O Predestinado
Dizem os idealistas que se uma pessoa se concentra fortemente numa idéia esta se transforma em realidade palpável. A meditação leva algum tempo, à moda dos anacoretas, até se converter em algo real. Ao que tudo indica o presidente da República comunga desse fetichismo mágico. Deve ter pensado tanto em ser presidente que acabou acontecendo. Julga-se um predestinado. Foi Deus quem o foi buscar na santa paz da oligarquia familiar maranhense e o trouxe para o Planalto. O Altíssimo, parece, desconfiava que ele não viria sozinho. Por essa razão atrelou-o a quem tinha prestígio e experiência para o cargo. Não fosse isso, nem às portas da prefeitura de Bodecó conseguiria chegar. Afinal, chegou. Subiu, vias transversas, a rampa do palácio e instalou-se comodamente. A princípio, com um ministério formado por outrem. Ajeitou-o depois à sua maneira. Lá está até hoje despachando ninharias, escrevendo besteiras, criando modismos, administrando o seu reino cobiçado por muitos.
A esta altura do ano de 1988 não admite deixar a curul presidencial, nem mesmo com a nova Constituição promulgada. Foi Deus quem lha deu, só Deus poderá tirá-la. Eram seis anos, inicialmente. Suspeitou ser muito, deixou por cinco. Quatro anos é o diabo que quer. Exorciza, por isso, os maus espíritos sacudindo a caçoula que esparge olor verde-oliva para afugentar os demônios. Demônios terríveis que não o deixam em sossego, segundo confessa.
Agora, pretendem levá-lo ao Senado para responder a indagações incômodas. Coisas que dizem respeito à manipulação de verbas, de contratos, de licitações ilícitas. Exaspera-se com a acusação de traficância. Mostra as mãos limpas, bem cuidadas, que toca somente objetos sagrados. Alguém questiona: e como explicar os rombos, largos, e portanto notórios, na arca da guarda do dinheiro público? Isto não é com ele. É com os aníbal, os funaro, os gartenkraut, gente por ele nomeada que apenas fazia o que o predestinado mandava.
Se me tirarem o mandato de cinco anos, diz o presidente, a liberdade estará morta. Porque a liberdade sou eu no poder. Lançou pressuroso a legenda – liberdade ou morte. O homem que fala assim de liberdade serviu à ditadura durante longos anos e mais serviria não fosse a dita cuja ter chegado ao fim. No poder, mobilizou tropas nos portos, nas refinarias de petróleo, na Siderúrgica Nacional para impedir greves pacíficas. Agrediu manifestantes em Itaipu. Já ordenou várias vezes a demissão de grevistas dos serviços públicos, dos bancos oficiais, das empresas do Estado.
Mas não é apenas o guardião da liberdade. É também o democrata de dezoito quilates.
"Ninguém tem sido mais democrata do que eu", exclamou num relambório insuportável às seis da manhã. A democracia do presidente está impregnada de fisiologismo e autoritarismo. Todo mundo viu a democracia presidencial em ação no dia em que a Assembléia Nacional Constituinte ia votar a forma de governo e o tempo de mandato. Foi um vale-tudo dos infernos. Desde a mobilização de prefeitos, governadores, ministros, pródigos em promessas e recompensas, até a declaração de porta-voz das Forças Armadas de virar a mesa se não fossem aprovados o presidencialismo e os cinco anos.
Entrementes, anuncia ser o mais tolerante dos governantes que o Brasil já teve. Devem ter-lhe dito que a intolerância é a marca dos homens de visão estreita, de estatura política anã. Justamente, como se apresenta e procede o presidente. Se alguém contraria a sua vontade, as retaliações são imediatas. Tira-lhe as nomeações de cargos públicos oferecidos em troca de favores políticos, corta-lhe os créditos nos bancos oficiais, cancela concessões nas áreas da comunicação social. Aplica o regime de pão e água.
E vai em frente, caminhando para trás, o abençoado de Deus. Já bateu um recorde: é o vice que mais tempo governou. Mas pensa ampliar a façanha nessa olimpíada de transição infindável, se a nação humilhada não se levantar para gritar-lhe na face: basta de mediocridade, de estupidez, de servilismo ante os banqueiros internacionais, de desrespeito à vontade do povo.
EDIÇÃO 15, MAIO, 1988, PÁGINAS 3, 4