eleva a um novo patamar o materialismo anterior à sua época e, junto com Engels, polemiza sobre o assunto com Dühring, Feuerbach, Hegel, os liberais, os utópicos etc…
Liberdade não é apenas um conceito. Ela é situada historicamente
Este percurso progressista da compreensão sobre Liberdade, moral e Direito foi elaborado com muito trabalho durante as revoluções burguesas. O conhecimento deu um salto, em primeiro lugar, porque transformou a questão em objeto da filosofia política, relacionando liberdade com igualdade, direito e política; em segundo lugar, porque a retirou do campo da metafísica e mostrou que ela é histórica e situada. Não foi um ganho qualquer. Chegou-se à concepção de que a liberdade, como "pensamento apriorístico" no Homem e, na verdade, tudo que move a consciência, nada mais representa do que a relação entre a experiência Histórica do Homem e suas idéias num processo de tempo e espaço. Nenhuma aspiração humana consciente e sistematizada pode existir quando não ocorra, em nível de vida, a necessidade objetiva de tal reflexão.
A liberdade não existe enquanto "conceito", ela existe enquanto idéia concretizada sempre historicamente. Todo conceito é constituído de conteúdo, e o conteúdo de toda idéia está na vida, na realidade objetiva dos Homens.
Sabemos que hoje esta não é a única posição (como já evidenciamos), assim como não o era na época de Karl Marx, Hobbes, Kant, entre outros. Mas, esta não é exatamente a questão que separa os idealistas dos materialistas na história? A tentativa de resgate de qualquer idéia, ou conceito no abstrato, não foi sempre o objetivo perseguido pelos idealistas? Não seria diferente hoje. Entretanto, mesmo a luta de idéias entre os materialistas e idealistas é situada. Assim, para entendermos hoje algumas destas polêmicas, é preciso que retomemos esta trajetória de luta no momento em que se colocam as bases do pensamento moderno, construído durante as revoluções burguesas na Inglaterra, França e Alemanha, bases estas que muitos hoje afirmam terem sido superadas. Veremos!
Todo pensamento se desenvolve tendo o contraponto como interlocutor. E, numa sociedade de classes, este contraponto ideológico não é destituído do interesse de classes. Ninguém que se coloque hoje como interlocutor duvida de que o feudalismo tenha sido uma sociedade de classes. Alguns duvidam, sim, de que a luta de classes ainda exista hoje.
O contraponto que os primeiros humanistas tiveram no mundo ocidental foi Santo Agostinho (354-430) e sua filosofia política expressa em sua obra A Cidade de Deus, iniciada em 413 e terminada em 426. Nela encontra-se a concepção oficial da sociedade feudal, do Homem, da Política, da organização e da liberdade.
Na obra A Cidade de Deus aparece o homem abstrato, a-histórico. A única história que determina a justiça, a vida em sociedade, a liberdade humana, está em Deus, na criação e na negação, pelo homem, da lei de Deus, no pecado original. A liberdade humana é contraditória, pois, ao negar a ordem divina, determina uma vida onde a liberdade de fato é limitada e nunca alcançada plenamente na cidade profana dos Homens – a sociedade.
O Homem depende do criador e, na sua vida, persiste a tensão que existe entre esta realidade e a recusa da humanidade em aceitá-la. Desta tensão detectada, Santo Agostinho retira suas conclusões sobre a natureza humana, a sociedade e a política.
O homem, com a queda de Adão, tornou-se arrogante, usando de seu livre-arbítrio contra a vontade de Deus. Liberdade absurda, portanto. Mas, ao mesmo tempo contraditória, já que a alma passa a ter liberdade própria para agir perversamente. A confusão criada pelo pecado original transmitiu-se geneticamente através dos tempos.
Santo Agostinho imagina a política como decorrência do pecado original
Para esta ideologia, as coisas terrenas são, na essência, boas, assim como o são os desejos que levam o homem ao gozo delas. O mal é apenas a ausência do bem apropriado, não tem existência própria.
"A cobiça (…) não é falta atribuída ao ouro; a falta é do homem que tem ganância de ouro e por ele abandona a justiça que devia ter seu lugar acima de qualquer comparação com o ouro (…)
O orgulho não é algo errado naquele que ama o poder, ou no próprio poder. A falta está na alma, a qual doentiamente ama seu próprio poder, e não se compadeceu da justiça do onipotente" (1).
Nenhuma sociedade humana é capaz de satisfazer o homem. E nenhuma organização política. Nenhum homem através da peregrinação na sociedade humana (na cidade dos homens), terrena, terá felicidade.
Sobre a política, Santo Agostinho constata: "a dominação política é um estado de coisas que não é natural" (2). Para ele, trata-se de uma instituição necessária à manutenção da ordem na sociedade, mas existe somente devido à mente perturbada dos homens. É, então, consequência do pecado original, um castigo para o homem.
"A cidade mundana tem por objetivo o domínio (…) é dominada pela própria ânsia incontida de dominação" (3).
A ordem original de Deus tem sido rejeitada livremente pela vontade dos homens. No entanto, e para aumentar os outros inconvenientes que o esperam em sua peregrinação através da vida, existe ainda a coerção.
Embora o homem permaneça naturalmente sociável, sua capacidade natural para a convivência harmoniosa se acha viciada pelo pecado.
"A raça humana é, mais do que qualquer outra espécie, a um só tempo sociável por natureza e combativa por perversão" (4).
Porém, para Santo Agostinho, o despotismo não é o seu objetivo. A política possui outro papel. E, assim como a propensão do homem para o conflito reduz-lhe a capacidade de conviver em sociedade, também lhe fornece os meios de combater tais conflitos e prover um mínimo de ordem. Portanto, é o gosto pela dominação que o homem possui que dá origem a estruturas políticas impostas à sociedade e, através delas, o próprio homem assegura a existência de uma paz precária.
Quanto à justiça contida nas leis e nas organizações políticas, Santo Agostinho conclui ser ocioso buscar justiça ou plenitude na ordem, que é temporária, das cidades e dos reinos. Qualquer forma de paz de que se possa gozar neste mundo "é tal que só nos permite lenitivo passageiro para a miséria em que vivemos e nunca a alegria de bem-aventurança" (5).
Apesar de negar a justiça neste mundo, A Cidade de Deus prega a obediência a leis, isto porque neste mundo, onde tudo varia, o máximo que se pode esperar é o arremedo de justiça. No meio de tanta perversidade, contudo, até mesmo um arremedo de justiça é bem recebido pelos filhos iluminados. E como é do domínio político preocupar-se com um mínimo de ordem necessária à sustentação da vida – isto é, as exigências externas do corpo – o comportamento do homem deve ser de respeito à ordem.
Esta era, em muito rápidas palavras, a concepção oficial feudal. É a partir dela que aparece o contraponto humanista.
Mas o que ela contém que é rejeitado na época e muitos séculos depois? O centro teológico, onde o homem é mero argumento, por natureza ruim e, por pecado, determinado a penar, impossibilitado de promover alteração social; e a sociedade humana, uma peregrinação de uma homem que rompeu a ordem de Deus.
Os Humanistas se levantam contra isso, nem todos mais otimistas a respeito da natureza humana, nem todos com uma visão de sociedade mais avançada, atingindo-a como categoria além da somatória de indivíduos egoístas. Mas todos colocando o homem no centro da sociedade, todos acreditando que a ação individual poderia mudar a vida coletiva, a organização política. O resgate da justiça e da liberdade aparece agora colocando como objeto do pensamento e da ação humana a própria sociedade. Avizinham-se as transformações sociais que colocariam fim ao feudalismo.
Thomas Hobbes em 1652 teorizava sobre as "modernidades" agora anunciadas
A transição está em Thomas Hobbes (1588-1679), principalmente em sua obra Leviatã (1651). Hobbes, durante seus 91 anos, viveu numa época de lutas e suas obras de filosofia política sintetizam este momento.
Enquanto a consequência da argumentação d'A Cidade de Deus é uma vida política estática e perene, em Hobbes, apesar do Absolutismo como proposta de forma política social, o Homem, apesar da natureza egoísta, aprimora a vida política exatamente por isso, porque sua natureza individualista precisa ser suprida socialmente. Condição que Hobbes não questiona.
Sua visão de homem é pessimista não moralista. Ele partilha da posição de Aquino com relação à incoerência humana e auto-estima do próprio ser, mas não emite julgamento a respeito disso. Para ele, o homem é produto da natureza, feito à sua feição. E não um ser que o pecado afligiu. O homem é dominado por dois tipos principais de ambições ou ansiedades: "apetite ou desejo" e "aversão". As coisas em direção das quais o ser humano se move são desejadas, aquelas de que se afasta lhe são repugnantes. Estes apetites e aversões estão constantemente mudando, não só de uma pessoa a outra, mas no interior de uma mesma pessoa.
Estes desejos e aversões mutáveis não retiram em Hobbes a necessidade de um poder comum destinado a manter a ordem. Porque ele se pergunta, entre tantos desejos e temores, quais deles são concernentes à paz e à obediência a uma poder comum, e quais levam o homem a fazer o contrário. O que torna a condição natural da humanidade perigosa, para Hobbes, não é a procura da felicidade, ou a fuga da miséria como tal, mas o fato de essa procura ou essa fuga se processar, em decorrência, com outros indivíduos. O perigo resulta, segundo Hobbes, de os homens serem, na verdade, quase iguais uns aos outros. E quanto às qualidades intelectuais, a maioria deles nasce com a mesma capacidade, além das que podem ser adquiridas durante a vida. Na competição, os homens se apresentam quase como iguais, o que leva cada um a buscar sua própria maneira de agir. Hobbes encontra, então, três razões que fazem os homens em sociedade utilizar os meios chamados por ele de causas de conflito na natureza humana. A primeira é a competição; a segunda, a desconfiança; e a terceira, a glória.
Se deixados, então, ao próprio destino, sem um poder comum que os mantenha "amedrontados", os homens permaneceriam num estado de guerra.
A conclusão a que Hobbes nos conduz é de que cada indivíduo deveria abrir-mão de seus direitos sobre todas as coisas e reclamar para si apenas aquela parcela de liberdade que está disposto a ceder a qualquer um, para que, livremente com os demais, dispute o que sua natureza humana em sociedade exige.
A única maneira de garantir a segurança coletiva consiste na união de muitos numa só vontade, mediante a conclusão de um contrato, que transfira todo poder a um soberano.
A visão absolutista de Hobbes aparece aqui ultrapassando os limites da forma de poder que ele alimenta. Encontra-se também aqui o esteio da concepção de John Locke (1632-1704). É a visão liberal burguesa que, colocando o homem como centro e preocupada com a vida do indivíduo em sociedade, procura regulamentá-la sobre novas bases sociais, onde a concorrência e liberdade para tal são preâmbulo sine qua non à igualdade de condições. Locke e outros pensadores da época, como Descartes e Rousseau, advertem que as diferenças entre os homens não estão na sua natureza, estão na possibilidade que a sociedade lhes dá de exercê-la. É preciso uma sociedade constituída com leis e poder capazes de garantir que a natureza humana da competição, do egoísmo individual se instaure, criando-se igualdade de condições garantida pela ordem que o próprio homem cria.
Locke avança, neste sentido, frente a Hobbes que, apesar de também considerar a razão humana produto de sensações, ainda fala de uma natureza humana a priori. Em seu trabalho Ensaio acerca do entendimento humano, Locke coloca que nenhum princípio ou idéias que o homem possui são inatos. A mente humana é naturalmente "papel em branco, destituído de quaisquer caracteres, sem quaisquer idéias e que toda razão e conhecimento provêm da experiência" (6).
Cada um deve reclamar apenas a liberdade que se dispõe a ceder aos outros
Para ele, todas idéias do Homem sobre a sociedade são baseadas na impressão sensorial ou na reflexão sobre a experiência anterior. Um dos seus principais argumentos contra as idéias inatas se estriba na variabilidade dos costumes humanos de uma sociedade a outra. Expressa a diferença que existe entre as concepções cristã, hobbesiana e clássica da obrigação moral.
"Que os indivíduos mantenham seus pactos é, sem dúvida, uma importante e inegável regra de moralidade. Mas, no entanto, se um cristão, que tem a percepção da felicidade e da miséria numa outra vida, for perguntado por que o indivíduo deve manter sua palavra, dará como razão o seguinte: Porque Deus, que possui o poder da vida eterna e da morte, assim exige de nós. Mas, se perguntarmos a um hobbista o porquê, ele responderá: Porque o público assim exige, e o Leviatã o castigará se você não proceder assim. E se a uns dos antigos filósofos se fizesse a mesma pergunta, ele responderia: “Porque agir de outra maneira seria desonesto, abaixo da dignidade do homem, e oposto à virtude, a mais alta perfeição da natureza humana" (7).
Para Hobbes, o contrato social era explicitado da seguinte maneira: "Uma comunidade fica instituída quando uma multidão de pessoas acorda e pactua entre si que, a qualquer que seja a pessoa, ou assembléia de homens, é dado, por maioria e o direito de representar a pessoa deles todos. Para ter seus representantes, cada um, tanto aquele que votou a favor, como aquele que votou contra, autorizará todas as ações e julgamentos do dito homem, ou assembléia de homens, da mesma maneira como se cada um tivesse agido por si próprio até o fim, para viver pacificamente entre todos e ser protegido contra outros Homens" (8). Para Locke, o governo deveria ser regulamentado não só em nível da sociedade civil, mas através da sociedade política. É uma relação não só entre súditos e soberanos, mas entre homens livres que, em maioria, escolhem não só a convivência social, mas a própria forma de governo – transformando o contrato social de Hobbes numa defesa do governo constitucional limitado. Aí encontra-se a concepção da democracia burguesa.
O pensamento liberal influenciou e foi desenvolvido na formação do regime norte-americano a partir da própria redação de Thomas Jefferson da Declaração da Independência.
Também na Revolução Francesa, este modo de pensar foi aperfeiçoado. Na luta política, os franceses revolucionários colocam em estudo a sociedade, passível de causas e efeitos, como ocorre na natureza. Encontrando estas causas, o homem é capaz de agir sobre elas, racionalmente, transformando, na prática, as relações sociais.
Friedrich Hegel (1770-1831) busca em sua filosofia, tanto do método como do direito, inspiração nesta concepção do racionalismo revolucionário. Seu avanço encontra-se não só na negação de toda a realidade ou pensamento idênticos a si mesmos, como, por decorrência, em sua filosofia do direito, de todo estado idêntico a si mesmo.
Hegel, em sua filosofia do direito, nos dá uma contribuição inigualável ao explicitar a relação indivíduo e coletivo, expressa no Estado. Segundo ele, o indivíduo sozinho não atinge jamais a universalidade. Para tal, contraditoriamente, está no coletivo esta possibilidade, e esta se efetiva através do Estado, universalização do indivíduo, porque expressa sempre transitoriamente a idéia racional de liberdade.
É pela contradição entre racional e real que a necessidade se efetiva na História, necessidade esta sempre determinada pelo movimento racional na História. Porque o que existe pode não ser mais real, na medida em que o real é sempre racional. E o que existe pode ser, apesar de existir, tão irracional que a nova racionalidade humana já contenha o novo real que ainda não existe, mas é necessário e existirá na história. A ação humana na história, mudando a realidade, é produto deste movimento.
Todas as idéias do homem são reflexões sobre suas experiências
Hegel quebra a concepção individualista dominante até então. A sociedade não é a somatória de indivíduos, mas a unidade dialética entre indivíduo e coletivo. Assim como também a natureza humana não existe individualmente, mas é expressão coletiva da racionalidade na História.
A sociedade não pode ser menosprezada. O homem vive em sociedade exatamente por ser indivíduo que não existe enquanto tal no isolamento, mas sempre em relação a outros indivíduos. Sua concepção de Estado supera as concepções liberais porque, na sua visão, o indivíduo era um veículo inadequado para a realização do espírito e seu Estado deveria consistir de uma ordem estruturada organicamente e integrada. Não de um "amontoado" de indivíduos isolados, mas sim de um sistema de integração social, pelo qual os indivíduos teriam a percepção e se reconheceriam como espírito.
Em contraposição ao ideal liberal de uma ordem política que permitisse ao homem desenvolver seus talentos e perseguir seus legítimos interesses, Hegel sustentava que era necessário suplementar um tal domínio (a sociedade civil) com um outro Estado, no qual o indivíduo tivesse a percepção e reconhecesse o que era universal. Um Estado "de liberdade concreta" em que a autonomia individual se tornaria liberdade concreta.
É sobre estes alicerces, construídos pelos liberais humanistas burgueses, pelas concepções utópicas de socialistas franceses e pela economia clássica que Karl Marx (1818-1883) desenvolverá sua teoria.
Marx supera a visão liberal burguesa na crítica radical ao núcleo desse pensamento, tanto na filosofia política como na economia política e nas ciências sociais. Ele retira do campo abstrato a reflexão sobre o homem, mostrando que não existe homem enquanto categoria, mas homem concreto, histórico, que estabelece relações sociais determinadas na produção e reprodução de seus meios de existência. Demonstra que a base da sociedade encontra-se determinada por estas relações sociais e econômicas, independente da vontade e consciência humanas. Revela que, numa sociedade onde exista a propriedade privada dos meios de produção, a humanidade, tão proclamada no abstrato, divide-se em classes sociais. E a luta que estas classes estabelecem na economia, na política e no campo das idéias e concepções é o que move a sociedade.
No campo da liberdade e igualdade no capitalismo, Marx e Engels evidenciam que a desigualdade e a liberdade restrita encontram-se calcadas no próprio modo de produção, na reprodução do capital, nas relações de produção capitalistas, de onde advêm as classes (no capitalismo) e seus interesses econômicos e sociais antagônicos.
A teoria marxista critica a igualdade e liberdade burguesas e evidencia o Estado como produto da sociedade de classes, resultados da desigualdade. Retira, portanto, a ilusão do Estado na sociedade acima do "egoísmo humano", como regulador da "natureza humana". Nega essas características da natureza humana como constitutivas do próprio homem e demonstra que tais qualidades só existem situadas historicamente. Negar este avanço no campo do conhecimento em geral, e no campo do estudo científico da sociedade é, inevitavelmente, voltar ao passado.
Valores universais e inquietação humana são pilares da dita "nova” filosofia
A crise atual do socialismo em nível internacional obriga que se estude a experiência concreta do proletariado na sua trajetória de luta e aplicação da teoria marxista na construção da nova sociedade. E que, deste estudo, se aprofunde o entendimento da sociedade e suas leis. Mas isto não significa voltar a proclamar o humanismo abstrato burguês. Ir para este campo não é solucionar o impasse; mas fortalecê-lo ainda mais. Desde que o capitalismo existe, e muito antes, desde o surgimento da luta de classes, a negação das idéias e concepções revolucionárias é tarefa incansável da reação.
A idéia e a consciência interferem na história concreta da sociedade. Por isto a luta ideológica é campo privilegiado da luta de classes.
Mas, para infelicidade das classes que caducam, e de seus teóricos, as idéias não têm autonomia absoluta. Se tivessem, os utópicos socialistas teriam razão, a Igreja e a sua visão de mundo medieval também e, qualquer físico que resolvesse negar o entendimento que hoje se tem da física teria sucesso. Tudo que se escrevesse ou dissesse sobre a realidade seria fato. E ela se acomodaria segundo nossa vontade. E o Estado, sob o domínio da burguesia, seria o exemplo da igualdade e liberdade.
Apesar disto, aparecem tentativas de apresentar a volta ao humanismo abstrato como um "novo" avanço na compreensão da liberdade. Sob o título "Humanismo Socialista: aspectos atuais” Piotr Fedossiev, filósofo soviético, escreveu, em 1989, um artigo publicado na revista trimestral da Academia de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Moscou (a principal publicação nesta área). O autor inicia constatando: "Há mais de dois milênios a filosofia proclamou uma verdade transcendental: o Homem é a medida de todas as coisas. Hoje em dia espera-se que a filosofia dê uma medida do próprio Homem, critério da sua conduta e posição social, do seu lugar no mundo, da sua responsabilidade pelos destinos da civilização, pelo progresso social e pela humanização das relações sociais".
Afirma: "Desde o Plenário do CC do PCUS de 1985 e o XXVII Congresso do nosso partido, a atenção do homem nos ideais e valores tem sido uma norma sine qua non da política do Partido e do Estado Soviético, tanto nos assuntos internos, como na esfera das relações internacionais. Está a se operar uma brusca viragem para a esfera social, especialmente importante para o Homem e para a ampliação da democracia e transparência como formas da sua participação ativa na gestão de todos os aspectos da vida social" (10).
Declara retomar a concepção marxista, afirmando: "não há dúvidas de que apesar de todas as mudanças do desenvolvimento histórico, o humanismo e o indivíduo continuam a ser o princípio básico. O humanismo enquanto sistema de concepções e correntes mais ou menos largo do pensamento social surgiu na Europa, na época do Renascimento. O Marxismo absorveu os cumes do pensamento humanista do passado, tendo rejeitado, contudo, as interpretações abstratas, extra-históricas da natureza humana, e tendo dado início a uma nova etapa de desenvolvimento das idéias do humanismo. O marxismo, ao relacionar estas idéias com a teoria científica do desenvolvimento social, determinou as vias reais da materialização dos ideais humanistas" (11).
O homem não existe isolado e sim vivendo sempre em coletividade
Ele compreende o humanismo como corrente situada historicamente, pelo menos em um de seus aspectos, que é a preocupação com o homem e sua vida social. Mas, nem este elemento pode ser separado das concepções liberais ou marxistas que, pelo antagonismo que expressam, consideram esta relação e o próprio homem de forma completamente oposta.
Fedossiev não considera isso e lida com o marxismo de forma confusa: "De acordo com a tradição humanista – escreve ele –, o humanismo real proclama o homem como a principal riqueza da sociedade. O que será a riqueza – disse Marx – a não ser a manifestação absoluta das potencialidades criativas do homem, sem nenhum pressuposto à exceção do desenvolvimento histórico anterior que transforma em objetivo em si esta integridade do desenvolvimento, ou seja, o desenvolvimento de todas as forças humanas como tais, sem que sejam medidas segundo um padrão pré-estabelecido?
O caráter abstrato, individualista e elitista dos antigos especuladores humanistas relega-se ao passado em virtude da fundamentação da importância básica da relação social dos homens e da compreensão da essência humana como conjunto de relações sociais" (12).
Marx ultrapassa o humanismo não por ter falado em abstrato, como o professor moscovita, das relações sociais. Mas porque explicou e concretizou as relações sociais de produção na história, concretizando o próprio homem – e não o indivíduo como categoria social, porque isto já fazia Hegel, ao explicitar que a sociedade não era a mera somatória de indivíduos. Ao falar sobre a Perestroika e seu objetivo "humanista", Piotr Fedossiev afirma: "A Perestroika é a renovação da vida social desencadeada por iniciativa do partido, marca o estabelecimento da riqueza teórica da concepção do humanismo socialista e a rotura decisiva com tudo que deturpava e deformava as idéias do humanismo na vida real da sociedade socialista" (13). "O essencial na Perestroika é a construção de uma sociedade no centro da qual sempre está o homem, os seus interesses vitais e as formas humanas de comunicação" (14).
"É a renovação que, em particular, pressupõe a realização daquelas corretas palavras-de-ordem e apelos que antigamente não eram mais que oratória".
Com o apelo "Tudo em prol do homem, para o bem do homem” (15), de que homem fala o autor em questão?
Mais adiante ele esclarece: "O ideal de homem avançado e desenvolvido pelo humanismo real baseia-se na interpretação científica da sua essência como um conjunto de relações sociais de novo tipo, inerentes ao novo tipo de civilização. Donde está claro que a aplicação consequente dos princípios do humanismo real só é possível com base na solução de todos os outros problemas que vão surgindo perante o Homem, sobretudo de ordem econômica, em ligação direta com a superação da desigualdade social e com a afirmação consequente e em toda parte de princípios e justiça social" (16).
"A realização da justiça é a condição indispensável da unidade de todas as camadas e grupos de trabalhadores, das pessoas de todas as nacionalidades; da estabilidade política do sistema socialista; de seu progresso desimpedido e acelerado.
A violação dos princípios e exigências da justiça social afeta tanto a eficácia de diversos processos e relações sociais como o clima espiritual e moral da sociedade socialista em geral" (17).
"O humanismo é, antes de mais nada, o conjunto de traços humanos do indivíduo, os quais se objetivam não tanto nas estruturas materiais e sociais, mas antes no próprio homem, nas relações entre homens, no seu modo de vida, nos seus esteios morais, na atitude para com o mundo, a natureza, a sociedade" (18).
Piotr Fedossiev "descobre” o século XVII e restaura o humanismo abstrato
Ler este texto e reler Hobbes, em 1652, é extremamente interessante. Se esquecermos as épocas em que viveram os dois autores temos a impressão de que são contemporâneos. A "justiça social" regula a vida de indivíduos na sociedade. Indivíduos portadores de impulsos que necessitam de uma justiça reguladora, para acomodar suas vidas no coletivo. A "igualdade" para os homens está na justiça reguladora.
Onde ficam as relações sociais, que não existem no geral (a não ser como categoria teórica), mas, na realidade, como relações de produção, das quais derivam as classes e os interesses sociais antagônicos?
A isto, nosso filósofo responde: "Durante muito tempo o universal considerou-se como resultado final da luta da classe operária que, ao libertar-se a si própria, liberta toda a humanidade dos antagonismos de classe. Mas, agora, à luz da possibilidade de extermínio do gênero humano numa guerra termonuclear, apareceu um limite natural à confrontação das classes na área mundial, que é o risco da destruição total. E, pela primeira vez, o interesse da humanidade no geral tornou-se verdadeiramente real e não especulativo" (grifos nossos) (19).
Primeiro, não considera mais a noção de "humanidade geral" como especulativa. O perigo de extermínio provocado pela ameaça de guerra retém a tese da violência como imanente ao homem, pois inexplicavelmente a guerra se avizinha, sem qualquer relação com a luta de classes. E mais, a humanidade provoca a guerra e, em seguida, une-se no abstrato para impedi-la!
A humanidade no geral (como o conceito apriorístico dos liberais humanistas) só se tornou categoria real, vejam só, devido à guerra, que surgiu como fruto da própria humanidade, como conceito apriorístico. Provavelmente do egoísmo humano, como afirma Hobbes, ou quem sabe, até pelo pecado original, como afirmava Santo Agostinho.
As relações sociais entram aqui, pelo que parece, apenas como um termo necessário para não se repetir simplesmente o que foi escrito no século XVII. A contestação de tal concepção encontra-se já em Engels: "Em toda a teoria da violência, aceitamos a premissa de que, até hoje, todas as formas de sociedade tiveram de fazer uso da violência, a qual, em sua forma organizada, se denomina Estado. (…) As diferentes formas de organização social e política devem, portanto, ser explicadas, não pela maneira como exercem a violência, que permanece sempre a mesma, mas sobre quem recai a violência, aquilo que é usurpado: os produtos e as forças produtivas de cada época e a estrutura originária desses produtos e dessas forças produtivas" (20).
Como se ninguém tivesse percebido, o autor em questão prossegue: "Os dirigentes soviéticos, em luta pela prevenção da catástrofe nuclear, pelo salvamento da civilização e da própria vida na Terra, pelo progresso e bem-estar de todos os povos, apóiam-se sobre a tese humanista da prioridade dos valores universais sobre todos os outros" (grifo nosso) (21).
Voltamos, portanto, aos valores universais, próprios de todo o idealismo filosófico do período moderno, tão debatido e completamente ultrapassado pelo marxismo. "Somos testemunhas oculares do modo como toma forma a nova abordagem dos problemas globais que corresponde aos interesses de todos os povos, da comunidade internacional no geral" – acrescenta o professor. E cria uma nova categoria extremamente interessante, nunca antes pensada na história do humanismo. "Consciente de que a civilização terrestre entrou numa nova e crítica etapa de sua evolução, o mundo socialista apela a todos os povos, a todos os Estados” (22).
Esquece de vez as tão faladas relações sociais e chega ao descalabro de abstrair tanto a realidade, que ela se perde e vira somente conceito: "A civilização terrestre", confundida de modo proposital, com povo e Estado.
E, amarrando sua concepção que se autodenomina avançada e renovada, o autor conclui: "Assim, na interpretação atual do humanismo, um elemento importante é a conscientização do crescente significado do Humano no geral, das novas pautas e dos novos aspectos das relações entre o humano universal e o de classe.
Dando prioridade aos valores universais e defendendo um mundo sem violência, os marxistas (vejam só) não renunciam à abordagem de classe nos processos sociais. Mas como, em que formas e através de que mecanismos se realiza a interação do universal e de classe? De fato, as elaborações teóricas profundas desta problemática encontram-se numa fase inicial e as investigações enfrentam vastos horizontes por explorar" (23).
Ou seja, a problemática atual, a ser abordada neste momento, é a separação presente na concepção liberal humanista burguesa, refutada pela vida e, desde o século passado, pela concepção materialista dialética e histórica de Karl Marx. Ao estudar a sociedade constituída de relações sociais de produção determinadas, o marxismo destruiu exatamente as concepções universais apriorísticas sobre o homem e a humanidade, assim como evidenciou os "valores universais", vazios de consistência social. Este foi precisamente o salto de qualidade dado pelo marxismo na história do conhecimento humano.
O que vão estudar os sociólogos soviéticos? Novamente Hobbes, Locke e seu humanismo abstrato? Se é isto, é bom que o façam logo, para novamente encontrarem Marx e as "relações sociais". Se eles não o fizerem rapidamente, talvez estejam hoje também interpretando a luta dos "indivíduos" na URSS contra o governo de Gorbachev e em todo o Leste europeu como advindas da "inquietação humana" e, quem sabe, exigem estudo aprofundado de Hobbes e o seu contrato social!
Madalena Guasco Peixoto é professora de filosofia da PUC-SP; mestranda em filosofia da educação, PUC-SP; e diretora do Instituto Maurício Grabois.
Notas
(1) Os textos usados são de Santo Agostinho, Conceming the city of God against Pagans, tradução de H. Bettenson, Penguim, 1972, in Pensadores políticos comparados, org. Ross Fitzgerald. “Santo Agostinho e Thomas Hobbes”, por Daniel Grace, Editora da Universidade de Brasília, 1980, p. 63.
(2) Ibid, p. 63.
(3) Ibid, p. 65, 66.
(4) Ibid, p. 66.
(5) Ibid: p. 68.
(6) LOCKE, John. "Ensaios acerca do entendimento humano”, in Pensadores políticos comparados, org. Ross Fitzgerald, Editora da Universidade de Brasília, 1980, p. 80.
(7) Ibid, p. 82.
(8) HOBBES, Thomas. Leviathan, M Oakeshett, Oxford, sem data, in Pensadores políticos comparados, org. Ross Fitzgerald, Editora da Universidade de Brasília, 1980, p. 68.
(9) Revista da Academia de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Moscou – n° 1, 1989, FEDOSSIEV, Piotr. "Humanismo Socialista. Aspectos Atuais”, p. 8.
(10) Ibid, p. 8.
(11) Ibid, p. 10.
(12) Ibid, p. 15.
(13) Ibid, p. 16.
(14) Ibid, p. 17.
(15) Ibid, p. 19.
(16) Ibid, p. 21.
(17) Ibid, p. 22.
(18) Ibid, p. 23.
(19) Ibid.
(20) ENGELS, F. Anti-Dühring, 2ª ed.,Paz e Terra, SP, 1979, p. 148.
(21) Revista da Academia de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Moscou – n° 1, 1989, FEDOSSIEV, Piotr. "Humanismo Socialista. Aspectos Atuais", p. 25.
(22) Ibid, p. 25.
(23) Ibid.
Bibliografia
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EDIÇÃO 19, NOVEMBRO, 1990, PÁGINAS 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39