A (des)qualificação através da automação
Pensar as disciplinas que compõem o currículo escolar é procurar compreendê-las enquanto a soma dos conhecimentos elaborados e sistematizados pelo homem ao longo de sua história. No entanto, sabemos que, na realidade, a escola não tem conseguido acompanhar "pari passu" o desenvolvimento da ciência; poderíamos considerar que a escola ainda está muito voltada para o passado, desconsiderando o presente enquanto objeto de conhecimento. Neste sentido, ao não sistematizar a realidade atual, o currículo não expressa de fato a vida na fábrica, as constantes inovações tecnológicas, as mudanças na organização do trabalho, enfim as alterações do processo de produção.
Em uma escola em que estudam centenas de alunos-trabalhadores, é imprescindível que conste do currículo a discussão sobre os avanços tecnológicos, situando e acompanhando as novas características do trabalho no interior da produção. Trocar informações sobre o processo de automação da fábrica, trazer o debate para dentro da sala-de-aula é uma condição fundamental para a atualização permanente do ensino técnico industrial, para o redimensionamento da educação dos trabalhadores.
Escolhemos "Automação e Movimento Operário" como tema central do Seminário promovido pelo Colégio Metalúrgico***, uma vez que, a cada dia mais os trabalhadores se defrontam com o surgimento ininterrupto de novas tecnologias em seus locais de trabalho. Este é um assunto polêmico e de interesse não só para o operariado metalúrgico, como também para os bancários, metroviários, eletricitários, educadores. Isto porque a automação traz em seu bojo uma nova organização de trabalho; requer uma nova qualificação profissional, como também uma nova organização dos trabalhadores.
O Seminário não foi um evento com fim em si mesmo, sua preparação se deu no cotidiano da sala-de-aula, onde os conteúdos das disciplinas técnicas ganharam então uma nova dimensão política. Professores e operários-estudantes não só deram início ao debate, como também elaboraram trabalhos e murais sobre o tema. De 24 a 28 de outubro, as discussões se intensificaram. Filmes, debates, palestras contribuíram para que aprofundássemos as questões técnicas – de automação, suas implicações na organização do trabalho, como também suas implicações sociais, políticas e econômicas na vida da classe operária.
Todos preocupados com o controle do capital sobre os trabalhadores
Existe ainda uma certa magia em relação ao avanço da tecnologia; quando falamos em automação relacionamos a palavra diretamente a robôs, computadores e máquinas operatrizes de comando numérico. O mito da fábrica sem operários, controlada por super robôs tem assustado muita gente. Talvez os operários-estudantes compreendam melhor que nós, educadores, o significado das novas tecnologias. Se não compreendem claramente, sentem na pele os seus efeitos. A partir do cotidiano no processo produtivo que permite acompanhar sua lenta e, às vezes, brusca evolução, transferem e ampliam as consequências da automação para um universo mais amplo, que extrapola o interior da fábrica.
Numa poesia, um operário-estudante compara o processo de automação da produção ao corre-corre da vida moderna:
"SER OU NÃO SER, EIS A AUTOMAÇÃO!
Procuramos, buscamos uma solução
Para a pressa ou agitação.
Será automação?
Falamos rápido
Conscientizados que na sociedade Vertem ordem e organização.
Talvez lá no fundo
Um clamor de sentimentos há muito esquecido
Magoados ou entristecidos
Pelo fato de termos omitido
Uma coisa bem simples
Uma boa conversa
Sem o ritmo acelerado e não coordenado
Pelo fantasma da automação.
Só se fala abreviando
Só se ouve falando.
Tanto é a pressa que nem pressentimos
Que lá no fundo
Lá no inconsciente
A automação se faz presente.
E nos grupos surgem seus dialetos,
Metáforas ou gírias,
Mais nada foge da simplificação
Que nos trouxe a automação.
Não só nas fábricas
Que vivenciamos essa evolução
Do computador de nova geração.
Na nossa casa ao ligar o rádio
Podemos perceber um ritmo Alucinante e embriagante
Que tem uma parcela na ocupação
E na aplicação da automação
Sou eu sonho de tua esperança
Tua febre que nunca descansa
O delírio que há de te
automatizar".
(Operador de torno por comando numérico da CBV).
Para o operário, a agitação, o ritmo alucinado da música, a falta de diálogo e regras sociais, o desencontro das pessoas… fariam parte do processo maior de automação, onde o homem torna-se uma máquina que simplifica suas emoções. É como se a vida incorporasse o ritmo acelerado e contínuo das máquinas. O saldo bancário é fornecido em frações de segundos, vídeos games, telefones sem fio, secretárias eletrônicas… Num simples aperto de botões, a informatização do mundo. Um futuro (ou presente) assustador, que realmente nos faz pensar: "Será automação?".
Mas não é possível situar a discussão sobre o processo de automação de produção apenas em sensações, é preciso tentar compreender a realidade dos fatos, compreender os movimentos da organização do trabalho no modo de produção capitalista. Neste sentido, o Seminário "Automação e Movimento Operário", contribuiu para que professores e operário-estudantes aprofundassem em algumas questões como:
– O processo de automação contribui para aumentar o desemprego?
– A introdução de novas tecnologias elimina os trabalhos repetitivos e monótonos?
– Por que não automatizar todas as atividades insalubres e perigosas?
– Dos processos automáticos decorrem novos tipos de doenças e acidentes de trabalho?
– A automação representa maior qualificação ou desqualificação do trabalho?
– Quem se beneficia com a automação da produção?
Apesar de as possíveis respostas a estas indagações estarem intrinsecamente vinculadas, era preciso que educadores e operários-estudantes analisassem cada passo do processo de automação da produção, redimensionando, então, a formação técnico-política dos trabalhadores.
Começamos a compreender que a mecanização e automação não representam nenhuma novidade na indústria. Na verdade, a grande novidade tem sido a difusão da microeletrônica, que significa a redução de componentes eletrônicos, permitindo a elaboração de circuitos mais complexos, presentes não só na indústria, como também nos bancos, lojas, aparelhos de som, TV, escritórios…
A microeletrônica possibilita, de uma maneira mais eficaz, a centralização de dados sobre as informações de produção. Acompanha detalhadamente a confecção de uma peça, assegurando que a empresa detecte instantaneamente qualquer alteração no processo produtivo: a parada súbita de máquinas, a falta de um operador etc.
Estudo do Dieese aponta novos equipamentos na microeletrônica
O sistema CAD-CAM, máquina ferramenta de comando numérico, máquinas de tratamento de textos, terminais de vídeo, sistemas automáticos de transportes e distribuição de peças… fazem parte do mundo das novas tecnologias. Um estudo do Dieese (Departamento Intersindical de Estudos Sócio-Econômicos) nos aponta outros equipamentos com base na microeletrônica:
"Controladores lógicos programáveis (CLP ou PLC): substituem painéis de relês e comando de máquinas por sistemas eletrônicos. Há basicamente, alterações nos requisitos de manutenção. Sistema do controle de processos: usados em produção contínua (petróleo, petroquímica, aço etc.); sensores captam informações de variáveis como temperatura, pressão, composição do material, enviando-as para computadores que as analisam e propõem intervenção.
Há ainda uma série de máquinas: eletroerosão (reduz a necessidade e os requisitos de pessoal de ferramentaria), sistemas de informações na produção (automação da pontaria e do controle), automação no controle de qualidade etc" (Caderno da CUT, 1987, p. 31).
O Sindicato dos Metalúrgicos-RJ também está atento a esta discussão: iniciou um levantamento das empresas que estão sob sua área de jurisdição sindical e constatou que CBV, CMV, Worthington, Suecobrás, Baker, Engemap e Microlab são as indústrias onde encontramos o maior número de equipamentos automatizados. A CBV, que fabrica equipamentos bélicos para extração de petróleo, tem disparado na frente, contando com 12 tornos automáticos, cinco centros de usinagem e um CAD (Computer Aided Desing).
A comissão do Sindicato está disposta a continuar a pesquisa, analisando as implicações das novas tecnologias, discutindo e formulando formas de ação sindical frente à nova organização do trabalho. Alguns operários-estudantes também se engajaram nesta comissão, dispondo-se a fazer um levantamento das novas tecnologias introduzidas em seu local de trabalho, analisando-as em relação ao aumento da produção, desempenho e qualificação do trabalho.
CCQs visam a convencer os operários a cooperarem para o "objetivo comum"
Professores, alunos ficavam alarmados diante de tantas novas informações: o processo de automação tem maior controle também sobre os trabalhadores, uma vez que os operadores trabalham conforme a programação da máquina. Os digitadores em CPD, por exemplo, devem seguir rigidamente a programação das máquinas que indica desde o número de batidas até os intervalos para café, para idas ao banheiro, (Caderno da CUT, 1987, p. 13). Assim, o capital imprime no homem o ritmo e a velocidade da máquina, desconsiderando as habilidades tradicionais do operário, tornando-o, cada vez mais, um mecanismo vivo de "um mecanismo morto que existe independente dele" (Marx, 1974, p. 244).
Subordinado a um sistema de máquinas programadas para fiscalizar todos os passos de seu trabalho, a gerência científica, enquanto um corpo vivo, pode se tornar um mecanismo secundário para garantir a disciplina do trabalho:
"Com a automatização do processo da informação e sistemas de difusão, torna-se possível para o capital, em alguns casos, dispensar algumas dessas características caras e tradicionais de controle. Na verdade, ele pode automatizar o controle do trabalho. Taylor desenvolveu uma rotina de controle começando o dia na oficina ao dar a cada trabalhador uma ficha de trabalho com instruções escritas sobre suas tarefas. Hoje em dia existem oficinas onde o dia começa com os trabalhadores recebendo listagem de computadores especificando a alocação de seus trabalhos e programações. Não há dúvida de que o mesmo computador recebe informações durante o dia sobre a extensão em que cada trabalhador está, executando o seu trabalho (…)" (Brigthon Group, 1976, p. 23-24).
O processo de automação na indústria abre caminhos para efetivar a subordinação do operariado ao capital. Antes era preciso que alguém vigiasse e controlasse as ações do trabalhador durante sua jornada de trabalho, agora a própria máquina, além de incorporar a ciência e a técnica da produção, incorpora a função de controle real do trabalhador para manter o sistema de máquinas num ritmo de funcionamento tal que garanta a produção em grande escala.
Condicionando os movimentos do operário às ordens de uma maquinaria, o controle adquire uma forma mais sutil e eficaz. Assim sendo, poderíamos inferir que com o avanço das novas tecnologias, também o técnico industrial poderá ter descartada sua função de supervisão e fiscalização, in loco, do trabalho dos operários que atuam diretamente na produção. Qual será, então, num futuro próximo, a sua função? Controlar a eficiência de máquinas que controlam os homens? Os debates no Colégio Metalúrgico, nos ajudaram a compreender que não podíamos aguardar o desenrolar dos acontecimentos; é necessário os trabalhadores estarem à frente do processo de automatização da produção, direcionando os rumos das novas tecnologias.
É preciso também estar atento a todos os seus movimentos, perceber que o capital necessita criar um clima de falsa solidariedade no processo produtivo, onde a troca de conhecimento e ajuda mútua facilitem o controle dos empecilhos sobre a produção. Assim, os novos métodos introduzidos têm como intenção habituar o trabalhador às mudanças na organização do trabalho requerida pela introdução de novas tecnologias. Através dos chamados de Círculos de Controle de Qualidade ou de Trabalho Participativo, o empresariado em cada fábrica tenta convencer os operários a colaborar para a melhoria dos métodos de produção, contribuir com o controle de qualidade e para a eficiência das máquinas. Além disso, os CCQ e TP procuram incentivar o exercício de várias funções ao mesmo tempo, e a ajuda de um setor ao outro.
Na lógica do capital é preciso que o operário esteja convencido da importância do seu trabalho individual. É necessário muito desempenho e disposição para cooperar, para se alcançar um objetivo "comum". A opção patronal em instituir relações "mais democráticas" na organização do trabalho é uma exigência do capitalismo. É uma forma de amenizar as resistências da classe operária a um trabalho degradante, sem que, no entanto, a estrutura do capital seja profundamente afetada. No "dividir para reinar", as relações de trabalho tomam um caráter aparentemente não autocrático, uma vez que a aplicação do taylorismo dogmático choca-se às reivindicações de relações democráticas reclamadas pela sociedade civil. Para recompor sua hegemonia, o capital necessita inovar constantemente seus mecanismos de dominação sobre os trabalhadores, procurando conciliar os interesses e contradições para continuar a reinar. Valorizar a personalidade de cada trabalhador, suas capacidades, premiar por produção, tornaram-se meios para evitar os conflitos, a insatisfação e o absenteísmo. Mesmo que as classes patronais não consigam efetivar plenamente a subordinação real ao capital, graças à resistência da força de trabalho, as novas formas de gerenciamento constituem estratégias para, sob controle ideológico, garantir o desenvolvimento do capitalismo.
Antes eu era um torneiro especializado hoje vou competir com o servente
Agora, com a ajuda dos processos automáticos, fica mais fácil para o capital controlar a qualidade do produto, bem como controlar a performance do trabalhador, sem que necessariamente se faça presente a figura despótica do supervisor. Assim, o técnico industrial, na forma tradicional em que vem exercendo a função de inspetor de qualidade, tenderia também a desaparecer? Os operários-estudantes estão atentos, em busca de uma resposta para esta questão.
No debate "Microeletrônica – a 3ª onda?", realizado no Seminário Automação e Movimento Operário/1988, o professor de eletrotécnica do Colégio Metalúrgico, Iran Rodrigues, apontava algumas das implicações das novas tecnologias:
"As empresas automatizadas, de uma maneira geral, necessitam do operário um grau de polivalência, onde é dispensado o conhecimento específico, já que as máquinas, sendo automatizadas, necessitam apenas serem realimentadas. Portanto, não é necessário um conhecimento do seu funcionamento pelo operário. Neste caso, só será necessário ao operário a adaptação para operar os diversos tipos de máquinas. Com os comandos eletrônicos, a operação requererá conhecimentos gerais sobre o processo produtivo, não sendo necessária uma especialização em uma determinada área".
A qualificação/desqualificação do trabalho é uma das questões importantes na discussão sobre automação. Na sociedade capitalista, conhecimento é poder, portanto, se uma das funções do Colégio Metalúrgico é contribuir para que o operariado tenha acesso à ciência, é imprescindível que também nós, profissionais do ensino, nos debrucemos sobre o tema. Que profissionais a escola está formando? Com quais conhecimentos? Para exercer qual atividade na fábrica? A difusão da microeletrônica requer um repensar sobre a escola, requer uma reorganização dos conteúdos programáticos. Como não priorizar também a microeletrônica, se hoje estamos na era da informática?
O Seminário "Automação e Movimento Operário" contribuiu de alguma maneira para que repensássemos a qualificação/desqualificação do trabalho. Os debates favoreceram a compreensão de que o processo de automação requer uma redistribuição das qualificações. As ocupações tradicionais tanto podem fragmentar-se ainda mais como podem ser reorganizadas através de um equipamento automático que incorpora várias funções ao mesmo tempo. A cada dia, diminui-se o número de conhecimentos técnicos exigidos para que o trabalhador possa operar a máquina:
"Se antes eu era um torneiro especializado, hoje em dia eu vou competir com o servente da fábrica, por exemplo, que nunca estudou nada de comando numérico. Com duas ou três semanas ele pode operar aquela máquina (torno NC). Quando ele tiver problema o encarregado orienta, tira o problema e ele começa a produzir normalmente, igual a mim ou mais. Professora, a senhora mesmo que nunca trabalhou numa fábrica, aprende isso rapidinho" (Operador de torno por comando numérico da Worthington).
Inicialmente, imaginávamos que seria necessário que uma escola técnica proporcionasse uma base sólida de conhecimentos para que os alunos pudessem trabalhar com máquinas automatizadas. No entanto, foi possível aprendermos com os próprios operários-estudantes que operar um torno de comando numérico, por exemplo, tem como pré-requisitos adquirir apenas algumas noções de medida e de desenho técnico.
Se as novas tecnologias vêm exigindo mão-de-obra especializada, é importante ressaltar que o aumento do grau de qualificação vem se dando nas etapas de concepção, projeto e implantação do trabalho. Agora, a máquina incorpora a ciência produzida pelo homem, simplificando, portanto, as tarefas e, muitas vezes, tornando obsoletas certas funções. Os trabalhadores diretos ficam relegados à função de alimentação das máquinas, através de atividades de supervisão, para controlá-las e regulá-las, mantendo a eficiência da produção.
Um operário-estudante conta sua experiência como operador de torno por comando numérico:
"Tem fábrica que o operador nem verifica a peça. É simplesmente tirar e botar a peça. A Engemap tem máquina que o operador trabalha com um inspetor do lado. Então você tira a peça, ele verifica, você põe outra, ele verifica (…) e vai indo. Então você não se dá nem ao trabalho de medir: simplesmente você coloca a peça, aperta e manuseia. O inspetor mediu, verificou um erro, aí eu vou mexer na máquina para dar o ajuste" (Operador de tomo ANC da Engemap).
A fábrica requer uma minoria de especialistas de alto nível, com uma formação que permita o desenvolvimento de uma atividade intelectual sofisticada. Mas, à grande massa de trabalhadores oferece um trabalho fragmentado. Assim, mesmo que o avanço das novas tecnologias requeira uma nova qualificação da força de trabalho, a dicotomia trabalho manual/trabalho intelectual prevalece, talvez com mais intensidade ainda, uma vez que acentua-se qualitativamente a distância entre concepção e execução.
Marx, em meados do séculos XIX, mesmo não tendo presenciado os avanços tecnológicos de um processo de automação que tem como base a microeletrônica, conseguia expressar o significado da utilização da maquinaria industrial no sistema capitalista.
"A atividade do operário, reduzida a uma pura abstração, é determinada em todos os sentidos pelo movimento de conjunto das máquinas, o inverso não é verdade. A ciência obriga, dada a sua construção, os elementos inanimados da máquina a funcionarem como autômatos úteis. Esta ciência já não existe, portanto, no cérebro dos trabalhadores: através da máquina, ela atua antes sobre eles como uma força estranha, como a própria força da máquina" (Marx, 1978, p. 160-161).
As novas tecnologias abrem, no entanto, caminhos para uma qualificação polivalente, ou seja, para a possibilidade de o operário executar mais de uma tarefa, operando com mais de uma máquina ao mesmo tempo. No Brasil, a polivalência está sendo implantada através das "ilhas" ou "células de fabricação". Cada "ilha" abriga todas as etapas da produção, o que permite que sem interrupções a empresa ganhe tempo em termos de produção. Assim, cabe ao operário operar de seis a 10 máquinas ao mesmo tempo. Mas isto não significa que o operário domine o conhecimento do início ao fim da produção, um vez que as máquinas automáticas dispensam o conhecimento sobre seu funcionamento. O resultado da nova organização do trabalho é a maior produtividade na jornada de trabalho com um número reduzido de operários desqualificados.
O capital rouba dos trabalhadores a consciência e o produto do trabalho
O sentido desta "polivalência" não é o mesmo advindo de uma educação politécnica que propicie ao homem a aquisição dos princípios históricos-críticos e instrumentais básicos para o exercício de diversas atividades no processo produtivo, que permite uma relação teoria-prática sólida, possibilitando a compreensão de sua totalidade. Ao contrário, no processo capitalista de produção, a automação advinda dos princípios microeletrônicos parece contribuir para a manutenção de um trabalho alienado.
A tese de que as técnicas modernas de produção requerem um grau maior de qualificação para trabalho talvez seja apenas verdadeira para uma pequena parcela de homens que compõem o grupo de trabalhadores intelectuais, responsáveis pelo planejamento e projeto da produção. O capitalismo, apesar de suas evoluções, continua capitalismo. Uma de suas características básicas é procurar perpetuar a alienação do trabalho, a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual.
O capital rouba dos trabalhadores a consciência e a posse do seu produto de trabalho. Ao romper o elo trabalho-produção da existência, o capitalismo nos separa de nós mesmos, de nossa própria humanidade. O divórcio entre a teoria e a prática, entre o pensar e o fazer o processo de trabalho, torna o homem estranho de si mesmo, que não se reconhece enquanto sujeito, mas enquanto um fragmento de uma totalidade perdida no tempo e no espaço.
Quando se discutem novas tecnologias, uma das primeiras divagações é imaginar e propor a automatização da produção, pelo menos, ou principalmente, nos locais onde as condições de trabalho constituem alto grau de insalubridade e periculosidade para o trabalhador.
No seminário “Automação e Movimento Operário" os professores e operários-estudantes tiveram oportunidade de discutir esta questão no debate "Saúde e Automação", onde Carlos Minayo tentou questionar as vantagens e desvantagens do processo produtivo automático para melhorar a vida dos trabalhadores e da população em geral:
"Os agravos à saúde derivados dessas novas condições de trabalho estão relacionadas com:
1. O aumento do isolamento no trabalho;
2. o ritmo intenso a que é submetido o trabalhador que, no gesto ou esforço repetitivo, provoca um conjunto de lesões musculares e tendinosas (tenosinovite, tendinite…); e
3. o aumento da tensão nos postos de trabalho de controle, que produz a fadiga mental ou fadiga patológica, provocadas pelos esforços exigidos pelos acréscimo de carga mental e cognitiva. Cresce ainda o nível de exigência em função da utilização de equipamentos caros ou perante aspectos-chave da produção, sem pausas suficientes, em espaço de tempo e duração, o que acaba por se refletir nas perturbações do sono, nas doenças psicossomáticas, na depressão e no alcoolismo.
O uso de terminais de vídeo, sem uma regulamentação adequada, causa também problemas de visão, como cataratas, e falta de cuidados ergonométricos, ao se acoplarem mecanismos microeletrônicos às máquinas provoca diversos distúrbios na coluna".
As péssimas condições de vida e trabalho daqueles que produzem as riquezas sociais não permitem que se fale em saúde do trabalhador, mas em acidentes de trabalho e doenças. Apesar do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, inclusive no campo da saúde, vivemos num país onde se morre de fome e de frio. O alto índice de mortalidade infantil, atendimento médico precário, doenças endêmicas, ingestão de agrotóxicos… fazem parte do quadro da não saúde da população brasileira.
A classe operária e os trabalhadores em geral vêm pagando muito caro o custo do progresso nacional, e assim "a dor da vida se expressa habitualmente na dor do corpo". As consequências à saúde, os nomes das doenças podem até variar de técnica para técnica de trabalho, mas mesmo com a evolução tecnológica o modo de produção capitalista vem reproduzindo e produzindo novas doenças do trabalho.
Um grande número de profissionais limita-se a controlar a maquinaria, a digitar informações, para o computador, a apertar botões. A facilidade para exercer a tarefa torna o trabalho cansativo e monótono; a repetição sistemática dos mesmos esforços sobrecarrega o sistema nervoso. A tenosinovite, um dos tipos de Lesões por Esforço Repetitivo (LER), que consiste na inflamação e até mesmo imobilização dos dedos e mãos, já atinge hoje aproximadamente 30% dos digitadores. As mulheres gestantes correm risco de aborto, de partos prematuros ou de deformação congênita no feto ao se exporem às radiações eletromagnéticas emitidas através dos visores dos terminais de computadores (Revista Tema, 1987, p. 20).
As consequências das novas doenças que surgem com o processo de automação ainda não foram devidamente computadas pelas estatísticas oficiais de acidentes de trabalho. A lógica do capitalismo não é automatizar determinados setores, tendo em vista afastar os trabalhadores da possibilidade da aquisição de doenças profissionais e do perigo de acidentes. Assim, dois operários-estudantes, indignados, falam sobre as condições insalubres de seus locais de trabalho:
"O torno NC solta muitos gases e aí você fica exposto a estes gases. Eu trabalho muito com ferro fundido e aquela poeira faz um mal danado. Eles deviam dar leite, mas não dão" (Operador de torno por comando numérico da Worthington).
"Mesmo sendo automatizado, tem muito barulho. Teve um que perdeu a audição, tem um outro que só ouve com aparelho. Tem muito problema de coluna, porque trabalhar em pé dá mais produção" (Afiador de ferramenta da Nuclep).
A lógica do capital é a produção em grande escala, a redução dos custos, o lucro, independentemente das consequências à saúde física e mental dos trabalhadores.
Os processos de automatização do trabalho trazem uma nova dimensão para a disciplina "Saúde do Trabalhador". Agora, de posse de novos dados sobre as consequências das novas tecnologias, os operários-estudantes e professores poderiam rediscutir a preservação da vida dos trabalhadores, aprofundando a questão a partir das informações obtidas no Seminário "Automação e Movimento Operário".
A intensificação da automação também traz à tona o problema da distribuição do capital em máquina e equipamentos, e em trabalho vivo. A necessidade de criar novos postos de trabalho para assumir as novas funções e ao mesmo tempo reempregar a força de trabalho cujas funções foram incorporadas à maquinaria, foi também uma das questões discutidas durante o Seminário. Percebendo que o desenvolvimento tecnológico não vem proporcionando a melhoria da qualidade de vida da população, a grande preocupação dos operários-estudantes está centrada principalmente na garantia de emprego.
"Na minha empresa entrou uma máquina que passou a fazer o serviço de mais de 10. Foram pro olho da rua" (Auxiliar de produção da Ishikawajima).
"O que eu vou dizer já é dito em várias pesquisas: a peça que é feita em seis horas num torno convencional, pode ser feita em seis minutos num torno NC. Aquele símbolo do Senai, a estrela solitária… um bom torneiro fazia aquilo em oito dias. Agora é feita em algumas horas. Aí você tem uma idéia do desemprego que vai gerar" (Operador de torno por comando numérico da Worthington).
A desqualificação do operário garante ao capital a substituição fácil da mão-de-obra. Além disso, o aumento da produtividade não acarreta necessariamente o aumento da oferta de empregos. Sabe-se que cada robô é capaz de substituir de quatro a cinco operários; cada máquina ferramenta de comando numérico, de três a cinco trabalhadores… O resultado é que, reduzindo o número de empregados, barateando a mão-de-obra, a produtividade e os lucros dos empresários não têm sido proporcionais à distribuição de renda. Ao contrário, a política econômica vem empobrecendo cada vez mais aqueles que, com muito suor, entregam sua saúde e sua vida para produzir as riquezas do trabalho.
O papel da burguesia é constituir uma infra e superestrutura que assegure a sua perpetuação enquanto classe. Para isto deve criar, recriar e renovar um processo de trabalho com uma base material e ideológica sólidas que assegure para si o domínio da ciência e da tecnologia, o emprego de maquinarias sofisticadas que permitam a mobilidade de substituição fácil da força de trabalho e o controle sobre o processo produtivo. Garantindo assim também, a extração da mais-valia numa produção de larga escala através de um trabalho alienado, criando novas relações de trabalho que reforcem a subordinação real do trabalhador ao capital.
Não se trata apenas de negarmos a microeletrônica e o processo de automação. Mas é preciso aprendermos a conviver com eles, procurando dar direção a seus rumos. A garantia de emprego, de condições dignas de trabalho e de vida são direitos fundamentais dos trabalhadores. Interferir na produção e utilização de novas tecnologias é também participar da luta ampla por uma nova sociedade.
Na perspectiva da classe operária e dos trabalhadores em geral, automatizar o processo produtivo poderia representar a diminuição da longa jornada de trabalho, garantindo, além de emprego para todos, a oportunidade de dedicar uma parcela maior do tempo livre ao lazer, ao estudo, ao prazer de viver a vida. Mas, infelizmente ainda hoje, o Brasil, apesar de ser considerado a 8ª economia do mundo, é um país que tem como pano de fundo a pobreza, o analfabetismo, a desnutrição… Convivemos com novas tecnologias sofisticadas, por um lado, e, por outro, com a fome e a miséria.
O movimento sindical, os partidos políticos, enfim a sociedade civil organizada, precisam estar atentos também para as transformações da tecnologia, discutindo e definindo uma política tecnológica que privilegie os trabalhadores. Alguns sindicatos europeus já deram os primeiros passos, aprovando em seus dissídios coletivos cláusulas relativas à proteção dos trabalhadores diante dos impactos da produção automática (Maggiolini, 1988). Garantir a participação dos sindicatos no planejamento da aplicação de novas tecnologias é dar um passo importante. Defender a garantia de emprego, cursos de qualificação profissional, redução da jornada de trabalho sem perda salarial, antecipar a idade de aposentadoria, proteger o trabalhador das condições penosas, insalubres e periculosas do trabalho são condições fundamentais que abrem caminho para uma efetiva participação dos trabalhadores nas diretrizes de uma nova política tecnológica.
O patrão quer uma escola que ajude a moldar comportamentos "úteis"
Os operários-estudantes e professores do Colégio Metalúrgico deram início ao debate sobre a automação do processo produtivo.
Sabemos que, de fato, a escola está muito longe de acompanhar o desenvolvimento das ciências, muito aquém de responder às expectativas dos alunos quanto aos avanços tecnológicos. A instituição escolar, quando muito, vai a reboque das mudanças sociais, há muitos anos luz. Não é à toa que os operários-estudantes reclamam a "defasagem técnica" da escola. Na ansiedade de obterem respostas imediatas que os auxiliem a compreender o fenômeno que vem ocorrendo no interior da indústria, consideram que a escola ajuda, mas realmente não corresponde à difusão das novas tecnologias.
Seria possível à escola acompanhar o desenvolvimento da fábrica em sua plenitude? Acreditamos que não, por mais recursos materiais que se propicie à escola técnica. É possível perceber que ao capital não interessa dar à escola a função de qualificar, de fato, o operário para a indústria. Talvez só interesse mesmo é que a escola propicie uma educação "com tintura tecnológica", além de contribuir ideologicamente para moldar os comportamentos que serão requeridos no processo produtivo. A instituição escolar burguesa não assume para si a função de formar trabalhadores realmente qualificados técnico-politicamente, que dominem a ciência e a técnica que fundamenta o conteúdo do trabalho – uma vez que esta proposta esbarra com os interesses do capital; é inconciliável com o livre desenvolvimento do próprio capitalismo. Além disso, acompanhar pari passu o desenvolvimento das novas tecnologias é tirar da fábrica o privilégio de moldar técnica e ideologicamente as habilidades, atitudes e valores dos trabalhadores necessários na organização capitalista de produção.
Sendo a escola um dos palcos da luta de classes, cabe aos educadores e alunos conquistarem novos espaços, provocarem a discussão de temas que desnudem a realidade, contradigam os argumentos capitalistas, desmistifiquem a ciência, para fazer desta:
"(…) já não um instrumento de dominação de classe, mas uma força popular, fazer dos próprios homens da ciência, já não proxenetas dos preconceitos de classe, parasitas do Estado na mira de bons lugares e aliados do capital, mas livres agentes do espírito. A ciência só pode encontrar o seu verdadeiro papel na República do Trabalho" (Marx e Engels, 1978, p. 78-79).
A formação para o trabalho requer uma competência técnica, um saber-fazer vinculado a uma concepção de vida e de sociedade. Assim como a teoria não caminha sem a prática, uma técnica institucionalizada como "neutra" não existe a não ser em função de atender a determinados interesses de classe em determinados momentos históricos. A técnica de tornearia, por exemplo, hoje, pode ser a mesma tanto no sistema capitalista como no socialista; o que difere é o uso que se faz dela, é a relação de produção em que é elaborada e executada. As questões técnicas de trabalho não podem, portanto, ser tratadas isoladamente das relações sociais, desvinculadas dos interesses de classe, da organização da produção, enfim, dos interesses políticos e econômicos que norteiam o modo de produção capitalista.
Os avanços tecnológicos nos fazem repensar uma escola cujo currículo escolar dê conta de uma nova qualificação do trabalho. Não aquela que venha ao encontro dos interesses do capital, mas de uma qualificação que leve em conta os seus movimentos e vá mais além: se re-aproprie da ciência que a máquina incorporou, dando então um novo rumo às novas tecnologias, colocando-as realmente a serviço dos interesses da grande maioria da população. Neste sentido, o ensino técnico-industrial ganha também uma nova dimensão técnico-política.
O Seminário "Automação e Movimento Operário" proporcionou novas descobertas sobre a amplitude do currículo escolar. Foi mais uma tentativa de aliar as questões políticas às questões técnicas do trabalho, acreditando que a escola também pode dar sua parcela de contribuição para a formação da consciência da classe operária, para seu compromisso político diante da transformação da realidade. Acreditando também que a inserção do operário na vida da fábrica, nos destinos da sociedade se faz com competência técnico-política.
Nós educadores também aprendemos muito no processo de transmissão e elaboração de conhecimentos. A vida da classe operária e dos trabalhadores em geral deve ser a referência de nossa proposta curricular, fazendo da escola "(…) um lugar de aprendizagem para todos, professores, alunos, diretor” (Milet, 1986, p.45). O processo pedagógico ao buscar o trabalho na fábrica, ao reconhecer o operário enquanto um ser vivo e concreto, redimensiona o currículo, constrói uma escola real, que procura responder às expectativas dos trabalhadores enquanto cidadãos que têm o direito ao acesso e à produção de novos conhecimentos.
* Lia Vargas Tiriba é assessora Pedagógica do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro; membro do Conselho diretor de VIDA – Núcleo de Ação e Pesquisa em Educação.
Este artigo, com algumas modificações, é parte integrante da tese de mestrado "Trabalho e Educação da Classe Operária – a perspectiva política da escola técnica do Sindicato dos Metalúrgicos – RJ" (FGV-RJ, 1989).
O Colégio Metalúrgico funciona nas próprias instalações do Sindicato, atende a cerca de 400 operários, com cursos noturnos de 2° grau nas áreas de mecânica, eletrônica e eletrotécnica.
Referências bibliográficas:
BRIGHTON, “Labor Process Group. O processo de trabalho capitalista”, in: Capital and class, 1, Inglaterra, 1976 (traduzido por José Ricardo Tauile e Carlos Ronaldo Paes Ferreira) (mimeo).
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EDIÇÃO 18, JUN/JUL/AGO, 1990, PÁGINAS 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61